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Descaminhos e veredas
Enquanto o Ocidente padece com a covid-19, o oriente em meio a crise continua dando sinais de vitalidade e fortaleza, formaram um bloco de 15 países tendo a China, Coréia do Sul, Nova Zelândia, Japão e Austrália a frente, chamado de RCEP (Parceria Econômica Regional Abrangente, em inglês RCEP) foi assinado num encontro de cúpula regional em Hanói em 15/11, embora a conferência tenha sido online.
Um dos objetivos é reduzir progressivamente as tarefas em áreas essenciais nos próximos anos, além dos países que faziam parte do tratado asiático ASEAN, juntam-se Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietná, o bloco tem metade da população mundial e quase 40% do PIB de todo planeta.
Além da pandemia o ocidente digladia-se com polarizações, crises com direitos de minorias e raciais, um degradante ambiente moral, no qual a corrupção é apenas uma parte de todo uma engrenagem estrutural em torno dela, com uma presença cada vez maior de migrantes de todo o planeta, mas em especial os árabes que tem uma cultura bastante diferente.
A zona do Euro terá que reforçar os laços para sair da crise econômica imposta pela pandemia, a saída da Inglaterra que finaliza em dezembro, ainda tem efeitos imprevisíveis também para a Inglaterra, mas o governo conservador de conseguiu se impor em meio a pandemia e prepara a primeira vacinação em massa no ocidente.
Na América Latina, o passo dado por Bolsonaro do Brasil e Fernandez da Argentina de fazer a primeira reunião bilateral não deixa de ser um alento, mas a chamada a uma cooperação das forças armadas mote do governo brasileiro e o pedido de colaboração na questão ambiental apesar do toque diplomático representam também uma provocação naquilo que os presidentes acreditam.
O governo eleito da Bolívia, partidário do deposto Evo Morales, tenta romper o isolamento convidando o líder oposicionista da Venezuela, mas usou na festa de libertação do estado de Potosí, a bandeira boliviana e a Whipala, símbolo da congregação dos povos indígenas.
O aceno para uma cooperação e formação de um bloco coeso do Mercosul está difícil de sair do papel para medidas concretas onde a cooperação, o respeito a diversidade política e cultural, e a cooperação além fronteiras seja um passo dado como no Oriente ou na ainda frágil União Europeia, acordos das Américas, como era a proposta do Nafta, se forem avante com Joe Biden devem ser um processo muito lento.
O ocidente vive uma crise, porém vive de fatos passados, o período colonial da Europa, a hegemonia política dos EUA e a América Latina cheia de riqueza cultural, ecológica e com promessas de um futuro pan-americano ficam apenas no sonho de muitos idealistas.
O infinito escatológico
A transcendência como ideia do Infinito (não é a idealista) pode ser compreendida na filosofia de Lévinas como “A presença de um ser que não entra na esfera do Mesmo, presença que a excede, fixa seu ‘estatuto’de infinito, é assim que surgirá em Lévinas a ideia de Estrangeiro e ali ele numa escatologia própria.
O termo Estrangeiro é próprio da tradição bíblica da qual se alimenta Emmanuel Lévinas, tal como muitos se alimentam da mitologia grega, ela é presente na quatríade do profeta Isaías, profeta como no modo dos celebrados poetas gregos Homero e Hesíodo, é curioso porque pode-se a parte de Lévinas ver uma convergência entre a cultura helênica e semita, ao contrário de toda fúria contra a cultura judaico-cristã.
A quatríade é a seguinte: o pobre (que não tem recursos econômicos), a viúva (que não tem marido que a sustente), o órfão (que não tem abrigo que o recolha), o estrangeiro (que não tem pátria onde pisar). eles são a síntese do que hoje chamamos e excluídos no tempo bíblico, e podemos ver numa nova escatologia “filosófica” de Lévinas a ideia de um “fim” escatológico não como final dos tempos, mas o fim da pobreza, do desamparo feminino (hoje é mais grave o feminicídio), os órgãos das guerras e os estrangeiros que andam pelo mundo e que Bauman chega a ironizar (pasmem) e então um apocalipse novo.
É assim que o infinito e o ser-para-a-morte podem também ter uma interpretação escatológica, sem qualquer preconceito ou presunção ao sentido religioso que poderá sim em algum momento ocorrer, e do qual o planeta não está isento, afinal um fim escatológico presente em muitas religiões não cristãs é o que a própria terra (a mãe-terra) se rebela, novamente uma convergência com as profecias bíblicas.
