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Se aquela noite vier
A Europa vive sobre o medo de uma nova onda da pandemia, e mesmo assim ainda a solidariedade aos que falecem é pequena, até há expressão de sentimentos ou alguma comoção, mas o sentimento humanitário fraterno é localizado às pessoas que sempre caminham em ações humanistas em momentos de crise.
O aconteceria se houvesse alguma catástrofe natural ou algo que chamasse a humanidade à consciência de um modo ainda mais grave, claro que não é desejável e não se deve espalhar este pânico, porém por hipótese se uma noite mais profunda se abatesse sobre a humanidade talvez uma nova tomada de consciência da grave situação da civilização fosse pensada e alcançada em larga escala.
Também é visível que são os últimos na valorização social aqueles que mais são solidários, já vivendo em situação grave a pandemia os torna mais solidários, ali a fraternidade é uma necessidade para a própria sobrevivência humana.
A noite e a cegueira não é anunciada agora pela pandemia, aqui neste blog em várias postagens chamamos a atenção para a noite cultural, social e até mesmo religiosa da humanidade, o caminho do processo civilizatório parece estar em colapso, isto quem observa a história ao longo dos últimos séculos é claramente visível, duas guerras, processo de isolamento social de culturas, raças e credos, preconceito a migrantes e principalmente aumento da desigualdade.
Se a noite vier, ao contrário daqueles que imaginam que as vidas humildes sejam “vidas desperdiçadas”, será ao contrário as vidas arrogantes e opulentes aquelas menos preparadas para uma “noite civilizatória” já em curso.
Não foi a pandemia que fez isto emergir, ela apenas tornou evidente e palpável o que já está em processo a algum tempo, porém o que se deve indagar é se houvesse uma noite alargada, visível que nos coloque em xeque.
Não se trata de uma visão apocalíptica ou mesmo profética, sem deixar de ter respeito por elas, um olhar profundo sobre os processos desumanos, violentos e antissociais que se vive, a decadência e o agravamento da crise está aí.
Se a noite vier, poucos estarão preparados, somente aqueles que já estão em ambientes e processos solidários, aqueles que durante o período de calmaria trabalharam e vivenciaram o lado fraterno, humano e solidário da vida cotidiana.
Auxilio efetivo a pobreza
Se por um lado é necessário o auxílio emergencial, principalmente porque a pandemia impede o exercício de trabalho informal e muitas famílias economizaram com empregados domésticos, é necessário um plano de recuperação a médio e longo prazo para evitar uma degradação e uma distribuição de renda ainda pior do que a que já existe.
O economista Muhammad Yunus é conhecido no mundo inteiro como “o banqueiro dos pobres”, mas na verdade não é um banqueiro no sentido convencional, pois ele auxilia pessoas que nunca tiveram acesso a nenhum sistema bancário, o que fomenta é um empreendedorismo, principalmente entre mulheres, e seus resultados são surpreendentes.
É verdade, entretanto que fundou um banco, o Grameen Bank em 1983 em Bangladesh, porém hoje o que mais faz são palestras, é um dos oradores mais solicitados do planeta, e recebeu entre outros prêmios, o Nobel da Paz em 2006.
Em suas palestras censura e critica banqueiros que visam apenas o lucro fácil, os juros escorchantes e pouco ou nada olham para a realidade social em que vivem, uma de suas frases muito conhecidas diz: “Lidar com teorias econômicas diante de pessoas morrendo [de fome], para mim era uma piada”, isto é ainda mais verdade numa pandemia.
O produtivismo utilitarista, a produção é necessária principalmente em bens essenciais, é aquele que visa apenas os setores mais atrativos onde o lucro é alto e o impacto social nem sempre tão alto, no que se refere aos pobres, e no caso da educação e da saúde, é necessário até mesmo que não seja considerado o lucro, pois se trata de investimento.
A ideia que invadiu diversos setores, e infelizmente também na educação e na saúde pública, que é necessário que estes setores sejam produtivos não é senão uma reprodução de um capitalismo selvagem incapaz de gerir a crise atual, e só está em alta por causa da desinformação da população, em tempos sombrios teorias autoritárias ganham voz.
