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Agostinho e seu trinitarismo

14 mai

Agostinho de Hipona continua atual, entre suas contribuições mais profundas está justamente onde sua “conversão” operou, a mudança do maniqueísmo para o cristianismo.

Maniqueu (Manis ou Mani, 216-274 d.C.) era árabe e defendia a existência de dois princípios opostos o bem (espírito) e o mal (matéria), assim a busca ascética era a elevação da matéria ao espírito, porém eram forças equivalentes, boa parte da religiosidade ainda tem esta visão.

Agostinho de Hipona ao romper com esta filosofia entende que o mal não é uma força que independe e é coeterna a Deus (o Bem), a clássica pergunta onde estava Deus quando …, ela é uma perversão da vontade livre, posso optar pela morte, pela destruição e isto não é princípio.

Agostinho nas confissões fala de influências de outros filósofos além de Plotino, como a de Cícero (Confissões, III), porém toma um rumo novo e diferente a partir do ano de 387 d.C. quando num sábado na Festa da Epifania se batizam ele, o filho Adeodato e um amigo Alípio.

Por volta do ano 388 inicia a escrita dos seus livros: Os costumes da igreja católica e os costumes dos maniqueus e O livre arbítrio, que seriam concluídos por volta de 395, dois anos após escreve as Confissões, seu livro mais famoso e mais difundido.

No ano 396 é convidado pelo bispo Valeriano de Hippo Regius a passar uns dias na sua casa em Hipona, com a morte deste é aclamado a tornar-se bispo de Hipona, o ambiente romano da época era bastante tumultuado com invasões dos Vândalos e Godos na região.

É fundamental a exortação de Agostinho sobre o Genesis 1,26: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” onde o “nossa” lembra um coletivo e não uma pessoa da Trindade.

Hoje a maioria dos estudiosos de Agostinho de Hipona concordam que ele começou a escrever De Trinitate por volta de 399, terminando-o somente 20 anos depois, em 419-420, estava animado com a conclusão “trinitária” dos 17 anos do concílio sobre a “paz” de Constantinopla (381), e também o arianismo (que Jesus não seria Deus) e outras heresias estavam derrotados.

De Trinitate foi, sem sombra de dúvida, em todos os aspectos, a obra mais difícil de Agostinho. Não só pela complexidade e a profundidade do tema, mas também por todas aquelas contrariedades na com posição (mormente o dito “roubo” dos livros I a XII, por volta de 416) as quais, não fora fortemente instado aquando se deslocou a Cartago, em 418, o teriam levado a abandonar o projeto, afirma o prefaciador J. M. da Silva (AGOSTINHO, 2008, p. 16).

O prefaciador também afirma: “reside na ‘perspectiva fenomenológica’ que deliberadamente assumiu pois, visando sempre o mais essencial e o mais significativo da cogitatio fidei, começou por remontar às condições de possibilidade da revelação trinitária como tal considerando o modo como a mesma se revela quer na criação, quer no homem, quer no próprio Deus” (p. 18), porém ainda hoje o maniqueísmo e certo tipo de visão dualista permanecem vivos.

AGOSTINHO, St. De trinitate, livros IX e XIII, Tradutores : Arnaldo do Espírito Santo / Domingos Lucas Dias / João Beato / Maria Cristina Castro-Maia de Sousa Pimentel, LusoSofia:press, Covilhã, 2008.

 

Espiritualidade oriental e a violência

07 mai

Ao analisar os efeitos da ausência, livro de Byung-Chul, ele continua discordando da visão funcionalista de F. Jullien, ao citar os parágrafos §§68 e 69 pode a primeira vista tratar da questão da eficácia, mas não é, ele pode “utilizar a energias dos outros sem esforços”, e cita o § 69 como uma interpretação funcional: “Laozi também aplica esse princípio ao âmbito da estratégia: um bom militar não é “belicoso”, isto é, como interpreta o comentador (Wang bi, §69), ele não se põe em perigo e não ataca. Em outras palavras, “quem está em condições de derrotar o inimigo não inicia nenhum combate com ele” (Han, 2024, p. 29 citando F. Jullien).