A grande razão pela qual esta ideia foi quase abolida na modernidade, já Leibniz a reclamava está dita por Lévinas: “Minha vida e a história não formam totalidade. O comum que permite falar de sociedade objetivada, e pelo qual o homem se assemelha a coisa e se individualiza como coisa, não é primeiro” (em Ética e Infinito), e Lévinas vai definir este processo como “infinição” (talvez melhor tradução seria infinitação, mas não traduziram assim), uma inversão da subjetividade moderna, porque o sujeito subjetiva-se se sujeitando a Outrem, e assim vive sua escatologia “em processo” pessoal, sujeita ao Infinito.
Na escala social é o estrangeiro, o pobre e o que sofre algum tipo de preconceito (o racista, por exemplo, mas há outros inclusive os religiosos) e com isto é que caminhamos para uma autentico fim escatológico, um apocalipse do mundo atual já sem freio e sem uma direção segura para toda a humanidade.
Uma cidadania planetária
A crise pandêmica mostrou que nossos problemas mais sérios são globais, afetam todo planeta, a segunda onda que já está na Europa não tardará a chegar nos diversos continentes, se é que já não chegou em pequenas doses, elas nos levam a pensar planetariamente o que parece difícil com a polarização política.
O que é preciso é abandonar velhas propostas, e tornar possível a convivência da liberdade privada com as fortes urgências sociais, a proposta do banqueiro dos pobres Mohanmmad Yunus vai nesta direção, eliminar a pobreza, a emissão de carbono e garantir empregos para todos, tornou-se na pandemia mais urgentes.
Não é a proposta única, é claro, outra como economia solidária, criativa, grupos de cooperativas de pequenos agricultores, podem compor uma ecossistema produtivo capaz de se adaptar a interesses e vocações locais de produção e de vida humana, é preciso sobretudo sair do excesso de consumo e do stress social.
Não é menor nem desprezível os aspectos culturais nos quais se incluem as religiões e crenças (no sentido lato da palavra) dos povos e nações, faço distinção porque muitas nações já tem em seu interior povos de origens culturais diferentes, o que aqui se chama de cultura originária, nas quais incluem-se também as indígenas.
Não há um concerto claro de como isto pode ocorrer, um amplo diálogo pan-nacional (o que dissemos a pouco de “povos”) é fundamental para organizar um novo ecossistema social aonde o fundamento da seguridade social aliado a liberdade pessoal esteja como premissa para traçar este futuro.
Por enquanto, como uma família que desorganizou as contas da casa, e colhe muitos dissabores desta desorganização, ainda há ditaduras de diversas ideologias no planeta, guerras como tentativas de submissão cultural, novos tipos de colonialismo, embora tenha surgido uma forte corrente de decolonização (o termo é esse), o que acontece no planeta pode ser uma ruptura em situações graves e própria “casa comum” pode reagir, o que já chamamos de mutação aórgica.
Uma passagem bíblica fala sobre a sabedoria e os que a procuram, ela é um estágio acima da simples inteligência, é preciso estar aberto ao novo e deixar também o que ela “entre”, diz o livro da Sabedoria (Sb 6,13-15): “Ela até se antecipa, dando-se a conhecer aos que a desejam. Quem por ela madruga não se cansará, pois a encontrará sentada à sua porta. Meditar sobre ela é a perfeição da prudência; e quem ficar acordado por causa dela, em breve há de viver despreocupado”.
Assim a sabedoria está aliada ao dom da “prudência”, e meditar sobre ela é “a perfeição da prudência”, a ignorância cria apenas fanatismos e crueldades.
A felicidade a partir da beatitutde, da pureza e do amor
Toda a argumentação contemporânea sobre a felicidade quando não desce ao fundo do poço da barbárie, é ligá-la ao consumo, aos bens materiais e ao prazer.