O que Yunus diz sobre empregos é muito interessante: “Uma questão essencial está na ideia de emprego. Quem disse que nascemos para procurar emprego? A escola? Os professores? Os livros? Sua religião? Seus pais? Alguém colocou isso na cabeça das pessoas. O sistema educacional repete: ‘você tem que trabalhar duro’. Seres humanos não nasceram pra isso. O ser humano é cheio de poder criativo, mas o sistema o reduz a mero trabalhador, capaz de fazer trabalhos repetitivos. Isso é vergonhoso, está errado”, aqui precisamos vencer também o economicismo assistencialista.
O mundo digital no qual qualquer pessoa pode ter um sistema online e trabalhar nele, onde empregos “informais” podem tornar pessoas de qualquer localização, inclusive da periferia empreendedores, vão de encontro a proposta de Yunus, tornar os “serviços” mais próximos da população de periferia é possível graças a onipresença do digital.
Empreendedores existem em todas camadas sociais, arrisco até a dizer que eles se concentram na periferia, o problema é quem se arrisca a colocar capital ali, quem poderia financiar estes “microempreendedores” de periferia, aí há solução, o número de empregos pode crescer rapidamente e haver circulação de bens e renda em ambientes frágeis.
Perdão, utopias e mudança
Não só pessoalmente, mas principalmente socialmente o perdão pode mover a história no caminho inverso do ódio, da guerra e da opressão, isto não é diferente em muitas religiões, afinal a “regra de ouro”, não faz ao outro aqui que não gostaria que fosse feito a si, está presente nas grandes religiões e culturas contemporâneas.
Há vários textos e discursos sobre o perdão que não estão conexos com a realidade, por exemplo, quem perdoa nem sempre esquece, o perdão deve reparar o dano, porém não significa que isto seja proporcional, muitas vezes não é.
Cada ofensa se repetida não deve ser perdoada, lembremos do ensinamento de Jesus: “setenta vezes sete” (Mt 18, 21), apenas para dizer muitas vezes, e se entendemos que o erro é mais comum do que imaginamos (veja os vários posts desta semana) pode-se entender melhor a oração dada pelo próprio Jesus: “perdoai nossas ofensas, assim como perdoamos o quem nos tenha ofendido”, este é o caminho possível do Amor em muitas dimensões.
Lembro que este trecho vem logo depois da passagem que Jesus pede a unidade das pessoas (não precisam ser cristãos, mas estarem “em seu nome”), “onde estiverem dois ou três em meu nome, aí estou no meio deles” (Mt 18,20), assim não há proprietários desta “presença”, inclusive ela pode não estão entre pessoas que são religiosas.
Karl Jaspers (1883, 1969), que influenciou muitos dos pensadores modernos como Hannah Arendt e Heidegger, em seu livro Introdução ao Pensamento filosófico indagava sobre o caminho que já trilhávamos muitos anos atrás:
“Irritamo-nos mutuamente. A psicologia profunda surge como refúgio que tudo obscurece. A superstição científica leva a recorrer, para busca de salvação, às pseudociências. E nos dizem: quando tiverem desaparecido todas as ficções e ideologias, o homem, até agora doente e alienado (em sentido etimológico), recuperará saúde. E a saúde é a felicidade, o fim supremo” (Jaspers, 1965, p. 30).
É claro que existe ciência verdadeira que não é pseudociência, e que a felicidade que não tem bula nem fórmula, pode e deve ser almejada, porém a recuperação da saúde emocional depende de rever a história e daí caminhar para frente.
JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico. SP: Cultrix, 1965.
Onde leva a ira e onde leva o perdão
Pode-se considerar a primeira ideia da ira política ocidental, do século VIII a.C., a Ilíada de Homero aquela que levanta a primeira voz sobre a ira, já na primeira frase: “canta, ó musa (Muse) a ira (mènin) de Aquiles”.
Parece que esta é a voz corrente do Ocidente de Zizek a Sloterdijk todos parecem concordar com isto, menos Edgar Morin e claro alguns pacifistas, mas que ficam envergonhados diante de tamanha desfaçatez dos líderes conservadores.
