Uma nova revolução copernicana
O centro de nosso universo não é mais o sol, no centro de nossa galáxia o que existe é um buraco negro, apesar do nome parecer ser negativo, segundo as novas teorias depois do super telescópio James Webb ele é apenas uma nova realidade além do pensamento físico atual, chamado Sagitário A* tem um diâmetro de 35 milhões de quilômetros e é o objeto mais massivo da galáxia (primeira foto feita em 2017 pelo telescópio Event Horizon, Feryal Ozel).
Edgar Morin aponta esta e outras mudanças científicas de nosso século mais “formidáveis” que as ideias aparentemente revolucionárias de nosso tempo que pouco ou nada mudaram na concepção social, humana e de mundo que ainda tempo.]
Escreveu Morin: “Tivemos que abandonar um universo ordenado, perfeito, eterno por um universo em devir dispersivo, nascido na irradiação, no qual atuam dialogicamente, isto é, de maneira ao mesmo tempo complementar, concorrente e antagónica, ordem, desordem e organização” (Morin, 2003, p. 62), e ainda: “estamos num universo que não é nem banal, nem normal, nem evidente” (p. 63) e deveríamos pensar assim também da vida humana e social.
Assim nossa minúscula casa num universo quase-infinito é “… é um pequeno cesto de lixo cósmico transformado de maneira improvável não apenas num astro muito complexo, mas também num jardim, nosso jardim” (p. 64) e assim deveríamos pensar e não em conflitos.
“Nossa árvore genealógica terrestre e nossa carteira de identidade terrestre podem hoje finalmente ser conhecidas” (p. 64) e aponta para isto a evidência de nossos problemas.
A primeira evidência que aponta é o desregramento econômico: “Não poderíamos considerar a economia como uma entidade fechada. Trata-se de uma instância autónoma dependente de outras instâncias (sociológica, cultural, política), também elas autónomas/dependentes umas em relação às outras” (p. 65), assim as guerras atuais não são senão a disputa de mercados onde poderiam reconhecer a interdependência e autonomia de cada economia.
A segunda e a crise ecológica: aponta o relatório Meadows encomendado pelo Clube de Roma em 1972, mas também: “as grandes catástrofes locais com amplas consequências: Seveso, Bhopal, Three Mile Island, Chernobyl, secagem do mar de Arai, poluição do lago Baikal, cidades no limite da asfixia (México, Atenas)” e agora mais recentemente Fukushima e as catástrofes naturais.
Apontava ainda a crise de desenvolvimento e a crise universal do futuro, aquela que estamos mergulhados hoje, com ódios e guerras mundiais escalando onde o amor e a fraternidade se encontram sufocados.
“Assim, por toda parte, o desenvolvimento da tríade ciência/ técnica/ indústria perde seu caráter providencial. A ideia de modernidade permanece ainda conquistadora e cheia de promessas onde quer que se sonhe com bem-estar e meios técnicos libertadores” (p. 76).
Sem um retorno ao bom senso, à cooperação mundial e a fraternidade a crise será profunda.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003
O cosmos, a noosfera e a perdição
No capítulo sobre “A perda da salvação, a aventura desconhecida” do livro Terra-Pátria de Edgar Morin ele lança um olhar profundo sobre a nossa falta de cosmovisão e a perdição em nossas microscópicas preocupações que não olham um mundo e uma realidade maior a nossa volta.
Diz no início: “Se houvesse navegadores do espaço, sua rota no aglomerado de Virgem ignoraria a muito marginal Via Láctea e passaria longe do pequeno sol periférico que tem em sua órbita o minúsculo pla- neta Terra. Como Robinson em sua ilha, pusemo-nos a enviar sinais em direção às estrelas, até agora em vão, e talvez em vão para sempre. Estamos perdidos no cosmos” (Morin, 2003, p. 163).
Acrescenta: “Este mundo que é o nosso é muito frágil na base, quase inconsistente: nasceu de um acidente, talvez de uma desintegração do infinito, a menos que consideremos que surgiu do nada” (idem, p. 163).
Mas o homem na modernidade agigantou seu ego, quer ele próprio ser uma espécie de “Homo Deus” usando a metáfora de Yuval Harari, cujo subtítulo é “uma breve história do amanhã”, também pessimista como Morin, porém o autor de Terra-Pátria espera que o homem encontre um novo futuro mais promissor.