Por isso beatitude se distanciou da felicidade, embora na raiz ocidental da antiguidade clássica (Eudaimonia) seja comum, na “Etica a Nicomaco” Aristóteles estabelece: “Quanto ao seu nome, a maioria está praticamente de acordo: felicidade o chamam, tanto o vulgo como as pessoas cultas, supondo que ser feliz consiste em viver bem e ter sucesso”, mas esclarece em outro ponto que não é a riqueza: “A vida (…) dedicada ao comércio é contra a natureza, e é evidente que a riqueza não é o bem que buscamos; com efeito, ela só existe em vista do lucro e é um meio para outra coisa”, mas neste ponto dirá que é o prazer.
Põe-se a questão do que é o fim desta busca, se é sucesso, honra, reconhecimento, no final o que percebemos é que “Se, de fato, o bem fosse uno e predicável em geral, e subsistisse separado, é evidente que não seria realizável nem adquirível pelo homem; mas é justamente isso que nós buscamos”, qual é este fim.
Em qualquer escatologia perecemos e se a morte é apenas um fim trágico e final, seria bom tirar o máximo desta vida e nem mesmo valores como honra e sucesso não valeriam de nada, apenas se estes resultassem tendo como fim o “prazer”, e não é então humildade, compaixão e participar da felicidade alheia são beatitudes que resultam também em nossa própria felicidade.
Assim aqueles que buscam apenas a própria felicidade em nada favorecem a própria uma vez que não tem ocasião de compartilhar e o prazer egoísta é uma felicidade apenas parcial, as bem-aventuranças no clássico Sermão da Montanha apontam para outra felicidade, aquela que os idílicos e hedonistas procuram negar, mas que aqueles que realmente a experimentam garantem que há uma felicidade equilibrada e sempre presente, um gáudio e uma paz para os que a praticam.
O Sermão da Montanha é um clássico aos que acreditam e podem muito bem servir de meditação para os que buscam uma felicidade efetiva e plena:
os pobres em espírito
os que choram
os humildes
os que têm fome e sede de justiça
os misericordiosos
os puros de coração
os pacificadores
os perseguidos por causa da justiça
Pois estes serão consolados, receberão a terra por herança, serão fartos pela justiça que finalmente será alcançada, terão misericórdia e serão chamados “filhos de Deus”, para os que creem a maior bem-aventurança, foi a verdade central e escatológica anunciada para toda a humanidade.
A história ou caminha para lá ou teremos um processo de crise muito maior que a atual pandemia, que os ciclos horrorosos de guerra, e não serem felizes.
Aflição e angústia
Os que leram atentos O Ser e o tempo, sabem que uma das respostas importantes de Heidegger é o aquilo que deve ser lido em Kierkgaard e que está ligado a raiz filosófica de seu pensamento, e isto está ligado a angústia e discorremos aqui o que a diferencia da aflição que é a angústia pessoal e ligada ao problema do mal.
É, pois, o próprio Heidegger quem Kierkegaard separando-o em ensinamentos ditos “edificantes” que seriam mais importantes do que os “teóricos”, exceto em um caso que é o da angústia, em seu tratado O conceito de angústia, e que o filósofo da floresta faz questão de dizer que “do ponto de vista ontológico” permanece ainda “inteiramente tributário de Hegel e da filosofia antiga vista através deste”. (HEIDEGGER, 2012, p. 651, n. 6).
O que Heidegger viu neste livro de 1844, cuja autoria é atribuída a Vigilius Haufniensis, pseudônimo kierkegaardiano que se traduz como “Vigia de Copenhague”, já que Kierkegaard era dinamarquês e sua primeira intenção é retornar a sabedoria socrática, que para ele se conjugava entre o saber contemplativo (theoría) com o saber prático (phrónesis), a maneira da antiguidade grega.
Apesar dele ter chamado Sócrates de “filósofo prático, justamente queria centrar o penso da “angústia” na vivência do que era refletido pela alma e isto significou uma aproximação da psicologia, era “a doutrina do espírito subjetivo” (Kierkegaard, 2010, p. 25), era um dos ramos da Filosofia, e de uma filosofia realmente dialética no sentido grego-socrático já que a filosofia moderna se fixou no dualismo kantiano tese x antítese com uma improvável síntese
O filósofo usa a expressão “pecado hereditário”, usada pelo autor ao longo da obra, mas como aquela que correspondo o que os teólogos, por ele chamados de “dogmáticos”, denominam como de pecado original, nomenclatura a parte, é o aspecto que aproxima o seu tema da angústia daquela aflição “de alma”, que pode ter o contorno filosófico e psicológico, mas que é no fundo aquela aflição de quem se sente fora de um centro, de uma perspectiva clara de superação da angústia.
