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O sócio e o próximo

29 fev

A relação concreta de amizade social só é efetiva em cada próximo, a ideia de generalização de atitudes sociais pode ser inserida em uma cultura, mas ela somente será efetiva se na relação com cada um com quem relacionamos ela se torne efetiva, senão é discurso e ideologia.

O texto do Paul Ricoeur “O sócio e o próximo”, que faz parte do livro ¨História e Verdade” não só modifica o conceito de verdade histórica como desvela que só há relação social concreta na medida em que inserimos em nossos diversos círculos sociais e a cada relação pessoal concreta.

O contínuo egoísmo, preconceito abre a alma em abismos de separação com o Outro, faz dela um contínuo de separação, exclusão levando a incredulidade no amor e na solidariedade social.

Mudar de atitude, transformar o egoísmo em gestos de bondade e viver em cada relação específica um amor até mesmo sobre humano que dá dignidade e respeito a cada ser que passa ao nosso lado, não é um altruísmo ou uma forma de ignorar os conflitos sociais, é também elevar a alma a um estágio de felicidade com os outros, e espalhar a esperança.

Enquanto a relação de sócio é apenas de um interesse pessoal, a de próximo ultrapassa esses limites e dá uma elevação no nível de confiança, inclusão e aproximação diferente do sócio:

Ao discorrer sobre a diferença entre estas relações, discorre sobre a caridade: “A caridade não precisa estar onde aparece; também está escondida na humilde e abstrata agência dos correios, a previdência social; muitas vezes é a parte oculta do social ”, Paul Ricoeur em Le socius et le Prochain (1954), e está traduzido no livro História e Verdade de 1968.

O texto nos lembra que assim como as instituições podem ter apenas relações de societárias, pode-se passar por elas também relações interpessoais, de afeto e de solidariedade e que tornam elas menos frias e menos burocráticas, onde se vê não um cliente ou um serviço a mais, mas um próximo pelo qual pode-se interessar.  

Não por acaso é um capítulo de História e Verdade, porque a verdade só é estabelecida entre amigos verdadeiros e que são próximos, e se são sócios serão apenas para estarem mais próximos, enquanto manter a aparência social, mesmo com espírito de empatia não é ainda a verdadeira relação humana se a pessoal não se realiza de modo concreto.

Assim a amizade social, deve necessariamente passar pelo amor verdadeiro a cada pessoa que passa ao nosso lado.

Ricoeur, P. História e Verdade, trad. F. A. Ribeiro. Companhia Editora Forense: Rio de Janeiro, 1968.

 

O próximo e a amizade social

28 fev

O texto de Paul Ricoeur “Le socius et le prochain” (o sócio e o próximo) já foi explorado neste blog, salientando a diferença entre uma relação temporal limitada de sócio e uma relação de filia e amizade que pode se estender por toda vida: o próximo.

Queremos agora reler o comentário feito por Henri Bergson sobre este texto, no qual ele articula que o “eu” parte de um “nós” que construímos como um “eu”, mas que não é addeste, então cabe a pergunta que “nós” é esse?

Designa essas outras pessoas que encontramos todos os dias nos nossos ambientes familiares e profissionais, ou esta presença difusa dos outros, de “todos” que, por exemplo, alegamos quando tentamos fazer alguém compreender?

Significa que agimos de modo compatível ou incompatível com a vida em sociedade: “o que aconteceria se todos gostassem de você?” na verdade, existe, para dizer o mínimo, duas relações muito distintas com os outros: outros como estrutura e outros como práxis.

Pelo primeiro termo, entende-se esta base como eficiência das leis, das instituições, e mais ainda, a consciência que temos da nossa incessante visibilidade aos olhos da sociedade: o que se faz é feito com base na possível existência de outros, mesmo quando ninguém está fisicamente “lá”, pela noção de outro como práxis, devemos entender as ações através das quais outro de alguém, no entanto, esta distinção corresponde exatamente àquela que Paul Ricoeur escreveu em seu livro “História e Verdade”, escrito para diferenciar entre “sócio e o próximo”, porque não só no mundo dos negócios, mas também na política e nos grupos sociais o que é verdade pode estar relacionado a alguma narrativa da “sociedade” pertencente.