Assim um bom líder militar, afirma Han, apenas cuida que o inimigo não encontre caminho de ataque, faz pressão, mas “sem que ela se concretize totalmente”, e em seguida cita aquilo que Jullien vê como formulações paradoxais: “partir em uma expedição sem que haja uma expedição”, ou “arregaçar as mangas sem que haja braços”, ou “lançar-se à luta sem que haja um inimigo”, ou “segurar firmemente sem ter amas” (§ 69)” (Han, p. 30 Jullien analisando as citações de Laozi).

A contradição está acima da questão da vitória ou derrota, Han lembra que Jullien omite a última frase do §69 que é “o enlutado vence” (ai zhe shen, 挨着生) a outra contradição é entre a concepção de luto que Laozi usa o símbolo ai li usado em ritos funerários no sentido “de ficar de luto” (ai li, 哀禮), “lamentar” (bei, 悲), “chorar” (qi, 泣).  (HAN, 2024, p. 31)

O vazio budista kong (空) é muito próximo do vazio taoísta xu (哀), ambos são ausentes até se tornarem um não eu, um ninguém, um “sem nome” (idem, p. 31), já tratamos isto noutro post.

Por fim explica que o xu do coração no sentido oriental não tem interpretação funcional, é um sentimento não um cálculo ou um raciocínio, utilizará para isto a figura do espelho vazio, de Zhuang Zhou (diferente radicalmente do espelho animado de Leibniz explica), ele não precede, mas acompanha, citando Zhou:

“o ser humano mais elevado utiliza seu coração como um espelho. Ele não persegue as coisas nem vai em direção a elas: ele as reflete, mas não as segura […] ele não é um senhor (zhu, 生) do conhecimento. Ele se atenta aos mínimos detalhes e, no entanto, é inesgotável e reside além do eu. Ele aceita todas as coisas que o céu oferece, mas ele as tem como se nada tivesse” (Han, 2024, p. 32).

O zen-budismo também gosta da figura do espelho, lembra Han, nele se ilustra a não retenção (outra forma de ausência) do coração vazio (wu xin, 無心), que no ocidente seria um “não possuir”, “não querer” e espiritualmente um fazer um vazio na alma para “ouvir o coração”.

Não alimentamos nossa alma se não fazemos um vazio, o cardeal africano Robert Sarah em seu livro “A força do silêncio” lembra a ruidosa sociedade ocidental e o vazio existencial que ela penetrou, é famosa sua frase: “No silêncio não só nasce a caridade genuína, mas faz o homem ser mais parecido com Deus”, embora por caminhos diferentes é possível aproximar estas espiritualidades.

Byung-Chul Han citando o mestre budista Bi Yän Lu usando a metáfora do espelho: “somente quem reconheceu a nulidade do mundo e de si mesmo também vê nele a eterna beleza” (HAN, 2024, p. 33, citando Bi Yän Lu).

HAN, B.C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli. Petrópolis, RJ, Vozes, 2024. 

 

O que a filosofia oriental pode contribuir

02 mai

Tentando entender a etimologia de Ser no oriente, indicado por Han em seu livro Ausência, procurei as palavras Ser/Estar e não encontrei o símbolo que o autor aponta, ao colocar ser, possuir ou ter encontrei o símbolo 有 (you)  que “representa uma mão segura um pedaço de carne” (p. 17) … “no entanto, o ser como exigência, apetição, não domina o pensamento chinês” (HAN, 2014, p. 18).

Citando Zhuang Zhou, “o sábio caminha no não ser” (you yu wu you, 慧於無為者, Z. [Zhuan Zhou] Livro Z), que também fala em “caminhar na simplicidade” (you yu dan, 游宇丹) (p. 18).

Também cita o sábio chinês L. Laozi que nega igualmente a “essência” (wu, wu, 非無 ) e através da não essência (wu wu, L. [Laozi], §14), “ou melhor, au-sência”, em alemão Abwesen (essência) onde ab significa negação, lembro que a palavra em inglês absence também é muito próxima do alemão.

Para esta filosofia taoística, o sábio caminha onde não há “porta nem casa” e segundo Han é comparado a uma codorna que não tem ninho, ou seja, não tem uma morada fixa, assim “caminha com um pássaro que não deixa rastros” (p. 19), mas o não caminhar taoísta não é totalmente idêntico à “não habitação” budista (wu zhu, 無竹 ), mas a negatividade os conecta.