Nela não há o sentido portanto de pecado original, nem da noção de pecado, mas se confunde como tal como a sua possibilidade enquanto ideia, ou seja, uma categoria conceitual capaz de nos ajudar a pensar sobre algum mal praticado, e o que levaria a este “mal” é o conceito de liberdade para muitos pensadores.
O que conduz o existir a um modo singular, a um modo de agir de tal forma ? É aí que as noções de liberdade e de angústia emergem enquanto “conceitos” convergem para esta “angústia”, mas sem ter um locus, nem na Estética, nem na Metafísica e sequer na Psicologia, assim o autor não o diz, mas há algo de aflito e de trágico neste caminhar nesta “angústia”.
Paul Ricoeur refletindo sobre estas expressões de Kierkegaard, estabelece que o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão, lembra Ricoeur (1996, p. 16), referindo-se às reflexões kierkegaardianas, o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão.
Ricoeur diferencia assim o mal estrutural (já fizemos um post), ligado a angústia e o pecado e o livre-arbítrio ligado a decisões pessoais perante a angústia.
O ponto que considero essencial no pensamento de Kierkegaard sobre este aspecto existencial é que “só o que atravessou a angústia da possibilidade, só este está plenamente formado para não se angustiar, não porque se esquive dos horrores da vida, mas porque esses sempre ficam fracos em comparação com os da possibilidade” (Kierkegaard, 2010, p. 165-166), é aqui que a aflição pode encontrar o seu oposto e podemos entender que há uma fonte de consolo nela.
Assim angústia e aflição não são propriamente maldições ou estados pecaminosos ou doenças da “alma” ou dos pensamentos, são fases de ruptura ou transição para outras fases mais maduras quanto esta etapa envolve reflexão e superação.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. (Multilíngues de Filosofia Unicamp). JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Tavares Martins, 1957.
KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Tradução e notas Álvaro Luiz Montenegro Valls. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
Bem aventurança e beatitude
Embora o termo esteja associado a santidade cristã, e é também um dos seus aspectos, o termo na antiguidade clássica tinha um significado mais genérico, um estado permanente de perfeita satisfação e plenitude que somente um sábio podia alcançar, assim pensava Aristóteles, mas hoje está condicionado somente ao sentido religioso, pretende-se aqui mostrar que podem estar mais próximos do que se pensa.
O significado religioso é também o da felicidade, mas no sentido de gáudio de prazer equilibrado da alma, que só pode alcançar quem desfruta da presença de Deus, que sua plenitude poderá ser atingida somente na vida eterna, mas não significa descartar a vida terrena, “eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10:10), assim proclama o evangelista, mas o que há de diferentes entre as duas propostas de felicidade.
Aristóteles no livro Das Causas vai dizer que o fim da beatitude é relativo ao desejo da mesma, assim a natureza última deste fim move-se principalmente pelo desejo e este é o prazer, tanto que absorve a vontade e a razão do homem a ponto de fazer desprezar outros bens.
Tanto Boécio, que a igreja também o beatificou (isto é o proclamou feliz, beato e santo), e Aristóteles trataram do tema, e a pergunta deles é o que se o prazer é mesmo o fim último da felicidade, da beatitude e que também Tomás de Aquino vai argumentar ao contrário.
O que diz Boécio é que são tristes as consequências dos prazeres, sabem-no todos os que querem lembrar-se das suas sensualidades, pois, se estas pudesse os fazer felizes, nenhuma razão haveria para que também os brutos não fossem considerados tais, e isto lembra muito os casos atuais de abusos e violências reprováveis.
Para Boécio: “A bem-aventurança é o estado perfeito da junção de todos os bens”, e assim parece que pelo dinheiro poderão se adquirir todas as coisas, porque o Filósofo, no livro V da Ética, afirma que o dinheiro se inventou para ser a fiança de tudo aquilo que o homem quisesse possuir, o que hoje pode ser traduzido como o dinheiro compra tudo.
Além disto diz também Boécio: “Mais brilham as riquezas quando são distribuídas do que quando conservadas. Por isso, a avareza torna os homens odiosos, a generosidade os torna ilustres”, e assim não se condena a riqueza, mas a sua má distribuição.