Mas há bem poucas crónicas que falam do sucesso destes líderes, e parece que a pandemia os ajudou, com medo a ideia de um governo forte que cuida dos fracos é mais forte do que a voz da insurreição e da liquidez, há outras vozes porém.
A ideia de perdão é ironizada e a vingança e a ira parecem potencializadoras de uma mudança, porém o sentimento de compaixão e de perdão é inerente a ética humana, por mais que ela esteja confusa com a ética do estado que dispensa muitas vezes a moral, ela é a única esperança de que o quadro da cólera possa se inverter, é claro com arrependimento dos opressores, mas o discurso corrente é que isto é impossível e que as pessoas jamais mudariam, e com a pandemia!
É claro que perdão sem arrependimento e sem reparação não é aceitável, e não é verdade que basta se confessar e mostrar arrependimento que está “salvo”, há efeitos e punições sociais que podem levar o opressor a sua reparação, mesmo que esta possa ser muito menor que o dano causado, porém não há como mudar de rota, de rumo, sem perdão.
O que é preciso compreender é que as ofensas quando brotam em torno de uma polarização elas podem favorecer aos que raramente não tem defesa, social, política ou ideológica, e isto favorece aos fortes, o medo pune os fracos e nunca os cruéis, acostumados a fazer com ele um jogo de risco e sádico prazer.
Edgar Morin esclarece que: “A compreensão não desculpa nem acusa, pede que se evitar a condenação peremptória, irremediável como se nós mesmo nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas”, e está no sentido inverso neste momento, o que favorece a líderes autoritários e aos que desejam que o ódio cresça.
Para sermos solidários com o Outro, que não é nosso espelho, tem que “tomar consciência da incerteza do futuro e de seu destino comum”, a pandemia pode ainda tornar consciente que devemos cuidar do Outro.
O perdão não muda os acontecimentos, mas pode mudar o sentimento em relação a eles, não muda o rumo da história, mas o destino de histórias pessoais e/ou coletivas quando o problema é encarado de frente, superando a ira e o rancor.
Se formos honestos diante do espelho, se formos capazes da autocrítica, como postamos anteriormente, conforme afirma Popper: “A autocrítica é a melhor crítica”, é dela que pode nascer uma crítica com consequências positivas.
Ódio, desdém e reflexão
Não é por acaso que a região do cérebro de estruturas como o córtex frontal medial, cuja capacidade de argumentar e portanto de dialogar se encontra ali, tenha como núcleo o putâmen, o córtex pré-motor e o córtex insular, cujas estruturas participam também da percepção do desdém e do nojo, isto é a ativação do ódio está fisicamente no cérebro próximo àquelas áreas associadas ao julgamento e ao raciocínio, assim pode-se tanto ativar um como o outro, há as duas opções.
Os que querem justificar o ódio então estão cheios de argumentos, são capazes de raciocínios até profundos para agir contra o odiado, mas se a premissa for o diálogo o mesmo raciocínio pode ser usado para compreender, cuidar e desviar a violência do outro, como algumas artes marciais ensinam, desviado o “corpo”.
O ódio não desaparecerá esperando que as circunstâncias externas mudem, em geral ela não acontece, não é uma mágica, para curá-lo é necessário que se reconheça a diversidade, sua problemática, como diria Gadamer ter consciência dos pré-conceitos, isto é, dos fundamentos que iniciam uma desavença ou um tipo de crédito, reconhecer o Outro em sua bolha e reconhecer a nossa, ambas como tendo pré-conceitos.
Se de fato ativamos a parte do raciocínio, do pensamento e colocamos as desavenças neste nível, atenuamos um pouco a parte do ódio, mas é essencial perguntar e uma parte de nosso ódio viria abaixo ao refletir dessa forma: “Por que odeio? O que pretendo conseguir com isso? O que ganho e o que perco com meu ódio?”.
