Arquivo para maio, 2021
Terceira onda, nova cepa e novos remédios
Enquanto seguimos numa perspectiva de uma possível terceira onda em junho no Brasil, os números ainda estão em torno de 2 mil mortes, como postamos a semana passada se cair pode significar uma contensão (uma taxa alta de 78 mil casos, mas mortes abaixo de 2 mil) e se chegar acima dos 3 mil a terceira onda chegou e será necessário novo protocolo de isolamento (figura).
Independente da terceira onda já há vários casos do vírus indiano, a nova cepa, que chegou ao Brasil sem um protocolo rígido de isolamento ela vai se espalhar e isto quase não há esperança.
A notícia de um antiviral Australiano e um remédio israelense, este último MesenCure usa células estromais mesenquimais (MSCs) isoladas do tecido adiposo de doadores saudáveis, aliviam os sintomas respiratórios em pacientes infectados e reduzem inflamações.
Já o medicamento australiano feito por cientistas da Griffith University, em colaboração com o centro de Pesquisas City of Hope americano, usa uma tecnologia que envolve o RNA silenciador de genes (siRNA) que ataca diretamente o genoma do vírus e impede sua replicação, o teste por enquanto foi feita em ratos.
Temos que continuar tentando criar protocolos na medida que a vacinação não avança (21,5%).
O estado do Rio de Janeiro tenta fazer uma vacinação em massa, apesar de não ter remédios suficientes, a ideia é abrir a vacinação para o restante da população, até agora só pessoas acima de 60 e algumas classes especiais como enfermeiros, motoristas de ônibus e policiais.
O estado de São Paulo fará uma testagem, porém em dois municípios pequenos Taquaritinga e Batatais, fornecendo os testes RT-aPCR e testes rápidos de antígeno, partindo para uma estratégia de isolamento vertical tão criticado no início da Pandemia, o Butantan fará visita domiciliar em 2 mil residências dividindo cada município em 11 regiões chamadas de “clusters”, a ideia das redes.
A vacinação em massa no município de Serrana (SP) como experimento, teve resultados positivos, com a redução de mortes em 95%.
É, portanto, uma testagem por amostragem e a população que não for sorteada pode fazer auto avaliação através de um aplicativo chamado Tainá/GHM e responder questões rápidas.
Só é trinitário se são três pessoas
No século III os cristãos começaram a usar a palavra prósopon que significa o uno em três pessoas, o primeiro concílio cristão de Nicéia (325) foi discutido a divindade de Jesus, porque era ainda mais fácil, devido ao dualismo Ser e não-Ser, acreditar em dois do que em três.
Para subsistir a ideia dualista, alguns pseudo-teólogos lançaram mão da ideia que Deus-Pai é fonte e origem de toda divindade, assim as outras duas pessoas foram geradas pelo Pai, criando uma nova forma de negar a pericorese trinitária, ou se preferir “a dança” na relação divina interna.
Foram os padres capadócios, Gregório Magno, Gregório de Nissa e Basilio de Nissa que viram esta contradição, que vem revestida de nova roupagem, da troca da palavra prósopon (persona) por hipóstasis e esta por sua vez confundida com ousía.
Basílio usou da fórmula de Mt 28,19 que afirma que a comunicação dos Três no batismo manifesta o Espírito Santo na união do Pai com o filho, na mesma dignidade, e manifesta ao homem no batismo, por isto o batismo válido é em nome das Três pessoas.
Basílio classificou a expressão da fé, sobre o mistério trinitário, transformando e codificando a ideia confusa na seguinte fórmula: “Mia Ousía” e treis hipóstasis”, apresentando uma distinção entre ousia e hipostasis na Trindade.
A ousia indica o que é comum e único ás três pessoas, natureza e substância. A hipóstasis constitui a particularidade que constituem cada pessoa da Trindade, não havendo prevalência entre Elas.
Gregório de Nazianzeno foi o primeiro a aplicar o termo pericórese na relação entre as duas naturezas de Cristo (Perichoresis cristológica).