Morin ainda que reconheça que “A vida, a consciência, o amor, a verdade, a beleza são eféme- ros … Estamos na itinerância. Não marchamos por um caminho demarcado, não somos mais teleguiados pela lei do progresso, não temos nem messias nem salvação, caminhamos na noite e na neblina” (pgs. 164-165), acrescenta: “Estamos na aventura desconhecida. A insatisfação que faz recomeçar a itinerância jamais poderia ser saciada por esta. Devemos assumir a incerteza e a inquietude, devemos assumir o dasein, o fato de estar aí sem saber por que” (p. 166) lembrando esta categoria cara a Heidegger, que elaborou o “esquecimento do ser”.
Como recomeçar a itinerância, poderíamos perguntar, o autor dá uma “Boa-má nova” (lembrando a boa nova significado da palavra Evangelho): “Eis a má nova: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos. Se há um evangelho, isto é, uma boa nova, esta deve partir da má: estamos perdidos, mas temos um teto, uma casa, uma pátria: o pequeno planeta onde a vida criou seu jardim, onde os humanos formaram seu lar, onde doravante a humanidade deve reconhecer sua casa comum (pg. 166), e a resposta mesmo agnóstica, não é diferente da evangélica.
E então lembra deste apelo: “O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de “boa vontade” que veiculam essa mensagem” (Morin, 2003, p. 167).
E aqueles que conhecem esta mensagem, esta esperança não podemos permanecer calados, indiferentes ou o que é muito pior, aderir a desesperança, devem lembrar daquela mensagem evangélica: “A quem muito foi dado, muito será pedido” (Lucas 12, 39-48) sob a pena da omissão, da distorção ou do abandono da mensagem fundamental da salvação terrena e celeste.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
A identidade e a família humana
Temos identidades e culturas regionais, ligados as nações, o fato que existem nacionalidades não deveria ser contrário a existência e visão de uma família humana, não apenas pela nossa identidade genética e animal, mas principalmente pela nossa vida e relações em comum.
Edgar Morin, em seu livro Terra-Pátria (Editora Sulina, 2003) traça as origens de uma visão do homem ligado a natureza (e por consequência ao Cosmos), que irá se desenrolar nas visões de Bacon, Descartes, Buffon e Marx (Morin, 2003, p. 54) que fizeram do homem “um ser quase sobrenatural que progressivamente assume o lugar vazio de Deus” (idem), porém isto disparou uma visão arrogante e autoritária perante o Cosmos e o Outro.
Como isto regredimos em nossa visão planetária: “A identidade do homem, ou seja, sua unidade/diversidade complexa, foi ocultada e traída, no cerne mesmo da era planetária, pelo desenvolvimento especializado/compartimentado das ciências” (pg. 61), uma visão xenófoba de nacionalismo e de identidade agora explode inibindo uma visão da família humana.
Escreve Morin: “A nação e a ideologia edificaram novas barreiras, suscitaram novos ódios. Deixam de ser humanos o islamita, o capitalista, o comunista, o fascista. “ (pg. 60), note-se que isto foi escrito 1993 (a primeira edição original em francês).
Nossa visão de homem se reduziu, aponta Morin: “A filosofia, encerrada em suas abstrações superiores, só pôde se comunicar com o humano em experiências e tensões existenciais como as de Pascal, Kierkegaard, Heidegger, sem, no entanto, jamais poder ligar a experiência da subjetividade a um saber antropológico” (idem, pg. 61), a visão destes autores parece etérea.
Isto ocorreu também nas ciências humanitárias: “A antropologia, ciência muldimensional (articulando dentro dela o biológico, o sociológico, o económico, o histórico, o psicológico) que revelaria a unidade/diversidade complexa do homem, não poderá edificar-se de fato a não ser correlativamente à reunião das disciplinas … “ (pg. 62), e assim o fragmento humano se traduz em pensamento fragmentado.
É esta fragmentação traduzida em guerra e ódio que exige um desocultar do Ser, reclamado por Heidegger e pensadores que o seguiram (Hans-Georg Gadamer, Hannah Arendt e outros), e que está pensado também em Morin: “Donde a necessidade primordial de desocultar, revelar, na e através da sua diversidade, a unidade da espécie, a identidade humana, os universais antropológicos” (p. 60), des-velar (mais que re-velar, que é velar de novo) como diz a ontologia moderna.
A família humana pode ser desocultada em seus interesses comuns: a ecologia, o equilíbrio econômico e principalmente a paz.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003
Dilemas sobre a paz na Europa e Oriente Médio
O primeiro grande dilema, embora bastante é obvio, não tem respaldo na grande imprensa internacional: falta forças que queiram a paz de modo equidistante dos países em conflito.
Outrora a ONU poderia representar este papel, mas com lutas internas entre as grandes potências este poder está limitado a discursos e tentativas de sensibilizar as partes em guerra.