Não conheço situação que se resolveu neste caso, em geral levou a um conflito maior, a um ódio mutuo maior, se o objetivo é a guerra provavelmente chegaremos lá, mas creio que para a maioria das pessoas não é, então o que falta é refletir, analisar as origens de tal “mal” em suas bases mais profundas.
O ódio deve ser combatido com a compreensão e principalmente que leve a um novo tipo de ação, o que implica reconhecer em primeiro lugar que ele existe e é fomentando por dois lados e não por um só, nas manifestações das pessoas e em suas propagandas, as denuncias são recorrentes para dizer toda verdade está deste lado e no outro só mentira, é preciso explicar as consequências e que de fato quem se beneficia são aqueles cuja razão de existir e de pensar é mesmo o “ódio”.
Pessoas sábias de diversos matizes como Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela ou madre Teresa de Calcutá com sabedoria e inteligência diante de conflitos enormes e absurdos souberam mostrar que a bondade e a generosidade, a criatividade e o respeito ao outro podem levar a buscar um bem coletivo maior e em embora um pouco mais demorado terão frutos mais duradouros, com menos violências e mortes, mas porque mesmo em grupos sérios o ódio persiste, a resposta é muito simples.
Incentivados por líderes e grupos que vivem em bolhas políticas, ideológicas ou religiosas, o principal recurso é a demonização do adversário, identificado com algum aspecto repugnante do mal: morte, corrupção, violência sexual, racial ou de gênero, enfraquecimento de valores ou algo do tipo, e uma vez unidos em grupo o medo desaparece e isso reduz a inibição de quem odeia para agir de outras formas não a da argumentação e exposição dos fatos, mas a violência contra a violência.
Os líderes que incitam este ódio, dizem já não poderem controla-lo, mas no fundo o desejaram, desenvolvem esta parte do raciocínio que dizemos no início perto da parte do cérebro do putâmen, e liberado o ódio será executado pelas pessoas que usam a outra parte com menos raciocínio e mais visceral, assim o ódio “explode”.
O que devemos pensar diante de fatos indignos, e neste momento não deveria haver nenhum maior que a pandemia, é que o sentimento de medo e de exaustão pelo confinamento é explorado não em conseguir modos de relaxamento e anti-stress, mas de liberá-lo em formas violentas, quais as consequências ? e a quem estão favorecendo ? penso que aos odiosos, e não aos amorosos que de fato tem amor pela humanidade e pelo apreço mais frágeis.
Parece um caminho sem volta, em meio a pandemia e com duas eleições tensas se aproximando, a nacional dos Estados Unidos e as municipais no Brasil, vejo pouca ou quase nenhuma discussão sobre a pandemia e sobre os que morrem todos os dias, as famílias enlutadas e a compaixão com estes, nem de um lado nem do outro.
Felizmente os níveis de mortalidade diminuíram, mas o fim de semana prolongado prometem aglomerações, a vila de carros para a praia era enorme, e a pandemia ?
A unidade e o terceiro incluído
A polarização, o dualismo e a ontologia binária (o ser é e o não-ser não é) estão tão presentes nas relações humanas do cotidiano que é difícil pensar numa terceira hipótese, porém a física quântica já a descreveu e mais do que seu efeito fantasmagórico (Einstein, Podolski e Rosen assim o chamaram e este efeito ficou então conhecido como EPR), há um efeito na vida real, os computadores quânticos vem aí, e seria bom que a filosofia acordasse de seu sono racional (que nada tem de líquido nem de sólido), e despertasse para uma nova realidade.
A lógica clássica aristotélica justifica a exclusão de um terceiro termo e ela prevaleceu até recentemente é ela que está na base das filosofias fundamentalistas, racistas e cientificistas, que fundamentam também o princípio do terceiro excluído que separa o “bem” do “mal” (o maniqueísmo) segundo esta lógica:
- Axioma da Identidade: “A é A”
- Axioma da Não-Contradição: “A não é não-A”
- Axioma do Terceiro Excluído: “não existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A”.
A lógica da física e também do cientificismo (não é a verdadeira ciência) estabelece isto, porém a contradição entre identidade e não-identidade é observada pela física quântica, sendo chamada de princípio da superposição quântica, cujo efeito foi estudado dentro da física chamado de “tunelamento” observando partículas qu transpõe o estado classicamente proibido.