O mestre zen japonês Dogen também ensinar o habitar em parte alguma: “um monge zen não deve ter domicílio, como as nuvens, e não deve ter um suporte fixo, como a água” (p. 20).

O caminhante de Laozi não persegue nenhuma direção, não tem nenhuma intenção, ele não vai a lugar algum (p. 20), e tudo isto sugere um não Ser, mas isto não é um niilismo oriental, pois ali também “surgem essencialidades fixas … a alma também insiste” (p. 21), assim a figura que recomenda o caminhar no não ser ao “chão do céu”, onde buscava conselhos, Wu Ming (無名 , literalmente, “o sem nome”, Z. Livro 7).

Esta interpretação inédita, para mim, de uma fusão do budismo com o taoísmo parece no não ser, sugerir uma transcendência como a divina do ocidente não secularizado, “aquele que é” e que de fato não pode ter nome, porque é assim pura linguagem no silêncio e no não ser.

Assim retorno as análises anteriores de uma filosofia ocidental presam ao logicismo e de uma lógica binária onde o Ser é e o não-Ser não é, e a filosofia oriental caminha numa direção do não-Ser, assim ausência pode também indicar uma forma de ser transcendendo ao Ser-é.

Vejo certa fusão possível e um novo horizonte num círculo hermenêutico nesta “ausência” oriental: ser, não ser e não-ser transcendente (ausência ou vazio).

HAN, B.-C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli, Petrópolis, RJ: Vozes, 2024.

DOGEN, Eihei, Shobogenzo Zuimonki, Unterweisungen zum wahren Buddha-Weg. Heidelberg: Kristkeitz Werner, 1997. (citado por B.-C. Han).

ZHOU, Zhuang. Das whare Buch Das wahre Buch vom südlichen Blütenland, Düsserldof: diederichs, 1969. (citado por B.-C. Han).

 

A virada linguística e a retomada do Ser

26 abr

Completando o percurso introdutório das ideias da modernidade, que conforme postamos vem das questões dos universais x particulares (querela medieval), depois nominalismo x realismo (filosofia do final da idade média) e finalmente a questão da razão moderna.

O realismo filosófico da modernidade se viu independente da ontologia da realidade em relação aos esquemas conceituais, de crenças ou mesmo de pontos de vista, tipicamente a verdade é uma questão de correspondência entre nossas crenças e a realidade.

Porém o final do século XIX e início do século XX, tanto através da fenomenologia e da hermenêutica estes conceitos voltam a entrar em xeque, e tanto o ressurgimento da ontologia quanto a viragem linguística (que é possível fazer uma conexão com o nominalismo) são dois fenômenos novos na filosofia onde se questiona a “ilusão do sentido” e a “tarefa interpretativa” pressuposto pela “virada linguística” e pela fenomenologia.

Filósofos como M. Heidegger (1889-1976) e L. Wittgenstein (1889-1951) levando esta virada linguística a últimas consequências questionam temas como o de sujeito (a questão do Ser), verdade (além da lógica formal) e racionalidade através da epoché fenomenologia (colocar entre parêntesis) e da redução eidética, a busca da essência como estrutura invariável de um fenômeno.

Por isto, todo o percurso do pensamento foi necessário, e também sua desestruturação com o idealismo moderno (eidos gregos com visão racionalista), a retomada do Ser o reintegra.

Filósofos como Duns Scotto (1266-1308) são recuperados (realismo moderado) e é possível traçar sua influência desde René Descartes e Leibniz até M. Heidegger, para ele “o ser humano perdeu a intuição direta da essência dos entes” e isto torna sua filosofia bastante atual, vendo presente no ente a intuição direta essência.

Esta essência é interpretada no contexto em que a obra foi escrita e não no contexto que é lida, assim assinalou Paul Ricoeur (2010, p. 24), é a identificação de como o que “outrora foi”, o re-efetuar o que é um des-distanciamento, e não o distanciamento puro supondo-o neutro.

Assim o interprete deve ser visto no seu contexto como um Outro, junto a sua essência.