Na representação acima o quadro “O violinista alegre com um copo de vinho” (1624) de Gerard van Honthorst (1590-1656).
O que faz o Amor ser amado
Hannah Arendt procurou em Agostinho de Hipona suas respostas para o Amor, trouxe grandes contribuições no campo filosófico para o tema, muito além da clássica divisão dos gregos: ágape, eros e filia; mas como observou a filosofa contemporânea Julia Kristeva não foi além do Agostinho filósofo, abordando também o teólogo.
Além da divisão inteligente da sua tese de doutorado: “O amor em Santo Agostinho”, a própria Arendt acentuou o caráter filosófico da obra do bispo de Hipona, ao ressaltar: “ele nunca perdeu completamente o impulso de questionamento filosófico” (Arendt, 1996), suas bases de Cícero, Platão e Plotino são perceptíveis em sua obra.
A escolha de Arendt por dividir sua dissertação em três partes se deve a uma vontade de fazer justiça a pensamentos e teorias agostinianas que correm em paralelo. Assim cada parte “servirá para mostrar três contextos conceituais nos quais o problema do amor tem papel decisivo.”
Também ela percebe a importância do Amor Caritas, mas como o vê não é teológico, mas apenas dentro das possibilidades humanas, Julia Kristeva ao falar do Amor vai além ao afirmar: “O amor é o tempo e o espaço em que ‘eu’ me dou o direito de ser extraordinário“, enquanto Arendt tem clareza que há diferença entre o Caritas e a Cupiditas, que ama o mundo, as coisas do mundo.
Mas a questão de Agostinho que deve ser respondida também pelos cristãos sé o que “amo quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), a quinta essência do meu interior, é verdade como pensava Agostinho que encontro em mim o que me liga a eternidade, porém há além da quinta essência ou Outro fora, não apenas Deus, mas aquele Outro que passa ao meu lado, aquele cuja identidade está escondida no invólucro humano do Outro que tem Deus em si também.
O que amo quando amo a Deus, é assim extensível ao Amor a humanidade, concreto em cada Outro que me relaciono, e está além da quinta essência do meu “Eu”.
Caritas é assim o extraordinário em mim, tanto Arendt, Kristeva e o próprio Agostinho estão certos em parte, porém o Deus que amo está agora presente também no Outro, que é além do meu espelho e além da minha quinta-essência interior.
Talvez a maior cilada feita para Jesus pelos fariseus esteja na pergunta, depois que Jesus havia calado os saduceus, estava na pergunta (Mt 22,36) “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”, e Jesus responderá (Mt 22,37-39): “Jesus respondeu: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!’ Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’”, e conclui que esta é a síntese de toda Lei e dos profetas.
Hannah Arendt cita esta passagem, mas a sequência é clara amarás com todo coragem e toda alma, aspectos teológicos e depois com o entendimento, o filosófico.
Porém a pergunta atualizada é esta de Agostinho: “O que amo quando digo que amo a Deus?” e se na resposta é também “O próximo como a ti mesmo”, ou seja, com a sua quinta-essência interior dirigida ao Outro, significa que não posso dizer que amo de fato o Amor, que vem de Deus, se não é o Amor caritas.
ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
Figura: Texturas e acrílico sobre tela 100×120 cm | Janeiro, 2018. Galeria Eva-sas.
O banquete de Platão
Nos banquetes, as mesas e o compartilhamento de alimento se celebram muitas coisas, inclusive o diálogo sobre temas essenciais.
Ocorrido por volta de 380 a.C. é um diálogo, e há alguns que preferem a tradução do grego como Simpósio (no grego antigo sympotein significa “beber junto), e o tema central é o Amor, entre o eros e o ágape, e o personagem central como na maioria dos seus diálogos é Sócrates.
Também estão no diálogo Aristófanes e Ágaton (ou Agatão), na casa dele ocorrera um banquete anterior em comemoração ao prêmio literário que ele havia ganhado, neste banquete Sócrates e outros participantes discursaram sobre o “amor”, estavam nele Apolodoro e Glaucon, Aristodemo e o próprio Ágaton.
Glaucon considera Apolodoro como doido porque despreza o material, Ágaton significa “bom” em grego, coisas boas e o amor levam à prática do bem e do belo, e se soubéssemos a prática do amor o bem que faz, os homens fariam um exército de amantes, lembrando o exército de banos, cuja frente estava Pelópidas e Epaminondas em 371 a.C.