Podemos falar da presença o Outro como estrutura no sentido de que o socius designa este lugar, esta ponderação simultaneamente implícita e legal de um outro invisível, anônimo, quase abstrato, mas ao mesmo tempo omnipresente, um pouco como condicional, que nunca deixaria de se manifestar para nós no Presente, de se tornar presente, mas nunca fisicamente (e sim mentalmente, constitucionalmente).

Por “próximo”, Paul Ricoeur designa a presença física imediata, pontual, de outra pessoa que conheço, temos boas experiências de estar próximos nas grandes cidades, pois ali vivenciamos muitas situações promíscuas (metrô, filas, etc.), mas, ao mesmo tempo, essa multidão com a qual sou obrigado a compor não é composta de “próximos”, já que não os conhecemos.

Se ativamos a práxis com o próximo sempre passando pela estrutura do “socius”, a relação supõe uma margem de escolha, de eleição, de desejo de aproximação ou rejeição, como se o nosso salário bruto e o nosso salário líquido, aquilo que é retirado do nosso salário pago, através de uma supervisão de uma autoridade administrativa, a “organização”, o Estado, a segurança social, etc.

Assim o sócio está vinculado a uma “práxis” social, enquanto o próximo depende só de uma escolha de relação humana independente da relação estrutural a qual está sujeito.

RICOEUR, Paul “O socius e o próximo”, in História e Verdade, trand. F. A. Ribeiro. Companhia Editora Forense: Rio de Janeiro.

 

Procrastinar e fazer bem bem-feito

27 fev

A procrastinação significa o adiamento de tarefas que são normais do dia a dia e outras excepcionais que são inadiáveis, a mesma Sociedade do cansaço (Byung Chul-Han escreveu um livro) é também a sociedade da procrastinação.

Adiar tarefas é contraprodutivo, quando se quer otimizar o tempo e ter tempo para descansar, fazer o lazer ou meditar é preciso não procrastinar e fazer as tarefas necessárias para que haja o tempo disponíveis para sentir o Aroma do Tempo (outro livro de Byung Chul-Han).

Entretanto podemos estar em atividades desnecessárias, em pequenos e grandes vícios, que além de nos roubar o tempo, roubam também o nosso tempo de parar, descansar e Ser.

É um problema humano de todos os tempos, para aqueles que acreditam que isto acontece por causa das novas mídias e celulares, que podem ser vícios também como outros, já o poeta da antiguidade Hesíodo (800 a.C.) escreveu: “deixar seu trabalho até amanhã e no dia seguinte” é um problema humano.

A pesquisadora de Harvard Caroline Webb em artigo na revista da universidade escreveu: “isso porque é mais fácil para nossos cérebros processarem coisas concretas em vez de abstratas, e o incômodo imediato é muito tangível em comparação com aqueles irreconhecíveis e incertos dos benefícios futuros”, por isto atividades que nos tiram da rotina e nos colocam em uma dimensão social, isto é, com o Outro, movimentam nosso cérebro para regiões “incomodas”.

Acreditar que você deve esperar estar com bom humor para fazer algo é uma armadilha que pode levar à procrastinação. Joseph Ferrari, um professor de psicologia na Universidade DePaul, nos Estados Unidos, descobriu que o pensamento “não estou com humor para cumprir X tarefa” pode levar a um ciclo vicioso.

Realizar pequenas tarefas, aquilo que o professor e pesquisador Tim Pychyl testou e confirmou a eficácia: “uma que os alunos começaram, eles avaliaram as tarefas como menos difíceis e menos estressantes, e ainda mais agradáveis do que pensavam”, assim isto devolve a rotina.