Gregório de Nissa afirma que na Trindade Santa não há diferença de honra e que a estrutura que diferencia o criado não pode se aplicar às pessoas divinas, já que a natureza divina é incognoscível e eterna.
Foi João Damasceno no século VII (+749) que fez além e uma síntese da doutrina dos padres capadócios, uma nova abertura desenvolvendo a pericorese, empregando-a como termo técnico designando, tanto a compenetração das duas naturezas em Cristo como a compenetração entre si da Três Pessoas Divinas, vão definir o que é a cossubstancialidade.
A chave de leitura entender o trinitário, que passa por Deus-filho (Jesus) que se abandona nas mãos do Pai, a ponto de chamá-lo como qualquer homem o chamaria de Deus e não mais de Pai, é ponto crucial para uma teologia contemporânea, ali onde mora a divisão, a dor, a injustiça, o mal que o homem causa a si próprio e a humanidade, ali está um rosto deste “Jesus Abandonado” (a figura acima foi encontrada por acaso numa mesa).
Unidos a Ele encontramos o diálogo, superamos os radicalismos, as incompreensões e os erros
A trindade e os filósofos contemporâneos cristãos
Obras sobre a trindade na patrística cristã destacam-se a obra De Trinitate de Agostinho, os padres capadócios: São Basílio e São Gregório de Nazianzeno (imagem), João Damasceno e Tomás de Aquino, estes da Antiguidade até a Idade Média, que trabalharam a pericorese na Trindade.
Começo por uma referência que considero importante pela adoção do pensamento fenomenológico e hermenêutico, a obra L´Idole et la distance (1977) de Jean Luc Marion, ele como outros partem de Santo Agostinho, mas como bom hermenêutica deseja apenas fazer “o jogo trinitário [i.e., a pericorese trinitária]” que ela assuma as desolações incluindo a metafísica, e nos levem a paciência, o trabalho e a humildade.
Refere-se a pericorese com uma “dança” e as desolações são as críticas filosóficas que surgiram a partir do século XIX, em particular Nietzsche, fez a religião, especialmente à ideia de Deus, vai identificar que a ideia de que a morte de Deus traria ao homem a luz, se olharmos a realidade, veremos que não aconteceu, vemos um homem sem humanismo, agora nos horrores de uma pandemia que não cede e o perigo de uma crise civilizatória.
A hermenêutica por sua estrutura interpretativa, a transmissão e a mediação “não se referem apenas à anunciação, à comunicação de Deus com o homem, definem a vida íntima do próprio Deus, que, por essa razão, se não pode pensar nos termos de uma plenitude metafísica imutável” (na obra de Gianni Vattimo: Etica de la interpretación, 1991).
Longe do idealismo absoluto de Hegel, e avançando a ideia da ontologia trinitária, que tem início nos primórdios do século XX, autores como Pavel Florenskij, Sergei Boulgarov, mais recentemente John Zizioulas e vários italianos como Massimo Cacciari, Bruno Forte, Piero Coda e na Alemanha Joseph Ratzinger e Klaus Hemmerle, na França já citamos Jean-Luc Marion e Michel Henry.
Piero Coda utiliza uma categoria da fundadora do Movimento dos Focolares, iniciado por Chiara Lubich, que é a figura de Jesus Abandonado para tornar sua “dança trinitária” uma relação cotidiana com todos os seres e assim recria a ontologia trinitária, que é capaz de estabelecer uma relação entre o Logos expresso em Jesus, e plenamente realizado na sua figura quando já desfalecido e entregue as dores e sofrimentos da cruz, não chama mais Deus de Pai, mas apenas de Deus: “Meu Deus, meu Deus porque me Abandonastes” diz o relato bíblico, parece parodoxo, uma pericorese com o homem.
Afirma Coda: “de alguma forma a circulação eterna do amor dos Três é comunicada a nós na história … sua abertura para a história dos homens” (Dio uno e trino, Edizione San Paolo, 1993, p. 141).