O segundo grande dilema vem de um sério equívoco que é comum ver em forças belicistas: se deseja a paz prepare-se para a guerra, pois é justamente o contrário, se deseja a paz lute por ela.
Além dos países em conflito, todas as regiões fronteiriças se acham sensibilizadas para a guerra, no leste europeu por exemplo, foi notícia na imprensa alemã, que a Estônia que possui apenas 6.500 militares na ativa e uma população de 1,3 milhão de habitantes, fez a simulação de um plano de evacuação recente para retirada da população, embora 60% dos cidadãos se digam dispostos a defender o país, não teriam preparo militar para isto.
Uma curiosa estrutura de defesa foi implantada na fronteira de muitos países bálticos (foto do jornal alemão DW – Deutsche Welle) instala na fronteira, não se sabe a eficácia, mas é para a guerra, a proximidade da Ucrânia e da Rússia faz vários países bálticos se preparem para o pior.
Em meio a ataques israelenses e pouca ajuda pública, são forças ativistas que estão no Líbano que entram em ação, ainda que politizada e insuficiente para as pessoas necessitadas, é o que tem mantido a ajuda humanitária no país, há denuncias inclusive de ser um “negócio” para a Síria, segundo o mesmo jornal DW militares e forças de oposição na Síria cobram valores exorbitantes para o transporte de, refugiados fugindo da guerra.
Isto induz a um terceiro e grave dilema, a cruz vermelha e o crescente vermelho (versão árabe da cruz vermelha) embora não aceitem a polêmica religiosa, é ela que divide forças de ajuda.
O quarto dilema é resolver a questão de fundo ideológica e cultural-religiosa de fundo nos conflitos, o sociólogo Raymond Aron proferia no período da guerra fria (EUA x União Soviética) uma frase mundialmente conhecida: “A guerra Fria foi um período em que a guerra era improvável, e a paz, impossível”, o dilema agora é inverso: “a paz é improvável, e a guerra possível”, as forças imperialistas em jogos não cederão com facilidade os interesses disputados.
Como pensar na paz, parece um caminho árido e pouco prático, mas grandes pensadores têm apelado para ele: “a resistência do espírito” e como consequência “a resistência da esperança”, Edgar Morin entre outros apontam este caminho, talvez o único mudar a mentalidade do poder, para pensar em solidarizar e servir toda a humanidade, não um grupo específico.
Poder, Ira e Tempo
Em tempo de ameaças e ódios que colocam em cheque não apenas povos, nações e culturas, mas até mesmo o processo civilizatório é bom rever aquilo que pensamos de poder e Ira.
Sloterdijk (2006) tinha desenvolvido a questão de Ira em tempos atuais, num contexto de psicologia política, valores como orgulho, ambição e vaidade contribuem para aquilo que pode ser chamado em tempos de redes, a uma verticalização da vida social.
O autor esclarece que as teorias sociais da “estratificação social na base da dominação, regressão e privilégio” são trocadas pelas ideias de disciplinamento individual (ascese, virtuosidade e desempenho) apontadas como causas da diferenciação vertical.
Isto parecia óbvio tanto para Michel Foucault, patrocinador deste víeis interpretativo, já que denunciava nos anos 70 a intima relação entre discurso e disciplina, por outro lado na visão da viragem linguística, nos seus famosos jogos de linguagem, vinculou esta última com figuras comportamentais e abriu para a sociologia (e algumas meias-filosofias) a compreensão dos rituais latentes, próprios de jogos comunicativos.
Meias-filosofias porque Sloterdijk vai contestar esta leitura e também diversas vertentes da filosofia analítica anglo-americana, que veem nos jogos de linguagens um igualitarista e relativista, não o é.
A chamada tensão vertical, na obra de Sloterdijk, tem grande relevância para a ética e a pedagogia, pois estabelece uma hierarquia entre valores, sem os quais a ética é sabotada, e o educador ao perseguir algo mais alto ao qual o educando está, deve ter algo a mais na alma e no corpo, e isto é seu discurso sobre “a sociedade de exercícios”.
O que estes autores chamam a atenção é a destruição contemporânea da interioridade, tema que Byung-Chul Han vai até a raiz, mas tanto Heidegger, Hannah Arendt e agora Sloterdijk já haviam chamado a atenção para isto: o estar-no-mundo, destruiu aquilo que foi considerado durante milhares de anos como algo mais importante: distinguir-se radicalmente deste mundo.