Somente esvaziando o ego racionalista, recuperando nossa miseri-cordis (humildade de coração) pode o fazer o homem moderno sair da oposição dualista e falsa do realismo moderno, devolvendo-lhe a dignidade de sua cultura e do seu ser, fora da visão idealista.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo/Sein und Zeit. Petrópolis: Vozes. 2012.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

 

A idade da razão e a ontologia da coisa

25 abr

O final da idade média significa o renascimento do humanismo grego, porém retoma a ideia da intuição apenas se fundamentando no intelecto da razão, para René Descartes (1596-1650) ela é a única capaz de distinguir o verdadeiro do falso e ela que permite obter o conhecimento do mundo, os 4 pontos de seu método são: evidência, análise, ordem e enumeração.

Esse caminho constituído pela dúvida, a experimentação (nasce o empirismo) e a formulação de leis foram as influências que viriam a predominar os preceitos racionalistas do iluminismo.

Immanuel Kant (1724-1804) faz em sua Crítica da Razão Pura, uma reelaboração das ideias empiristas e racionalistas, e é esse caminho que irá elaborar as doutrinas iluministas dos século XVII e XVIII ocidental, ela afirma “Toda a nossa intuição não é mais do a representação de um fenómeno ; as coisas que nós intuímos não são, em si próprias, como nós as intuímos, nem as relações entre elas são em si próprias tais como nos aparecerem” sendo um ponto central da sua filosofia, em particular no seu Idealismo Transcendental.

Para Kant, mediante esta intuição, os objetos nos são dados e a doutrina que estuda estes dados é a Estética Transcendental, ela ordena e classifica as coisas segundo uma série de categorias não apenas intuídas, mas deduzidas pelo intelecto, não é mais uma transcendência divina, é fruto da razão prática de uma ordem moral.

O mundo do sujeito e suas elaborações fica reduzido a sua “subjetividade”, sua forma como cada indivíduo experiência e constrói o mundo, assim seu “método” em sua crítica da “razão pura” é a capacidade de um sujeito de pensar, julgar e agir sobre o conhecimento dos objetos.

Estabelece então um dualismo entre a objetividade do mundo das coisas e a subjetividade do sujeito que conhece através de uma “transcendência” que é sua experiência sobre o mundo.

O auge do idealismo, principalmente na Alemanha é o idealismo de Hegel e seus discípulos, e após a sua morte se dividem entre os velhos hegelianos presos ao mundo da transcendência e suas contradições dualistas e uma reelaboração do espírito religioso idealista, destacam-se David Frederico Strauss (1808-1874), os irmão Bruno Bauer (1809-1882) e Edgar Bauer (1820- 1886), e Max Stirner (1806-1956).

Entre os jovens hegelianos, segundo a visão de Karl Marx estavam ele e seu companheiro Frederic Engels, fazem uma crítica a Ludwig Feuerbach (1804-1872), para eles o único que teria passado do idealismo Hegel para um materialismo objetivista e assim nasce o marxismo.

Assim escreveu Engels:  ele [Feuerbach] “…pulverizou dum golpe a contradição, repondo em seu trono, sem mais delongas materialismo. A natureza existe independentemente de toda a filosofia e é a base sob a qual crescem e se desenvolvem os homens, que são também, eles próprios, produtos naturais; fora da natureza e dos homens nada existe …” (Engels, 1941).

Porém Feuerbach se apoiava na natureza e pouco na política, e aí nasce a crítica marxista.

A ideia de ser fica reduzida a uma concepção histórica e materialista, relacionada a produção, a economia e a política, já a visão contemplativa, moral e ética do Ser ficam sujeitas à “coisa”.

A ideia que houve um momento da criação do universo fica sujeita a matemática e a física.

 

Engels, F. Ludwig Feuerbach. Versão espanhola, página 13, Moscou 1941.

 

Sobre o ente e a essência: a ontologia escolástica

24 abr

Anselmo da Cantuária (1033-1109) é anterior a Tomás de Aquino (1223-1274) e influenciado por Boécio (480-534), já traçados em posts anteriores o caminho de Plotino até Boécio, passando por Porfírio (234-304 dC), e o seu nome verdadeiro seria Malco ou Telec, ele traduziu Enéada.