O discurso de Fedro é que o amor cultuado pelos homens revela-os mais virtuosos e felizes durante a vida e após a morte, mas é na cosmogonia que os discursos vão se contrapor, enquanto Fedro vê a origem de Eros como um deus muito antigo, sem menção de progenitores, teve seu nascimento junto a Geia (terra) após o Caos.
Pausânias o segundo a discursar, contrariando Fedro, existem vários Eros, era filho de Afrodite, e duas Afrodites, uma filha de Urano e outra de Zeus, a de Zeus gera um eros vulgar e a de Urano um Eros celeste.
Eriximaco aprova a distinção de Pausânias sobre a duplicidade do Amor e, universalista, o amplia a todo cosmo: “grande e admirável, e a tudo se estende ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas”, sendo médico afirma que o amor e a concórdia provem a harmonia, combinando opostos (o sadio e o mórbido) que se estendo por todo universo: “deve-se conservar um e outro amor …”.
Aristófanes insistirá no poder que o amor possui sobre a natureza histórica, com o uso do mito dos andróginos, legimitima a homoafetividade e a desenfreada busca pelo que hoje chamamos de “almas gêmeas”, que é uma busca pelo perfeccionismo e de certa forma pelo narcisismo.
Sócrates elogia o fato de Ágaton ter principiado a mostrar a natureza e quais são as obras do Amor, mas depois segue seu clássico método da Pergunta: “é de tal natureza o Amor que é Amor de algo ou de nada?”, Ágaton confirma que o Amor é Amor de algo. De qual “algo” é o Amor e segue com a indagação: “Será que o Amor, aquilo de que é amor, ele o deseja ou não ?” e segue o banquete a moda dos clássicos gregos.
O banquete, a mesa a qual todos sentam é o importante deste diálogo, parece tão clássico e tão presente, mas acrescentaríamos uma questão e Francisco de Assis, lembrado estes dias, afirmava ele com convicção: “O Amor não é amado”, assim antes de ser instrumento como afirma Agaton é ele próprio algo a ser usado como instrumento, em momento de tanta dor na humanidade, ou então a maneira socrática perguntar: “É o Amor amado ?”.
Platão, O Banquete, ou, Do Amor – trad. José Cavalcante de Souza, Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
Auxilio efetivo a pobreza
Se por um lado é necessário o auxílio emergencial, principalmente porque a pandemia impede o exercício de trabalho informal e muitas famílias economizaram com empregados domésticos, é necessário um plano de recuperação a médio e longo prazo para evitar uma degradação e uma distribuição de renda ainda pior do que a que já existe.
O economista Muhammad Yunus é conhecido no mundo inteiro como “o banqueiro dos pobres”, mas na verdade não é um banqueiro no sentido convencional, pois ele auxilia pessoas que nunca tiveram acesso a nenhum sistema bancário, o que fomenta é um empreendedorismo, principalmente entre mulheres, e seus resultados são surpreendentes.
É verdade, entretanto que fundou um banco, o Grameen Bank em 1983 em Bangladesh, porém hoje o que mais faz são palestras, é um dos oradores mais solicitados do planeta, e recebeu entre outros prêmios, o Nobel da Paz em 2006.
Em suas palestras censura e critica banqueiros que visam apenas o lucro fácil, os juros escorchantes e pouco ou nada olham para a realidade social em que vivem, uma de suas frases muito conhecidas diz: “Lidar com teorias econômicas diante de pessoas morrendo [de fome], para mim era uma piada”, isto é ainda mais verdade numa pandemia.
O produtivismo utilitarista, a produção é necessária principalmente em bens essenciais, é aquele que visa apenas os setores mais atrativos onde o lucro é alto e o impacto social nem sempre tão alto, no que se refere aos pobres, e no caso da educação e da saúde, é necessário até mesmo que não seja considerado o lucro, pois se trata de investimento.
A ideia que invadiu diversos setores, e infelizmente também na educação e na saúde pública, que é necessário que estes setores sejam produtivos não é senão uma reprodução de um capitalismo selvagem incapaz de gerir a crise atual, e só está em alta por causa da desinformação da população, em tempos sombrios teorias autoritárias ganham voz.