Tarefas como arrumar a cama, preparar o café da manhã, retirar as louças e lavá-las, e outras podem também trazer uma recompensa, tiram do stress e devolvem harmonia ao seu redor.

Se feita para fazer um bem, e sendo bem-feitas trazem também uma recompensa espiritual e não raro sentem um alívio “inexplicável” que é resultado de fazer um bem de modo bem feito.

Referência:

Webb, Caroline. How to beat procrastinantion, Harvard Business Review, 2016  Acesso em: fevereiro 2024, Disponível em: https://hbr.org/2016/07/how-to-beat-procrastination

 

2 anos de Guerra e a diplomacia

26 fev

Dia 24 de fevereiro completou 2 anos da guerra  da Rússia com a Ucrânia, que o governo russo chama de “operação especial”, que já matou milhares de civis na Ucrânia, que provocou uma ruptura com o Ocidente e que não tem perspectivas de trégua e pode escalar para a Europa.

Apesar do enfraquecimento o discurso de Zelensky foi de promessa de vitória, embora tenha sofrido revezes neste início de ano em vários fronts, o discurso de Putin é cada vez mais feroz e eloquente e não é impossível um enfrentamento direto com as forças da Otan, o que seria uma tragédia para todo o planeta pelo potencial bélico e nuclear que estaria envolvido.

Na Palestina Israel continua com bombardeios já chegando a cidade fronteiriça com o Egito de Rafah, no subúrbio de Shaboura, segundo o ministério da Saúde de Gaza, 97 pessoas foram mortas e também em algumas aldeias vizinhas houve ataques.

O Catar sediará uma reunião entre o Hamas e Israel com objetivo de finalizar um acordo de trégua esta semana, segundo fontes egípcias, os Estados Unidos consideram sempre possível o acordo definitivo de paz, porém continuam dando apoio a Israel e seguem conflitos com os Houthis do Iêmen que impede a passagem de navios cargueiros de bandeira americana.

Uma nova estratégia no Iemen tem sido forças táticas, lideradas pelo Reino Unido (foto) que auxiliam tanto o mapeamento como o bombardeiro das bases terrestres dos Houthis, já que eles não têm embarcações, fazendo ataques aos navios a partir de bases terrestres.

O presidente brasileiro Lula causou uma grave crise com Israel comparando a atual guerra de Israel com o período nazista, justamente o maior genocídio e a mais cruel guerra contra o povo judeu e provocou reações do governo de Netanyaho, de seus aliados e de brasileiros judeus que reclamam um tratamento igualitário ao dado aos palestinos refugiados.

O conjunto das guerras e retaliações endurecem os corações e põe em combate as forças que polarizam o poder ao redor do mundo, poucos são os países que não se alinham embora a esperança de paz resista de maneira heroica.

Como diz o centenário educador e filósofo Edgar Morin, é preciso uma resistência do espírito.

 

Clareira e a iluminação da consciência

23 fev

Existem diferentes experiências de consciência diferentes do racional, claro elas não estão livres da autossugestão e de certa forma todas são, porque algum nível de permissão damos a uma experiência que extrapola nossos sentidos, a musical é a cultural mais aceita e comum, a espiritual mais rara e sujeita a falácias e manipulações, mas todas tem algum sentido.

A clareira de que Heidegger fala partindo do mito da caverna de Platão não está presa ao nível racional, já que sua ontologia é a de volta ao Ser, e a experiência mais profunda do ser nunca deixará de ter um toque espiritual e cultural, porém esta clareira está ligada fortemente não há uma ideia coletiva, mas ao Ser interior e profundo de cada homem.

Seria possível uma iluminação da consciência de modo coletivo, aquilo que em termos cristãos se chama de “pentecostes”, avivamento, repouso no espírito e outros nomes, sim e não.