A lógica do terceiro excluído foi primeiro enunciada pelo filósofo Stéphane Lupascu (1900 –1988), onde existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A, seu formalismo axiomático prevê que coexiste com a dinâmica da heterogeneidade (a qual pertence a matéria viva e o complexo universo), com a da homogeneidade (a qual governa a matéria física macroscópica), e assim existem diferentes “níveis de realidade”, claro toda o cientificismo fica em cheque.
Esta nova lógica (nível Q) não abole a lógica aristotélica do “sim” e do “não” (nível C), uma vez que apenas não se considera a existência de dois termos, mas além destes um terceiro (T) (veja a figura).
O primeiro a estabelecer os diferentes níveis de realidade foi Barsarab Nicolescu (1942- ), ele descreveu uma mudança de um nível de realidade para outro com leis, novas lógicas e conceitos próprios de cada nível, e assim estabeleceu o conceito da transdisciplinaridade, que também engloba a complexidade.
Esta lógica admite estabelece para a transdisciplinaridade três pilares:
- Diferentes Níveis de Realidade
- Lógica do Terceiro Termo Incluído
- Complexidade
Assim deve-se admitir, por exemplo, que entre duas pessoas existe um terceiro nível de realidade no qual nenhuma das lógicas pessoais estão submetidas e podem e devem ter uma abertura suficiente para uma nova realidade, da qual emerge um novo horizonte e uma nova percepção da verdade.
Não se trata de relativismo onde a verdade não existe, mas sim um estado de equilíbrio rigoroso, aceitar que entre os polos de uma contradição, existe uma semi- atualização e uma semi-potencialização igual para os dois pólos, este é o estado T.
Isto muda a lógica científica, alguns como o físico Fritjof Capra desenvolveram teorias científicas e até certo ponto místicas para esta nova compreensão dos “níveis de realidade”, as verdades da fé não são fundamentadas em princípios científicos, mas estes podem ajudar a que não ocorram desvios fundamentalistas e é possível encontrar processos análogos em leituras bíblicas.
Uma passagem que penso ser fundamental é a de Mateus 18,20: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles”, assim a verdade emerge entre os homens e não na consciência e sabedoria individual de cada homem, em termos bíblicos pode-se dizer que aqueles que de fato reúnem-se em torno da palavra e dos ensinamentos de Jesus podem ter uma iluminação especial com sua presença, a instrumentalização e manipulação do seu nome não é “presença”.
Também Sócrates afirmou que a verdade não está com os homens, mas “entre os homens” isto indica reconhecer a dignidade do Outro e respeitá-lo seja quem for.
Autores e diálogos
Li um texto de 1968 de Roland Barthes “A morte do autor” no qual ele problematiza o conceito, propondo-o como “a destruição de toda a voz, de toda origem”, ele diria também do homem (de hoje) num momento conturbado de conceitos e de acontecimentos verdadeiramente e “estranhos” que estão se construindo “barricadas nos textos”, o que dizia de seus contemporâneos (Alain Badiou e Jacques Derridá afirmaram que sem este conceito não se pensa criticamente nenhum objeto), e o que diria hoje, certamente que sua tese estava certa, e hoje mais ainda.
É sabido que Foucault deu umas alfinetadas em Barthes, mas em Sade, Fourier, Loyola elas foram devolvidas ao inserir no jogo discursivo o leitor e reformula a questão da autoria em outra dimensão: o corpo, este objeto de consumo de tantas teorias hoje, somente em Barthes encontra alguma solidez (não líquida).
Para Barthes o texto é um corpo, um objeto de prazer dotado da capacidade de penetrar na vida do leitor em fragmentos, gerando coexistências entre leitor e autor, ou textualmente:
“O prazer do texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não é por certo aquele que foi identificado por nossas instituições (história e ensino da literatura, filosofia, discurso da Igreja); nem mesmo o herói de uma biografia ele é … é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopéia de um destino; não é uma pessoa (civil, moral), é um corpo.” (BARTHES, 2005).