Houve uma compreensão desta realidade, porém a interpretação hermenêutica ainda não houve.
A trindade na perspectiva antropotécnica
Toda a filosofia de Sloterdijk deve ser precedida de uma boa leitura de Heidegger, tentando simplificar o que é per-si impossível, explicamos a categoria “ser-em” que será bastante utilizada no seu discurso sobre a relação trinitária, de onde desvela a “cossubjetividade imbricada da díade Deus-alma” (Sloterdijk, p. 490), onde o “surrealismo teológico oculta-se, como mostraremos, o primeiro realismo das esferas” (idem).
Sloterdijk não usa epígrafes apenas para decorar o texto, no capítulo 8 “mais perto de mim que eu mesmo: propedêutica teológica para a teoria do interior comum”, na epígrafe explica: “… quer dizer ´ser-em´[In-sein] ?… Ser-em … significa uma constituição ontológica da existência (Dasein)” citando o § 12 de Ser e Tempo de Heidegger.
Esclarece na outra citação da epígrafe que “talvez o Em seja o reino pressentido de toda a vida (de toda moral) de Deus”, citando Robert Musil no seu livro “O homem sem qualidades”, que o é hoje o homem moderno.
Antes de penetrar na questão da trindade, explica que o amor humano “não existe de maneira nenhuma antes de se produzir” … “na perspectiva da modernidade individualista – duas solidões que se desenraizam pelo encontro” (pag. 491), e irá retornar a incidente do paraíso perdido perguntando se não foi ele “um doloroso fosso de estranhamento?” (idem).
Foi Agostinho, esclarece nas “Confissões” que levou “a dialética do reconhecimento a partir do desconhecimento” (pg. 492), em sua “obra-mestra críptica” De trinitate (em particular os livros VIII e XIV) “que tratam da acessibilidade de Deus através dos traços deixados no interior da Alma” (p. 493), e embora trace suas contradições com o discurso teológico, afirma “ele pode ser considerado como o grande lógico da intimidade da teologia ocidental” (idem).
A longa análise que vai da página 494 até a 524 em que penetra nas contradições do discurso religioso, passando por citações bíblicas, Nicolau de Cusa, o duque João da Baviera, um Cardeal erudito e não autorizado na literatura da tradição cristã, chega a um veredito final, este sim importante, que é como o dualismo platônico provocou “efeitos secundários … em doutrinas deste tipo [que] rompem também o sentido de ser-em” (pg. 524).
Ilustrada com a pintura de Juan Carrero de Miranda “A fundação da Orden da Trindade” (óleo de 1666), o autor passa a fazer a repartição “topográfica dos Três no Um”, destaca no quadro a “quase-quaternidade clássica abrange a Trindade e o Universo” (destacamos com um pequeno círculo vermelho), seria bom que a fizesse.
Dentro de sua esferologia, Sloterdijk explica que “ecos característicos da filosofia da natureza, mesmo que se trata há muito tempo, da coabitação de entidades espirituais”, assim estamos mais próximos de outras cosmovisões “animistas” do que imaginamos, numa teológica dualista.
Analisando o discurso do Pseudo-Dionísio Aeropagita, esclarece que “o páthos da diferença dos diferentesno interior do Um já era conhecido do neoplatonismo, e a “justificação mútua dos princípios das pessoas da Trindade” (pag. 130) se beneficiará dele.
Conhece bem a pericorese dos padres capadócios (São Gregório de Nissa, São Basílio e São Gergório de Nazianzeno) (pag. 540-541) além de Agostinho usado fartamente, não deixa de citar João Damasceno (pag. 538, 544-546) e cita Tomás de Aquino.