Sim é se de fato é uma tomada de consciência que leva a uma elevação humana e espiritual, não se é apenas autossugestão por técnica emocional e sugestão coletiva, é preciso que não haja uma falsificação da verdadeira consciência e não se confunda com fanatismo.

A crescente tensão mundial política, cultural e bélica pode levar a um estado de fanatismo, ódio e stress social jamais imaginado, porém é possível que as mentes fiquem alertas e uma nova visão cultural e espiritual evolua para um caminho diferente, uma espécie de “socorro”.

Walt Whitman foi um poeta, ensaísta e jornalista do século XIX, mal compreendido é hoje lido e reinterpretado por muitos autores, embora ainda pouco compreendido, diz em suas poesias:

“Como num desmaio, um instante, Outro sol inefável me deslumbra,
E todos os orbes conheci, e orbes mais brilhantes desconhecidos,
Um instante da futura terra, terra do céu.”

Tanto pode ser lido no plano social, uma mudança cultural, no plano espiritual (novos céus e nova terra diz a leitura bíblica) como até no plano político.

Os apóstolos de Jesus tiveram este momento propiciado pelo próprio Mestre, sobem ao monte Tabor e lá o veem iluminado com outras duas figuras (diz a leitura: Elias e Moisés, não seria a Trindade) e o êxtase de consciência é tão elevado que os apóstolos Pedro, Tiago e João querem ficar ali.

 

Foi o iluminismo uma iluminação

22 fev

Para analisar o iluminismo a luz da filosofia ocidental é preciso ler, claro com um espírito aberto a metafísica ontológica, a partir de Cassirer, sua crítica e análise a partir do apogeu do idealismo no século XVIII, “que se auto intitulou orgulhosamente de ´Século da filosofia’” (CASSIRER, 1992).

Esta filosofia considerava-se que “abriu caminho até aquela ordem mais profunda donde jorra, com o pensamento puro, toda a atividade intelectual do homem, e onde essa atividade deve encontrar seu alicerce, segundo a convicção profunda do iluminismo” (CASSIRER, 1992).

O autor observa que Hegel considerado “o primeiro a enveredar por esse caminho” como filósofo e historiador da filosofia, fez uma esquecida (Cassirer a chama de curiosa) retificação, que diverge do veredicto que “a metafísica do mesmo Hegel proferiu a respeito do Iluminismo” (Cassirer, 1992), reconhecendo seu papel e fazendo uma conciliação com esta (na foto o frontispício da L’Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences).

Tendo como principal influência Kant, Cassirer também sofreu influência de Herman Cohen (grande expoente do neokantismo no início do século 20) e Paul Nartop (um dos fundadores da escola de Marburg) e assim permaneceu preso no idealismo do neokantismo, porém não deixou de haver influencias nos pensamentos de Heidegger, Hans Georg Gadamer e Hartmann.

A questão científica no século XVIII encontrava-se em encontrar “uma fronteira determinada entre o espírito matemático e o espírito filosófico” (Cassirer, 1992, p. 34), começava assim uma dúvida que iria até o princípio do século XX quando David Hilbert numa Conferencia de Matemática anuncia 23 problemas que a matemática deveria resolver para considerar-se completa, entre eles o segundo problema era da consistência dos axiomas da aritmética, ou seja, que a aritmética podia resolver qualquer problema que fosse enumerável.

Foi Kurt Gödel quem demonstrou que este problema da prova finitista da consistência da aritmética é comprovadamente impossível, em seu segundo teorema da Incompletude, o que ficou conhecido como Paradoxo de Gödel, o sistema ou é completo ou finito, nunca os dois.

Para ajudar este desmoronamento do racionalismo cientificista, a física quântica também propôs através de Werner Heisenberg o princípio da incerteza, que anunciava que não se podia afirmar a posição de um átomo ou uma partícula atômica em determinada situação.