Barthes propôs em 1977 (Leçon) uma distinção dos termos: literatura, escrita e texto, que é particularmente interessante conceitualmente, a escrita tem algo que é a manuscrição uma inscrição na qual se supõe um suporte, um utensílio, em segundo lugar (embora seja apenas de caráter didático) o sentido cognitivo, pelo qual se designa a instalação e o terceiro as formas “linguageiras” dotadas de significação que tomam um sentido artístico.
Para problematizar a questão da “pluridimensionalidade” proposta por Barthes para a literatura ele inicia a chamada “crítica genética”, problematizando o aspecto enunciativo do termo, tem como objetivo reconstituir uma história do texto em estado nascente, buscando encontrar nele os segredos de fabricação da obra, e assim é explicado o que é um texto e sua relação com a literatura.
É aqui que se estabelece o diálogo pela língua, sem a compreensão da genética de um texto, pode haver solicitude ou diálogo, mas não sairia da superficialidade e nem atingiria aquele nível desejável para muitos autores contemporâneos de assumir os pré-conceitos e estabelecer novos horizontes.
Barthes faz uma valiosa reflexão acerta da escuta distinguindo-a do ato fisiológico do mecânico de “ouvir”, dando-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção, categoria tão cara á hermenêutica embora não seja exatamente a mesma, guarda similaridades.
autor faz uma valiosa reflexão acerca da escuta, distinguindo-a do ato fisiológico e mecânico de “ouvir”, conferindo-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção.
É famosa a frase de Barthes: “Toda a recusa duma linguagem é uma morte” e um interprete deste autor explicita a diferença entre ouvir e escutar: “[…] uma escuta poiética (‘bruta’, como o quer Barthes) visa não aprisionar sons de uma maneira hierarquizante, como num insípido objeto de análise fria” (El Haouli, 2002), é este aspecto de diálogos hierárquicos que dominam muitos que julgam fazê-lo mas não o fazem, apenas desejam a submissão passiva do Outro às suas categorias.
BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, Paris: Seuil, 1971. [tradução: Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
EL HAOULI, Janete. Demetrio Stratos: em busca da voz-música. Londrina: Gráfica e Editora Midiograf, 2002.
Virus e mutações aórgicas
Certamente o que somos hoje como estrutura física e DNA não foi sempre assim, também nossa relação com doenças e vírus são diferenciadas, doenças “infantis” como sarampo, caxumba e rubéola tornaram-se comuns e uma vacina tríplice tornou-se obrigatória, combatem estas doenças mais comuns, ao passo que em tribos indígenas e alguns povos podem ainda ser mortais, isto porque suas estruturas físicas são diferenciadas.
Certamente algo aconteceu com o mundo inorgânico que influenciou o físico, parece assustador, mas é trivial dizer que o mundo físico antecedeu ao orgânico, portanto em nossa origem aconteceu uma mutação aórgica.
O homem não existiu sempre, acredita-se conforme estudos científicos que o homo sapiens surgiu na África Oriental por volta de 300 mil anos atrás (Hubrin, Ben-Ncer, 2017), se espalhou primeiro para o leste do mediterrâneo 100 mil anos atrás (Khan, 2015) e 60 mil anos foi para o oeste, pode ter chegado na China cerca de 80 mil anos (Sherwell, 2015), então porque variações de pele, de estrutura física e tolerância a doenças aconteceram, certamente devido a mudanças alimentares, climáticas e também variações na estrutura física conforme a adaptação ao ambiente, isto é também aórgicas, desde a estrutura primordial do homem formada a partir do mundo físico.
Muitas pesquisas sobre vírus que afetaram nossos antepassados já foram estudados, como o Mollivirus sibericum, classificado como um “vírus gigante” porque pode ser visto em um microscópio ótico simples, além dele também o Pithovirus Sibericum foi estudado por uma equipe francesa do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, assim há uma “evolução” e transformação dos vírus e como afetaram historicamente o homens e a natureza, porque agora surgem vírus cada vez mais “fortes” e com características diferentes, também é uma mudança aórgica, porém ela pode também afetar a natureza, a parte física do planeta e assim a história.