SLOTERDIJK, P. Esferas I: Bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
O pensamento trinitário em autores não cristãos
Compreender o mistério de serem três pessoas, mas um só Deus, é claro que seja penetra na mística cristã em sua profundidade, porém se imaginamos que aí pode estar a chave da relação humana onde duas pessoas se põe numa relação simétrica, isto é, de respeito e amor mútuo, um é indissociável do outro, pode-se entender que é possível um autor não cristão entender a questão.
Percorreremos três autores, Giorgio Agamben, Peter Sloterdijk (em conjunto com seu discípulo Byung Chul Han) ambos não cristãos e como não poderia deixar de ser um cristão, Piero Coda, que nos introduz de uma forma nova neste mistério, típico de um carisma do século 20, que propõe a unidade da família humana, aquilo que parece difícil e de certa forma trágico (o próprio autor o afirma), é na verdade uma abertura teológica nova.
Para compreender Agamben, é preciso entender que parte de uma hipótese bastante interessante, mas ao nosso ver não suficiente, que a história da cultura ocidental resulta de um paradigma resultante da teologia cristã, que vê a história contínua de separações e cruzamentos entre esses dois paradigmas: o político e econômico, formando um sistema bipolar.
Isto está descrito em duas obras suas: “Estado de exceção” (2003), que de fato sempre ronda o ocidente entre auctoritas e potestas* e, na obra O reino e a Glória (2011), que pode assumir a fórmula: Reino, Gloria e Oikonomia. (*em sentido oposto, o legítimo e o poder).
Porque a obra de Agamben de fato é válida, porque a Oikonomia, que tem sua origem na antiguidade clássica, que significa organização da casa pode e seria até interessante que de fato fosse a “organização” dos bens domésticos, porém a própria origem grega significa já não-cristã.
Onde é que elas se confundem, no grego, oikos (casa) e nomos (lei, regra, norma), foram usadas por Xenofonte e Aristóteles (na Grécia Antiga politeísta) este termo designava o “o conjuntos de preceitos que regem, ou devem reger, a atividade do ‘senhor da casa’ na obtenção dos recursos necessários à vida da família”, e na teologia cristã todos sendo irmãos, estamos na mesma “casa”, mas para aí, pois o argumento que Agamben usará do monoteísmo não é válido para os gregos.
Embora Agamben compreenda que no livro L da Metafísica de Aristóteles já está marcadamente presente a distinção entre Reino e governo, mesmo livro que outro crítico do monoteísmo Erick Peterson escreveu contra a teologia política.
Deus aparece ali como o motor imóvel de todas as coisas que significaria em última instância uma “categoria” cristã, que de fato poderia ser para alguns autores, mas certamente não é o Deus cristão, há nEle um rico movimento chamado pericorése.
Porém este não é o Deus cristão, não há uma interpretação trinitária de fato em Agamben, mas uma adaptação da visão Aristotélica, dualista, o ser é e o não ser não é, para a visão do trinitário.
A grande contribuição de Agamben está na sua obra magna: Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, onde aborda o conceito de vida nua, como aquela que se encontra em uma zona cinzenta da vida política, entre o zoé e bíos, o conceito de homem como animal político de Aristóteles explicado, aprofundado e atualizado.
AGAMBEN, Giorgio, Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad.: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
O perigo da terceira onda e a vacina dos pobres
Os países mais ricos do mundo têm apenas 13% da população total e já tem para este primeiro semestre mais da metade (51%) das doses das vacinas contra a covid-19 em desenvolvimento, a busca de lucro e a disputa de mercado levou a isto.
Avança na Índia uma cepa do vírus que ainda não tem dados muito decisivos sobre a eficácia das vacinas, por isso o envio de teste para o estado do Maranhão é importante, poderemos saber qual a eficácia das 3 vacinas que já estão no Brasil para esta variante, a Coronavac, a AstraZeneca e a Pfizer, embora o número de doses ainda seja pequeno, o Brasil fez uma compra de 100 milhões de doses para outubro.
Precisamos atravessar o inverso com alguma segurança, o site da CNN (figura) alerta para o perigo real da terceira onda, a produção de mais vacinas com insumo já feitos nos países mais pobres será decisiva para um aumento da vacinação, que ainda é lenta.