O que Yunus diz sobre empregos é muito interessante: “Uma questão essencial está na ideia de emprego. Quem disse que nascemos para procurar emprego? A escola? Os professores? Os livros? Sua religião? Seus pais? Alguém colocou isso na cabeça das pessoas. O sistema educacional repete: ‘você tem que trabalhar duro’. Seres humanos não nasceram pra isso. O ser humano é cheio de poder criativo, mas o sistema o reduz a mero trabalhador, capaz de fazer trabalhos repetitivos. Isso é vergonhoso, está errado”, aqui precisamos vencer também o economicismo assistencialista.
O mundo digital no qual qualquer pessoa pode ter um sistema online e trabalhar nele, onde empregos “informais” podem tornar pessoas de qualquer localização, inclusive da periferia empreendedores, vão de encontro a proposta de Yunus, tornar os “serviços” mais próximos da população de periferia é possível graças a onipresença do digital.
Empreendedores existem em todas camadas sociais, arrisco até a dizer que eles se concentram na periferia, o problema é quem se arrisca a colocar capital ali, quem poderia financiar estes “microempreendedores” de periferia, aí há solução, o número de empregos pode crescer rapidamente e haver circulação de bens e renda em ambientes frágeis.
Erro, cólera e thymós
Assim como o erro científico é assumido como parte da investigação científica, os erros nas relações humanas e sociais não devem levar a ruptura e o retorno a ligação entre pessoas ou grupos envolverá fatalmente algum tipo de perdão.
Muitas vezes é possível que o erro não seja assumido, mas subentendido, isto porque, ficamos justificando o caminho que tomamos e fazendo considerações sobre a nossa falta e acabamos por não assumi-la, mas o retorno deve ser sempre tentado, uma vez que o perdão sana e permite o diálogo avançar.
Peter Sloterdijk escreveu sobre a situação “timótica” de nosso tempo, Thymós está na base da teoria de Platão para designar os “órgãos” de onde nascem os impulsos, as excitações, as afecções mais inflamadas, parece algo muito presente em nosso tempo e assim delineou o seu livro Ira e Tempo (Cólera e Tempo, na tradução portuguesa da editora Relógio d´Água).
O assunto preferencial não podia ser outro que não a política, é sem dúvida o polo de catalização de ódios e rancores, onde o perdão e o diálogo parecem ser cada vez mais um ponto distante ao qual jamais se chegará, e o inverso disto é …
Estes impulsos atravessam não só as redes sociais, passam pelo jornalismo política e polarizam entre partidos, pessoas e grupos sociais, o que Sloterdijk faz na forma de “análise” é que existe um estado de proliferação (atenção, não é aquilo que Byung Chul Han vai chamar de psicopolítica, ou a antiga “política de massas”), já chamamos a atenção para Karl Kraus, que em seu tempo entre guerras, chamava a atenção para o discurso da imprensa e dos intelectuais.
Em uma de suas comédias, “A terceira Noite de Walpurgis”, dizia que “sobre Hitler não me vem nada à cabeça”, é lógico que ele não ignorava o perigo daquele discurso, porém alerta os jornalistas e escritores que insistiam em apenas ironizar e dizia que os media pareciam gostar do cidadão indignado, mas impotente, assim tem o efeito inverso do desejado.
Um olhar analítico sobre a psicopolítica que Chul Han faz não é dispensável, ainda que estejamos munidos de pouco saber sobre esta matéria, verificasse que o estado de alta tensão timótica, instaurado pelos meios de comunicação para garantir o sucesso de indivíduos que estejam carregados de “thymós”, nos leva a uma guerra civil sem fim (aparente).
É como se toda ira só encontrasse sua “economia política” naquilo que Sloterdijk chama de cinismo “racional”, uma espécie de “banco mundial da ira” que catalisa não por acaso, lados opostos da polarização atual.
Basta olhar os políticos de diversas tendências para ver o quanto estão agarrados a esta tendência, assim o ressentimento e a legitimação de crimes tornam a indignação popular impotente, reclamar apete e torna-se tábula rasa para qualquer início de conversa, mesmo que venha de um sentimento libertador que deveria apontar para o novo.
A ausência de perdão ou ao menos de tolerância, torna a violência e o falso radicalismo visíveis e esconde a impotência.
SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo – ensaio político-psicológico. Trad. Marco Casanova. SP: Estação Liberdade, 2012.