O idealismo é uma corrente forte ainda, mesmo nos meios científicos, mas suas bases tanto lógicas, como física e matemáticas já foram desmontadas pela própria ciência, filósofos da Ciência como Karl Popper, Tomas Kuhn e Imre Lakatos já anunciaram novos postulados.

O consenso é que o pensamento humano necessita de uma visão mais ampla, uma cosmovisão que não se limite as chamadas ciências exatas, recupere a importância da linguagem, do estudo do Ser e de uma visão transdisciplinar que libere os limites estreitos de cada área do saber, sem deixar de admitir os mistérios, as crenças e as culturas originárias.

CASSIRER, E. A filosofia do iluminismo. Trad. Álvaro Cabral, Campinas: Editora Unicamp, 1992.

 

Jonas e a resistência do espírito

21 fev

Ao nos aproximarmos de grandes tragédias, a alegoria Bíblica de Jonas é interessante de ser lembrada, até mesmo o filósofo Peter Sloterdijk a destaca, ainda que não seja cristão, é bom lembra que Jonas também está no Alcorão e é personagem importante para o judaísmo.

A curiosa passagem Bíblia em que Jonas deveria evangelizar a cidade de Nínive para ela não perecer, uma das maiores de seu tempo, acredita-se que por medo dos Assírios, conhecidos por sua crueldade, Jonas tentou fugir num navio para Társis, que sofrendo uma forte tempestade, descobrem que o motivo é Jonas que é lançado ao mar.

No mar, Jonas teria passado três dias e 3 notes no ventre de uma baleia e depois seria lançado na cidade de Nínive para que retornasse a sua missão, ali ele pregou e Nínive se converteu.

Sloterdijk não usa os termos dualismo ou polarização, usa mesmo antes da atual polarização mundial que provoca guerras sangrentas e grandes polêmicas, o filósofo usa os termos díade, uma relação entre dois ou mais diferentes que não há centro e sim um policentrismo.

Isto é básico para entender quem é Jonas para o filósofo alemão, ele o vê como um profeta e adorador do Deus dos judeus, que tem como dever estabelecer a relação entre no divino e o humano, e que para os humanos habitarem o divino precisam conhecer e rejeitar as perdições do humano no mundo.

A pergunta central de Sloterdijk em Esferas I – as bolhas, é onde estamos quando estamos no mundo? E na língua alemã há uma palavra específica para estar no mundo e estar COM o mundo, a palavra é “vorhandensein”, que quer dizer “ser-no-mundo”, que embora signifique outra coisa para Heideggeer que seria apenas “dasein”, ela adquire um significado maior.

Para Sloterdijk os únicos corpos que estão fora desta díade ou deste policentrismo “os únicos corpos que são localizados sem dualidade no mundo são os dos mortos” (Esferas I), ou seja, toda vez que você se encontra em um lugar você está nele e com ele, você o vê e o reconhece.

Onde Jonas estava quando estava no mundo? Dentro da baleia. A baleia é parte da consciência de Jonas que lhe provoca a pensar no exterior a partir de um interior. Heidegger já havia pensado neste puro interior de que todos somos vítimas, um espaço radical e intrínseco, nossa habitação única e primeira por onde permeiam todas as nossas impressões, pensamentos e afetos. 

A relação com o exterior é então de “tensão”, não é só filtro do externo, mas também é lente para entender tudo, até mesmo o próprio interior, assim estar na “baleia” foi preparação para Jonas enfrentar, vejam que antes há uma tempestade no navio que está “no mundo” e ele é jogado para fora.

O nosso caminho interior deve “ajudar”, iluminar e nos conscientizar do que somos “no mundo” e sermos como mundo outra coisa quando temos esta luz.

SLOTERDIJK, P. Esferas I : bolhas.  Tradução José Oscar de Almeida Marques. Sáo Paulo : Estação Liberdade, 2016.