Em termos percentuais a lógica é simples, se até a primeira semana de junho estivermos perto do patamar de 4 mil mortes diárias a terceira onda chegou, se estivermos abaixo de 2 mil foi detida.
Uma remessa de Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFA) chegou neste sábado na FioCruz, e serão usados para a produção de 12 milhões de doses de vacinas, com a produção de insumos no próprio país já iniciada podemos chegar na casa de 20 milhões de doses (o prometido é 18 milhões de doses), ainda serão insuficientes se a Coronavac não aumentar sua produção.
O governo acena com um total de 90 milhões de doses, e a segunda dose para pessoas acima dos 70 anos já vai começar, porém é preciso respeitar os 90 dias de intervalo da vacina AstraZeneca.
No caso da Coronavac o intervalo ideal é de 21 a 28 dias, para aumentar a eficácia para 62,3%, porém está sendo usado num intervalo de 14 a 28 dias, esta eficácia, que é baixa, pode se manter.
O essencial agora é ficar de olho na nova cepa da Índia que já tem casos registrados no país, fazer um isolamento rigoroso e manter os protocolos de máxima segurança, coisa malfeita ainda.
Clareira e iluminação
O que acontece de fato se encontramos a clareira, se por um processo de mudança de consciência, de auto-iluminação abandonamos velhas teorias e maquinações e nos “vemos”.
A resposta está no próprio Heidegger em sua principal obra Ser e tempo: “Na medida em que o ser vige a partir da alétheia, pertence a ele o emergir auto-desvelante. Nós denominamos isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira” (cf. Ser e tempo)”.
Já postamos sobre a diferença entre alétheia e verdade, porém agora pode-se a partir do texto acima desvelar um pouco mais profundo, o percurso da iluminação nos conduz a uma posse que dá sentido ao que somos e do que recebemos para ser. Na iluminação há um sentido do ser e realiza um percurso ontológico e não meramente temporal ou espacial, esta ligação ao temporário oculta o sentido originário de todo espaço e tempo, de toda época e de toda relação com o mundo, está é a iluminação.
Não é definição minha, outros leitores de Heidegger fazem um raciocínio muito prático e parecido ao que é feito aqui, por exemplo, o texto de Manuel de Castro encontrado na Web, que afirma que “na iluminação o sentido de ser acontece em nós”, não é obra do acaso e há muitas outras possibilidades desta iluminação, todas as religiões por exemplo, procuram esta iluminação, os filósofos em sua maioria, acreditam tê-la encontrado, mas o que é ela de fato.
Lanço o recurso das religiões, em especial a cristã que professo, mas não deixo de imaginar que o mesmo seja possível em outras, há algo que pode ser chamado de “sementes do verbo” e que de alguma forma estão presentes nas grandes religiões, na cristã é a ação do “Espírito Santo”.
Este nodo que pode nos unir a uma iluminação, é aquele que nos “une a todos”, é aquele pensamento que Edgar Morin dizia: “é preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que une e distingue”, portanto viver em unidade com os outros diferentes.
A palavra que fala desta ação através de um dom especial do Espirito Santo que fazia a todos que ouviam compreenderem em sua própria língua (pode-se pensar numa metáfora conforme o entendimento possível de cada), diz a passagem (At 2,4-6):
Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava. Moravam em Jerusalém judeus devotos, de todas as nações do mundo. Quando ouviram o barulho juntou-se a multidão, e todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua”, em algum momento da nossa história isto pode acontecer.
O que se espera é um mundo mais fraterno onde o diferente possa viver em sua dignidade e ser entendido em sua própria língua.