Em Heidegger este discurso já está presente apontando que o homem como alguém que não dispõe mais de uma interioridade que pode servir de abrigo, para o fugitivo do mundo que ele, eventualmente escolheria ser, as condições modernas, se opõe a certeza de uma vida mais que verdadeira no horizonte da realidade ou num hipotético “fim de mundo”, isto foi escrito muito antes das visões apocalípticas e pseudo-proféticas atuais, sem ver a ausência de ascese.
Hans Jonas escreveu: “age de maneira que os efeitos do seu agir não coloquem em perigo a permanência da vida humana autêntica na terra!” (Jonas, 2006) e Edgar Morin pede uma humanidade (re) humanizada, enfim reverter o processo do poder violento, do ódio e da guerra.
JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation. Frankfurt Suhrkamp, 2006.
SLOTERDIJK, P. Zorn und Zeit. Frankfurt: Suhrkamp, 2006.
A ausência de equilíbrio e do Ser
Uma análise da cultura ocidental não pode ficar sem a compreensão da Ira, diversos autores analisaram a questão, Byung-Chul Han lembra que uma das primeiras palavras na Ilíada de Homero que começa assim: “Aira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades”, mas não é só.
Aristóteles define raiva como: ““um desejo, acompanhado de dor, de vingança percebida, em razão de uma desconsideração percebida em relação a um indivíduo ou seu próximo, vinda de pessoas das quais não se espera uma desconsideração” (2.2.1378a31-33) escreveu sobre Retórica, porém Peter em seu ensaio Ira e Tempo ressignifica esta visão psicanalítica que reduz o sentimento a uma mera válvula de escape para desejos não realizados e a redescobre como um conceito político do século XXI (imagem parte da capa).
Diz o autor “Enquanto a ligação entre espírito e ressentimento era estável – a exigência por justiça para o mundo – seja para além da vida terrena, seja na história que acontece – pôde se refugiar em ficções que foram aqui minuciosamente tratadas: na teologia da ira de Deus e na economia timótica mundial do comunismo” (Sloterdijk, 2021), que toma um tema polêmico.
O certo é que há ira dos dois lados, e não nelas não reside o “já” mas “não ainda” que tratou-se no post anterior, porque ambos pensamentos se acham filiados ao idealismo moderno, e esta é a critica central a Kant e ao idealismo alemão de Hegel, não apontam para uma justiça.
Nela há uma ausência da dor, que antecede a com-paixão, mais que ato de misericórdia (miseri cordis, do coração), é um ato de adesão e justificação das periferias existenciais, onde a dor da justiça reside, mas como existencial também reside nos corações desiludidos e cansados.
A contemplação e o já e não ainda, que atinge tanto a esfera terrena como a divina, exige uma vita activa que é aquele do equilíbrio psicológico, familiar e social que não exclui o outro, não raramente aqueles que defendem a justiça apenas terrena ou apenas divina, não tem uma ação pró-ativa que leve ao encontro da dor, amplamente analisado na “Sociedade paliativa” de Byung-Chul Han, eliminados a dor pela transferência ao “paraíso” terreno ou divino, sem nossa com-paixão.
O equilíbrio do Ser, que se já se realiza, mas não ainda (completamente), tem algo a dizer do justo, do bem comum e da paz.
SLOTERDIJK, P. Ira e tempo. Trad. Marco Casanova. São Paulo: Estação Liberdade, 2021.
Ontologia, idealismo e a verdade
O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser” (questão central de Heidegger), ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).
Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, pg 336).
A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).
Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.
Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).
“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).
“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).
Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Noética, Ontologia e a guerra
Para Platão noésis é superior à dianóia, que é discursiva e aparentemente lógica, enquanto a primeira é uma elevada atividade mental possível, habitando a esfera do Bem e da Harmonia.
É uma possibilidade de acesso ao mundo “divino” (o sumo bem de Platão que está no eidos), é transcendente, absoluto, além do raciocínio humano comum, os filósofos a perseguem sem ao menos tocar na questão da crença de um Deus superior onde a noésis “habita”, não é Ser, mas atitude mental.
Já a dianóia enquanto habita um raciocínio lógico, matemático e técnico fica preso ao que a mente consegue captar do mundo terreno, mesmo admitindo equívocos, verdades não absolutas e as vezes confusas, elas habitam o cotidiano do humano, também desligado do Ser.
Há uma linha fundacional que vai da fenomenologia à antropotécnica de Peter Sloterdijk e Byung-Chul Han, envolvendo essencialmente a questão do Ser, a ligação entre a noesis e o noema, fragilizada pelo bombardeio de narrativas que o universo digital proporcionou, mas o esquecimento do ser, a ausência de interioridade levaram àquilo que Chul-Han chama de “desauritização” e a “pura facticidade” dita assim:
“O desencantamento do mundo se expressa como desauritização. A aura é o brilho que eleva o mundo para além de sua pura facticidade, o véu misterioso que envolve as coisas” (Han, 2023, p. 80).