No embate entre razão e entendimento, diversos autores trataram a questão aórgica desde a análise estética até o física, por exemplo, usaram estes temas Schiller e Hölderling e a apropriação aqui, para fazer inferências sobre o inorgânico (vírus não é um organismo) e demonstrar que a totalidade orgânica (holismo orgânico) não é prevalente sobre ao inorgânico (holismo aórgico), que supõe um regime de ataxia e desordem, assim como o holismo sistêmico, o pretenso discurso único que invadiu a sociologia, a história a moda de Dilthey (Gadamer o contesta) e a polarização atual não é senão um holismo sistêmico, idealismo e física pré-quântica.
Por esta teoria do holismo aórgico pode-se supor que não apenas a estrutura física orgânica do humano poderá se modificar, mas até mesmo a estrutura do planeta, a retração de atividades, entre elas as milhares de viagens diárias de aviões, o não uso de combustíveis fósseis já estão alterando (para melhor) a estrutura de mares e da terra, assim a própria estrutura do planeta poderá se modificar, e também a natureza como todo reagirá, pode ser uma surpresa, mas a natureza nos socorrerá.
Referências:
HUBRIN, Jacques Hublin; Ben-Ncer, Abdelouahed «Scientists discover the oldest Homo sapiens fossils at Jebel Irhoud, Morocco». Nature. 2017, acesso em: 20 de agosto de 2020. disponível em: https://phys.org/news/2017-06-scientists-oldest-homo-sapiens-fossils.html .
KHAN, Amina. Discovery of 47 teeth in Chinese cave changes picture of human migration out of Africa. Los Angeles Times, Science. 14 oct. 2015, Acesso em: 20 de Agosto de 2020, Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/virus-gigante-pre-historico-da-siberia-sera-acordado-6d2dtw1rz8yudoz53visogbti/
SHERWELL, Phillip. Ancient teeth found in China reveal early human migration out of Africa. The Telegraph, 2015. Disponível em: The telegraph (acesso privado).
O medo, a morte e a salvação
A sociedade do cansaço, da busca da produtividade e do medo não é esta da pandemia, ela já existia antes deste evento sanitário, o que aconteceu agora é que, ao menos as pessoas que não perderam a sensatez, o medo da morte está presente e paira sobre toda a sociedade, e ignorar a morte não é boa atitude psicológica.
Assim falam psicólogos que trataram deste assunto relativo às crianças, é certo também que o medo pode levar ao pânico que não é saudável também, mas explicar e ajudar a sociedade a entender as limitações, até mesmo da produção da economia ajuda a todos, e o questionamento da hiperprodutividade que levou a sociedade e a natureza as portas do esgotamento é também saudável, agora porém vem a crise econômica e o que fazer com ela, novamente ser sensatos.
O poeta Hölderling escreveu “onde há medo, há salvação”, no início da pandemia pensávamos que era possível tratar a doença equilibradamente, reduzir um pouco a atividade que ajudaria a sociedade a reequilibrar-se, mas passados muitos meses o confinamento revelou-se também problemático, porém o medo da morte e uma certa cegueira de não desejar ver as consequências continua na sociedade, a morte é apenas uma fatalidade, e não uma possibilidade que leve-nos ao cuidado, o cuidado com a vida em todos os sentidos.
A salvação reside neste medo, a criança sem medo é imprudente, e o adulto muitas vezes também, não pensa e não age a favor da vida, da preservação de si e dos outros, pensa de maneira egoísta e isto não leva a salvação, leva ao morrer mais trágico que a fatalidade da morte, até mesmo morrer de medo, assim o saudável e equilibrado é tratar da morte, e aqueles que precisam manter-se ativos socialmente tomar os cuidados necessários, mas e a salvação, o reequilíbrio do humano.
Este está em jogo, aquilo que era tema antes da pandemia, agora reaparece de modo trágico e é preciso pensar na natureza, na produção e no dia-a-dia que levou a doenças como o pânico, a síndrome de Burnout e a sociedade do cansaço, para produzir felicidade não devemos caminhar para o extremo cansaço e o esgotamento da natureza e das forças produtivas.