CASTRO, Manuel Antônio de. “O ser e a aparência”. www.travessiapoetica.blogspot.com
Dicionário de Poética e Pensamento (ufrj.br)
Dicionário de Poética e Pensamento (ufrj.br)
O habitar e a clareira
Tanto o habitar como a clareira, precedem a ideia de Ser, desde a filosofia antiga o Ser é também “morada”, porém a filosofia moderna recuperou a linguagem, evento chamado reviravolta linguística, e vale a frase de Heidegger: “A linguagem é a casa do ser” significa uma identificação ontológica entre ser e linguagem.
O que é esta “morada” significa aquilo que é o ser enquanto ser, significa retirar do ser seus adjetivos para ser o que é, por exemplo, o homem enquanto homem sem sua cor, religião, sexo, nacionalidade, idade, cultura, nada que o particularize e os separe uns dos outros, é nisto que encontramos o ser.
Por isto a definição de Heidegger de linguagem, mas num sentido amplo qualquer forma de comunicação desde um simples olhar até um longo discurso, e mesmo o uso de algum aparato para enriquecer (ou empobrecer é claro) a linguagem.
Habitar a clareira portanto exige primeiro que desvelamos o que é este Ser, e depois o ente que é o que vale para o ser, enquanto o “ser-aí” (Dasein) é aquilo que está no ser.
Isto esteve velado na história, e ainda mais na modernidade que projetou todo o ser sobre o ente, ou seja, sob sua caracterização e determinação, mas aquilo que ele é foi velado.
Górgias (485-380 a.C.) foi o primeiro na história da filosofia a negar a existência do ser, para isto teve também que negar a razão, e a existência em absoluto, “nada existe de absoluto”, assim não existem verdade, é o princípio que hoje chamamos de relativismo.
A existência e a realidade do Ser, embora velada, é a possibilidade da clareira, dela dependerá uma abertura para a transformação, para a mudança tanto na relação humana, já que está é linguagem fundamento do ser, quanto na relação com a natureza, que determina também o ser-aí.
Tudo pode tornar-se desvelado se retiramos o véu que cobre o ser, e descobrimos também a sua interioridade, que o filósofo Byung Chul Han chama de negatividade, que é sua reflexão sob aquilo que é, vendo-se como num espelho, e assim conseguir ver-se como Ser.
Um filósofo oriental lê a “clareira”
Byung Chul-Han é um filosofo coreano-alemão que migrou para o ocidente e faz uma leitura impar da literatura ocidental, em particular o contexto das redes e das novas mídias, estudou em seu doutorado Heidegger e com isto sua “clareira”.
Explica o que é a clareira de modo simples: “A ´verdade´ de Heidegger ama se ocultar. Ela não se dispõe simplesmente. Ela tem de, primeiramente, ser ´arrancada´ do seu ´velamento´. A negatividade do ´velamento´ habita na verdade como o seu ´coração´” (Han, 2018, p. 74) e neste trecho cita a obra de Heidegger: “Sobre a questão do pensar”.
Ele penetra no que significa a informação, o grande insumo do Ser velado atual, “falta a informação, em contrapartida, o espaço interior, a interioridade que permitiria se retirar ou se velar. Nela não bate, Heidegger diria, nenhum coração” (Han, 2018, p. 74).
Esta ausência de contrapartida, é o que Chul Han chama de negatividade, é bom explicá-la bem, “uma pura positividade, uma pura exterioridade caracteriza a informação”, assim é o refletir.
Como seria então a informação da negatividade, no sentido de reflexão, é a informação “seletiva e aditiva, enquanto a verdade é exclusiva e seletiva. Diferentemente da informação, ela não produz nenhum monte [Haufen]” (Han, 2018, p. 74).
Assim, não há ‘massas de verdade” e sim “massas de informação”, é a “massificação do positivo” (Han, 2018, p. 75), assim informação distingue-se do saber, e este não “está simplesmente disponível”, diria nem simplesmente porque é complexo e nem disponível porque está oculto.
Porém o filósofo a confunde com experiência de vida, ao afirmar: “não raramente, uma longa experiência o antecede” (idem, p. 75), e afirma só uma face da informação: “a informação é explícita, enquanto o saber toma, frequentemente, uma forma implícita”.
