Existe uma voz da verdade
Embora seja um capítulo precedente no livro “O coração de Heidegger”, o capítulo IV “Voz” poderia ser o de uma conclusão de Byung-Chul, porém está correto pois não seria uma conclusão heideggeriana, a epígrafe que é uma citação do livro dos Reis ao profeta Isaías é simbólica: “Sai e põe-te neste monte perante a face do Senhor … e sucedeu que, ouvindo-a Elias, envolveu o rosto na sua capaz […]” (Han, pg. 107).
Vasculha a “série de indicações” nos “Quatro Seminários” de Heidegger, o primeiro é ouvir que escrever, propõe que há aí uma ligação com a metafísica, enquanto a escrita se fixa num “logocentrismo”, ele põe o ouvinte em uma tonalidade afetiva do acontecimento apropriador? E responde com o discurso de Platão sobre a escrita como “trai o discurso vivo e animado do sábio” (Han, pg. 110), pois ela se retira para a interioridade no tempo, difere de Hegel que vê “a verdade do espaço”, curiosamente aquele que reivindica a história.
“A voz também preenche a necessidade de uma interioridade desobstruída, não perturbada por uma exterioridade” (Han, pg. 111) e é importante que “Ela cria a aparência de uma absoluta interioridade não mundana” (pg. 111) e não se trata do egocentrismo da razão cartesiana, e do idealismo: “ouvir-se-a-si-mesmo-falar, a fórmula fundamental da subjetividade, não faz justiça a toda fenomenalidade da voz” (pg. 113), ela questiona a economia narcisista do espelho.
A flauta e a voz para Platão e também em Aristóteles é muito semelhante a voz humana, escreveu Aristóteles: “Ora, o canto e o som da flauta se misturam como resultado de sua semelhança […]. Além disso, a flauta, por seu som e sua semelhança (com a voz), pode esconder muitos erros do canto […]” (Aristóteles apud Han, pg. 116).
O Ser-aí de Ser e Tempo (Heidegger) “certamente não pode ser suspeito de cegueira narcisista. O ser-aí não se instala no interior sem janelas. Existência significa ser-fora” e vai além “O ser-aí está em casa fora do mundo” (Han, pg. 118), mas nem Heidegger nem Han vão até o fim nesta elaboração, ou seja, estar em casa e fora do mundo o que de fato são.
Identificam que “o ser-aí se doba na voz que se propaga”, e que a “voz estranha” se revela como própria do ser-aí (Han, pg. 119), e quem é “aquele que chama e o ouvinte são idênticos” (pg. 119) já que “esta voz não transporta nenhum significado, nenhum conceito” (pg. 120).
Esta unidade do Ser e do Ser-com-Outro não se realiza sem esta verdadeira espiritualidade não egocêntrica, não polarizadora e não individual, é preciso um conceito trinitário, ou seja, há uma terceira Pessoa que une o ouvido e o ouvinte em uma coisa só, falta um ponto final nesta conversa de Heidegger através de Byung-Chul (na imagem o quadro de Tsherin Sherpa (Nepal), Espíritos Perdidos, 2014.).
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.