A própria morte de Deus, que para muitos parece uma enorme tragédia, fundamentalista dizem o contrário e os fariseus que não devemos “propagar o medo”, quando Jesus avisa o tipo de morte que haveria de morrer, Pedro diz que Deus nunca permita tal coisa, e a reação de Jesus é no mínimo curiosa (Mt 16,23): “Jesus, porém voltou-se para Pedro e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!”, e pouca reflexão se faz sobre esta passagem, no máximo dizer que é porque ia morrer na cruz, mas naquele momento nada se sabia ainda.
A lição da pandemia, do medo da morte e do morrer, que é o mais duro, é que não há salvação sem sofrimento, as vezes sangue derramado mesmo, o pós-pandemia deve provocar uma discussão e um pensamento muito mais sério do que já ocorreu até aqui, conservadores dizem a vida deve voltar ao normal e outros dizem: “e preciso mudar o combate a pandemia”, que houve muitos erros sim, mas o problema essencial é mudar o comportamento e as estruturas sociais desumanas.
Para vocês quem é A verdade ?
O certo é que a verdade é quem e não o que porque o que será só um objeto e esta verdade só poderia ser estabelecida por uma relação dual: do sujeito com o objeto o qual ele interpreta, é por isto que caímos no relativismo ou na pura doxa, a opinião, a verdade só pode ser estabelecida na relação om o Outro, na filosofia socrática, a verdade não está com os homens, mas está entre eles, na sua relacionalidade.
Porém o estabelecimento desta verdade requer o desvelamento ontológico, não é simples porque embora seja intrínseco ao ser, o que ocorre a partir do idealismo é um grande velamento do ser, somente a partir de Heidegger vai se pensar este desvelamento, mas ainda permanecemos na noite do pensamento e da cultura.
O ser na relação com os objetos, que é também intrínseca do ser, ele é substância material, a hylé grega, da qual surgiu o hilemorfismo (teoria que agrega hylé e morphé) segundo a qual todos os seres corpóreos são compostos por matéria e forma, que a partir da escolástica é pensada como substância.
As consequencias desta verdade ontológica tem impacto na antropologia filosófica, a que estuda como o homem pode compreender-se, assim um sentido metafísico é recuperado e pode-se discutir o homem também num sentido escatológico, de onde vem e para onde irá, ou teleológico como prefere a literatura convencional.
Filósofos como Bernar Groethuysen afirmou que “a reflexão sobre nós próprios, reflexão sempre renovada que o homem faz para chegar a compreender-se”, já Landsberg dirá de outra forma: ”explicação conceitual da ideia do homem a partir da concepção que este tem de si mesmo em determinada fase de sua existência”, mas a pergunta cabe a todos e para você quem ou o que (para a pergunta não ser direcional) é a verdade ?.
Se a pergunta é hilemórfica, o homem veio do pó e ao pó retornará, mas há uma resposta aórgica, especial para nossos dias, a sua forma ou estrutura poderá mudar e assim haverá uma mudança, aquilo que Fritjof Capra chamou de reinvenção do homem, e que eu pensando como cristão, uma mudança em sua alma.
Após uma longa convivência com os discípulos é a pergunta que também Jesus vai fazer aos seus discípulos (Mt, 16:13-14): “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem “ Eles responderam: “alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias, outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas”, porém quem é hoje para nós, não para os não crentes, mesmo para cristãos ainda parece ser um personagem enigmático, milagreiro, histórico, político ou era mesmo Deus ?.
A verdade pode parecer simples demais, não ter uma lógica profunda intrincada, não ser ligada a nenhuma forma de poder ou política temporal, mas e se for Ele a verdade ? quanta coisa mudaria na vida do planeta, como mudaria nossa visão da pandemia, da distribuição dos bens e da solidariedade ?
Aos que não creem e se for mesmo Verdade, poderia ser uma grande resposta em tempos de pandemia e de dificuldades sociais, mas a pergunta d´Ele próprio para nós está aí, teríamos coragem de responde-la a todos os homens ?.