Esclarecendo estes dois pontos confusos, primeiro a questão da experiência, o filósofo Platão foi o primeiro a anunciar que a sabedoria, como conhecimento da verdade não é fruto da idade, se assim fosse somente na velhice as pessoas mereceriam ser ouvidas, a outra questão é sobre a informação tácita, ela existe como conhecimento tácito, Michael Polanyi (1958), foi um dos primeiros a teoria, e Collins nos anos setenta retomou o conceito no âmbito da comunicação científica. Para esta informação tácita, Chul Han também aponta isto, é preciso “silêncio”.
A clareira mais profunda o filósofo descreve citando Michel Butor, que deu uma entrevista ao Die Ziet, em 12/07/2012, que aponta para a verdadeira causa: “A causa [disso] é uma crise de comunicação. Os novos meios de comunicação são dignos de admiração, mas eles causam um barulho infernal” (Butor apud HAN, 2018, pg. 42).
Referências:
POLANYI, M. Personal knowledge – towards a post-critical Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1958.
COLLINS, H. M. The TEA set: tacit knowledge and scientific networks. Science Studies, v.4, p.165-186, 1974.
HAN, B. C. No enxame: perspectivas do digital. No Enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. São Paulo: Editora Vozes, 2018.
A possível, mas difícil “clareira”
A ocultação do saber esconde também uma ocultação do saber, sem algum tipo de clarividência o acesso ao conhecimento torna-se preso a esquemas mentais, lógicos ou ideo-lógicos que por sua vez estão presos ao pensamento contemporâneo.
A maneira como Heidegger enxergou a clareira, foi de difícil a avaliação até mesmo para seus alunos mais próximos como Hanna Arendt e Husserl, só para citar grandes nomes, porém na sua escola de pensamento muitos ainda permanecem presos ao idealismo.
O problema central do idealismo, para Heidegger, é que mediante as categorias a priori do entendimento, determina-se todas as propriedades dos objetos (como se fosse só “lógico” o conhecer) e assim os seres não podem manifestar são essência pura do que são, fora do “lógico”.
Assim entre o ocultismo fundamentalista, claramente problemático, e o pensamento “científico” ocidental, como dito por Heidegger “se estabeleceu como única medida da habitação do homem no mundo”, dito em seu texto O fim da filosofia e a tarefa do pensamento.
Em seu texto A doutrina da verdade em Platão, ele começa traduzindo Eidos (a Ideia como foi má traduzida) como aspecto, que não é um ente em sua mera aparência, como é percebida de forma imediata pelos sentidos, antes de se mostrar o ente aparece e pode ser captado pelo intelecto (Heidegger, 2007, p. 3).
A outra questão apontada por Heidegger é sobre a tradução explícita de “alethéia” por desvelamento e que não pode ser identificada com “verdade”, “a questão do desvelamento como tal, não é a questão da verdade … não devemos traduzir alethéia pela palavra corrente verdade” (Heidegger, 1972, p. 36), e assim “também não é sustentável a afirmativa de uma transformação essencial da verdade, isto é, a passagem [de Platão] do desvelamento para retitude” (Heidegger, 1972).
O que isto implica não é claramente obvio, mas é a própria clareira (no meio da floresta), ou seja, claridade, só é possível em um espaço de abertura prévia, algo que aparece, uma “presentação”.
Dito explicitamente pelo próprio Heidegger: “O raio de luz não produz primeiramente a clareira, a abertura, apenas percorre-a. [Ele] só pode brilhar se a abertura já é garantida”, assim é um evento no tempo, e talvez quiçá este tempo de ocultamento da Pandemia anteceda a uma “clareira”.
Será preciso “Mudar de via” afirma Edgar Morin em seu último livro, a humanidade mudará ?
Heidegger, M. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1972.
________. La doctrina de Platón acerca de la verdad. Eikasia, Revista de Filosofía, v. 12, extraor- dinario I, 2007.