 

A clareira e a verdade

20 fev

O conceito de verdade na filosofia grega não surge da lógica, da matemática ou da física, a alegoria da Caverna em Platão, onde aqueles que estão na caverna veem apenas as sombras e não a verdade como ela é, na interpretação de Heidegger, ele vai demonstrar que o esquecimento do verdadeiro Ser das coisas produzidas pelo pensamento moderno (Kant e Descartes) nada mais é do que o resultado necessário de uma forma de pensar metafísica.

Esta metafísica sofreu uma mudança na determinação da essência do conceito de verdade: nesta passagem ocorreu uma transformação da noção de verdade como desvelamento para a noção de verdade como correção ou correspondência do pensamento como a coisa.

Esta interpretação começa pela correção da palavra grega eidos e ideia (Ideia) por “aspecto”, este aspecto de um ente não é a sua mera aparência tal como percebida de forma imediata pelos sentidos, é aquilo como o ente se mostra mediante aquilo que ele se apresenta.

É nesse automostrar-se no seu aspecto que o ente aparece e pode ser captado pelo intelecto (Heidegger, 2007, p. 3), assim como o olho vê os objetos sensíveis em sua aparência externas graças à luz do sol, o homem “vê” o ser à luz das ideias, assim as Ideias iluminam o ser dos entes, tornam visíveis a sua essência (na terminologia de Heidegger: o entitativo do ente), e permitem que a alma a contemple.

Como afirma Heidegger (2007, p. 6): “Os aspectos dos quais as coisas mesmas são, ou seja, as eidee (as ideias no sentido grego), constituem a essência em cuja luz todo ente particular, este ou aquele, se mostra em cujo mostrar-se o que aparece chega a ser recém desoculto e acessível”.

Heidegger afirma numa passagem do Ser e o Tempo, que a concepção tradicional de verdade (de Kant e Descartes) baseia-se na premissa que a essência da verdade reside na concordância do juízo com o objeto (adequatio intelectos et rei) uma correspondência (ou omoiosis) sem explicar o que é a noção de correspondência.

A proposição ontológica de mostrar o que e descobrir o que ele é (Heidegger, 2005, p. 288) é assim algo que “descobre o ente em si mesmo, propõe, mostra permite ver (apofánsis) o ente em seu estado de descoberto”, desvela o ser em si mesmo, porém o Ser foi esquecido.

Como afirma Heidegger: “O ser verdadeiro do lógos como apofasis é o aletheien”. A alethéia, o desvelamento, portanto, é “o fundamento do fenômeno original da verdade” (Heidegger, 2005, p. 288).

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005. vol. 1.

HEIDEGGER, M. La doctrina de Platón acerca de la verdad. Eikasia, Revista de Filosofía, v. 12, Extraordinário I, 2007

 

Perspectiva de guerra e embriaguez do espírito

19 fev

O tom e as ações de uma guerra sem escalas se ampliam, poucas são as nações e vozes que não estão sobre aquilo que o filósofo centenário Edgar Morin chama de “embriaguezes coletivas”, e clama que haja resistência capaz de reagir a todas as mentiras espalhadas.

O comandante das forças da OTAN Chris Cavoli, anunciou um exército de 90 mil homens, e um exercício chamado de Steadfast Defender 2024, que deverão ocorrer em maio, dele participarão 50 navios, de porta-aviões a destroieres, 80 caças, helicópteros e drones e mais de 1.100 veículos de combate, incluindo 133 tanques e 533 veículos de infantaria.

A Rússia despista e diz que não invadiria a Letônia e a Polônia, tomou de vez a cidade de Avdviika (foto), um dos frontes estratégicos e onde a guerra está mais violenta, Zelensky diminui a perda afirmando que recuou para “salvar vidas”, entretanto a guerra continua sangrenta.

Em entrevista neste domingo (18/02) Putin diz que a Ucrânia “é uma questão de vida ou morte” para o país, a morte do opositor Navalny repercutiu no mundo inteiro e será um divisor de águas para saber aqueles que apoiam um regime claramente bélico e autoritário.

