Arquivo para novembro 24th, 2017
Arte Ideal, representação e re-vel-ação
Para ver uma coisa é preciso ver além do aparente, isto é, aquilo que Rancière que já chamou (ver no post anterior) de visão dupla, que significa ver duas coisas ao mesmo tempo, não é “uma questão de trompe l´oeil* ou de efeitos especiais. É um problema de relações entre superfície de exposição das formas e superfície de inscrição das palavras” (Ranciére, 2003, p. 89) não podendo, portanto ser um jogo de ilusões, ou ainda uma pintura idealista que busca o ideal das formas sob o imediatismo da presença, aquele estilo de “natureza morta” ou de “cenas de costumes” que são comuns em muitas casas.
Esta arte que pretendeu a re-presentação ou ainda a re-velação, note-se bem a a etimologia destas palavras que dão a elas próprias um sentido mais correto, qual seja, o de renovar a presença e a outra, de renovar o véu que cobre a imagem, ver, portanto não é a “mediação das palavras que se configura o regime dos ´imediaticismos’ da presença.” (RANCIÈRE, 2003, p. 89).
O imaginário, o lúdico e o espiritual escaparam por um longo tempo dela, mas recomeçou um renascimento com Kandinski, Henri Matisse e outros mais contemporâneos Pablo Picasso, Miró, um exemplo clássico foi a Dança II de Matisse (ilustração ao lado), cuja ideia do quadro teria surgido de uma dança da roda chamada “A Sardana” do sul da França, e foi encomendado por seu patrono russo Sergei Schukin, para ser exposto no Palácio de Trubetskoy ao lado de outra obra de Matisse “A Música”.
A dança sinuosa em que o movimento se transporta para os corpos e pernas é intencional para afirmar o envolvimento das dançarinas, e esta representação em círculo tornar-se uma eterna presentação e a re-velação se transforma num desvelar, ou seja, retirar o véu do que está oculto e por isso a nudez dos corpos, que o patrono Sergei teria discordado de início, porém depois de ver o esboço teria mudado de início, ou seja, não se trata da nudez porém da significação que tem a dança que é o envolvimento harmônico das dançarinas.
O ideal da forma transforma-se em formas dos ideais, aquilo que o próprio Matisse disse procurar em sua arte: “O meu sono é realizar uma arte do equilíbrio, de pureza e serenidade”.
A perfeita interação entre estas dançarinas não é um idealismo, mas a busca da interação entre pessoas, povos e culturas, o sonho de Matisse.
O quadro A dança II parece desvelar em uma imagem o sonho do autor, os corpos interagem numa “comunhão”.
Vive-se um tempo de cegueira, não apenas no mundo da cultura e por consequência da arte, mas também a cegueira social, política e até religiosa, aquilo que José Saramago que descreve em seu “Ensaio sobre a cegueira” através de um motorista que subitamente fica cego parado em um sinal, neste o autor procura nos lembrar “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”.
A arte é uma maravilhosa forma de nos fazer enxergar e nos fazer recuperar a lucidez, a serenidade e o equilíbrio que faltam a nos dias de hoje, sem deixar de ser ousada e propositiva.
* Significa ao pé da letra “engana o olho“, porém é uma técnica para criar ilusão tridimensional.
RANCIÈRE, J. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.
Expressionismo, cegueira e véu
Foi importante para o desenvolvimento do abstracionismo e espiritualismo de Kandinsky e Matisse, entre outros, mas representa a crise do dualismo objetividade x subjetividade.
Um bom exemplo do expressionismo é o quadro O Grito, do norueguês Edvard Munch, que data de 1893, podemos compará-lo a cegueira, ou mesmo o velamento sobre o real, a objetividade, o próprio Munch escreveu sobre seu quadro: “Estava andando pela estrada com dois amigos / O sol se pondo com um céu vermelho sangue / Senti uma brisa de melancolia e parei / Paralisado, morto de cansaço … meus amigos continuaram andando – eu continuei parado / tremendo de ansiedade, senti o tremendo Grito da natureza”, quem acredita que estes sentimentos fossem contemporâneos acertaram, porém o são desde o século XIX.
É a cegueira idealista/realista, pode-se com uso de uma metáfora que é o desvelamento, a retirada de um véu que nos apresenta a dor e também da retirada do caminho de tudo o que não permite iluminá-lo, eis o novo tempo de um “advento”, algo que está por vir.