Não se trata de negar a facticidade, mas de não permitir sua noesis, isto é a compreensão inicial na mente em toda sua aura, ela faz uma “seleção narrativa”, no dizer de Byung-Chul (falando sobre a fotografia): “Ela estende ou encurta a distância temporal. Ela pula anos ou década. A narratividade se opõe à facticidade cronológica” (Han, 2023, p. 81).]
São estas as mentiras das guerras, são de todas as guerras porque escondem seus reais motivos, mas particularmente das guerras atuais porque usam narrativas para mudar o que é evidente se lido na facticidade cronológica, em exemplo bem atual, o bombardeio na semana passada de um hospital de idosos na Ucrânia (foto) e o bombardeio de bases da ONU no Líbano, isto tem correlação com a crueldade e a ausência de qualquer narração que as justifique.
A paz está nos corações e autoridades que mantem a aura da esperança, o espírito solidário.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Heidegger e a tonalidade afetiva
A intencionalidade é inerente ao Ser, é uma manifestação da interioridade.
Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista ou substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva holística daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.
Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.
Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.
A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.
Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).
Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.
Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).
Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.
Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Verdade, noética e o Mal
Nos prolegômenos do primeiro volume de Investigações lógicas, Husserl que havia recebido forte influência de Franz Brentano, pai da psicologia social, vê como problema o relativismo e suas bases na visão de mundo turbada, assim à relatividade da existência de um mundo não é objetiva nem subjetiva, mas “a unidade objetiva completa que corresponde ao sistema ideal de todas as verdades de fato, e dele é inseparável” (HUSSERL, 2005, p. 136).
Isto porque cada tipo de objeto tem desdobramentos próprios possíveis, por assim dizer, tem um método próprio prescritos a priori por leis de essência determinadas pelo eidos da objetividade em questão (Husserl, 2006, 309), isto quer dizer que é a essência da objetividade que pré-determina o tipo de desenvolvimento concordante que se tem da experiência dele.
Pode haver a vivência da evidência nesta experiência do objeto, e isto colabora com seu status de ente enquanto um “ser verdadeiro” (Husserl, 2006, p. 309), aquilo que Husserl chamava de “Lebenswelt”, uma lógica da vida, neste caso da vivência experimentada com o objeto.
Assim um objeto que é o “puro X” se mantém estável em meio à multiplicidade de caracteres noemáticos, que se perfilam no decorrer de uma experiência, o objeto visado no pensamento pela consciência humana, ele precede a primeira ideia intuitiva que é a noesis (pensar X).
Essa visão noética é uma síntese de identidade, conceito central para o estabelecimento do objeto “efetivo”, “verdadeiro”, a objetividade apreendida em doação evidente, numa síntese de identidade concordante, é efetivamente, escreveu Husserl:
A todo objeto “verdadeiramente existente” correspondente por princípio (no a priori da generalidade eidética incondicionada) a ideia de uma consciência possível, na qual o próprio objeto é apreensível originariamente e, além disso, em perfeita adequação. Inversamente, se essa possibilidade e garantida, objeto é o ipso verdadeiramente existente” (HUSSERL, 2006, p. 316).
As sínteses envolvidas no pensamento fenomenológica, para o estabelecimento do “ser” ou do “não-ser” dos objetos correlatos noemáticos são “intencionalidades de ordem superior”, é aquilo que Husserl retirou do pensamento neotomista de Franz Brentano, livra-se do psicologismo, do eidos que temos do bem e do mal ainda escolástica do pai da psicologia social.
A intencionalidade de doação evidente dos aspectos ainda não presentes do objeto formam um horizonte intencional, na visão de Husserl, traz por sua vez, suas potencialidades já pré-determinadas, assim são falsas as visões fáticas de guerra e paz, de demônio e do mal.
São as intencionalidades mal-formadas (no sentido que não tem uma verdade noética), a verdade enquanto “ser”, enquanto “o verdadeiro” nas leituras fáticas e idealistas, são para Husserl uma “efetividade” (Wirklichkeit) já que guarda coerência em seu núcleo.
Assim o pensamento tradicional pensa ser ortodoxo ao se referir ao outro como “mal” ou como “demônio”, quanto na verdade esconde a intencionalidade noética de seu interior.
Husserl, E. Investigações lógicas. Primeiro volume: Prolegômenos à lógica pura. Tradução de D. Ferrer. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
Husserl, E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006