Na faixa de Gaza, a cidade de Rafah com milhões de refugiados palestinos segue sob ameaça israelense, um hospital foi invadido pois haveria uma notícia que “reféns estariam ali”, porém não foram encontrados, somente armamentos e com a invasão pacientes na UTI morreram.

Seguem os apelos internacionais para que Israel não coloque em risco civis que na sua maioria estão refugiados em Rafah e o Egito ergueu um enorme muro de modo que não podem fugir dali para o Egito e isto coloca em risco milhares de mulheres, crianças e outros civis que estão lá e não tem para onde fugir.

As negociações ficam mais difíceis em cada ação de Israel e o envolvimento do Irã e outros países árabes vai se tornando cada dia mais inevitável, será neste front que uma possível 3ª. guerra ocorrerá, a resistência do espírito reivindicada pelo centenário filósofo e educador Edgar Morin deve lutar contra os fanatismos e ódios que só disseminam a morte e a guerra.

Em uma entrevista anterior a publicada no jornal italiano La Reppublica, Morin havia dito: “toda a guerra encarna o maniqueísmo, a propaganda unilateral, a histeria bélica, a espionagem, a mentira, a preparação de armas cada vez mais mortíferas, os erros e as ilusões, inesperados e surpresas”, é preciso uma resistência do Espírito para a Paz.

 

Resistência ética e do espírito

16 fev

A resistência ética, ou a resistência do espírito que fala Edgar Morin, é o reconhecimento “de um retorno aos dogmatismos e aos fanatismos, e uma crise da moral enquanto se espalham os ódios e as idolatrias” disse o filósofo.

Não é possível estabelecer a ética quebrando as regras mais elementares da ética que o respeito pela dignidade do Outro, não é possível fortalecer a moral se espalhamos todo tipo de imoralidade da política aos costumes e não é possível falar de espírito se o que existe é só uma pura idolatria em diversos sentidos, do cultural ao religioso.

Não se trata mais apenas das guerras, que em si já são uma catástrofe, porém “as qualidades da nossa civilização deterioraram-se e as carências aumentaram, em particular no desenvolvimento dos egoísmos e no desaparecimento das solidariedades tradicionais”, disse Morin em entrevista ao jornal italiano La Reppublica (24/01/2024).

O apelo ao fanatismo político polarizou a sociedade, quem defendia a democracia a agride com as formas mais arbitrárias de poder, no campo religioso quem defende práticas e ritos religiosos esquecem de fazer o bem ao semelhante e de respeitar os diferentes credos, cada um ter razão a sua maneira, segundo sua própria moral e o resultado são escândalos morais.

Como aquele fariseu que pratica o jejum e faz negócios escusos e maltrata seus funcionários, ou como aqueles que mesmo conhecendo os preceitos religiosos procura justificar suas faltas com argumentos ou leitura religiosa factual e não contextual.

Uma ascese que não inclua mudanças de atitudes e de comportamentos, uma resistência do espírito a tudo que parece justificável de imoral e duvidoso espiritualmente, deve ser um caminho para uma ascese verdadeira que faça uma verdadeira resistência do espírito.

As tentações de Jesus no deserto, em que foi lhe oferecido honra, glória e poder para ceder ao mal, mais que uma alegoria é um caminho para que conquistas sejam feitas de modo modesto, justo e sem ofender aos que estão por algum motivo dependentes de nós para o sustento.

Apelos a riqueza, ao poder e ao luxo em nome de religiosidade são as idolatrias mais claras e o reverso de qualquer resistência do espírito ou de resistência moral a decadência civilizatória.

As guerras não são outra coisa que as tentações do poder e da opressão a povos, grupos ou culturas que serão subjugados pela força bruta, pela humilhação e até mesmo pela morte de inocentes.

A esperança de paz, de moralidade e ética está em conservar uma resistência do espírito.

Morin, E. A resistência do Espírito, Italia: La Reppublica, 24-01-2024.