A influência de Aristóteles e Platão é grande, porém a tentativa de síntese de Aristóteles e Platão já em Isagoge de Porfírio, que foi traduzida para o latim por Boécio, sendo atribuída a Tomás de Aquino e por consequência a igreja católica é um equívoco, foi Anselmo da Cantuária o fundador de fato, da filosofia escolástica, com sua onto-teológica e seu “argumento ontológico” de Deus.

Deve-se a Boécio a “querela dos universais”, se eles existem ou são apenas nomes, o que dividiu o nominalismo e realismo, da Baixa Idade Média e inicio da Renascença.

Na adolescência Anselmo não teve aprovação do pai para ser monge, após uma doença, ele sai de casa e vai para a Normandia, lá seu conterrâneo Lanfranco o recebe como noviço na Abadia de Le Bec em 1059, e em 1063 se torna prior, quando escreve as obras Monológio e Proslógio.

Le Bec é por este período um centro de estudos, mas inicialmente protegido de Guilherme II, recebe terras que depois serão tomadas, é deste período as primeiras investigadas dos reis sobre as nomeações de bispos e até de papa (é uma história a parte), porém nomeado bispo da Cantuária (Canterbury, é até hoje é sede do bispado anglicano) (foto).

Ele se submete ao papa Urbano II (na mesma época havia Clemente III, considerado antipapa), foi o primeiro inclusive a falar contra o tráfico de escravos em 1102, num concílio em Westminster (revendo os fatos), não se submeteu à monarquia inglesa, e teve 2 exílios.

Em Proslógio,  a existência de Deus é um “a priori”, ou seja, através da razão, sem recorrer à experiência, parte do conceito que “um ser do qual não se pode pensar nada maior” (Deus) e argumenta que*, para ser o ser mais perfeito, Deus deve existe tanto na mente como na realidade. 

Tomás de Aquino sofreu influência de Santo Anselmo, e em sua obra de juventude “O ente e a essência” ele descreve a questão do ser e da realidade, distinguindo ente (aquilo que é, o ser) de essência (o que algo é), nela esclarece como o intelecto percebe inicialmente o ente e sua essência, explorando a relação entre substâncias simples e compostas. 

Para Duns Scotus (1265/1266-1308), um realista moderado para alguns, um nominalista na minha visão, os universais existem como entidades “in rebus” (nas coisas), mas não são separados deles como as ideias platonistas, e sim como uma “ratio” (razão) do intelecto.

Sua principal tese descrita em Ordinatio I, parte 1, qq. 1-2) é que “se há entre os entes um ente infinito atualmente existente”, para ele os universais “bondade” e “verdade” serão reais, isto está expresso biblicamente: “caminho, verdade e vida” (Jo, 14-6) e “só um é o bom” (Lc 18,19).

ANSELMO, St. Proslógio. Trad.: Ângelo Ricci, Ruy Afonso da Costa Nunes. São Paulo, SP; Nova Cutlural ed., 1988. (Coleção os Pensadores, Anselmo/Abelardo). (4ª. edição) (pdf)

AQUINO, S. T. O Ente e a Essência, R.J.: Mosteiro de São Bento, Editorial Presença, 1981.

SCOTUS, John Duns. Seleção de Textos. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

* ”Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não existe porque “o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe”?4 Porém, o insipiente, quando eu digo: “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, ouve o que digo e o compreende.” (4 Salmo 13, 1).  Texto na Coleção Pensadores.

 
 

O ser: ontologias e epistemes medievais

23 abr

Agostinho de Hipona, após ter abandonado o maniqueísmo, dualismo entre o bem e o mal, elabora uma ontologia pouco conhecida e citada, mesmo por teólogos, trata-se de uma ontologia trinitária e uma gnose (ou episteme) complexa da verdade.

Ao fazer a leitura de uma passagem do Genésis (Gn 1,26), que é o homem feito a imagem de Deus (imago Dei), ele pondera que a expressão correta é: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança, façamos e nossa foram ditas no plural, e não podem ser compreendidas a não ser como relação” (Agostinho, De trinitate, VII,6,1), onde o plural “façamos” e “nossa” estão lá invocando a trindade.

Esta visão antropológica não poderia passar despercebida, porém a visão filosófica de ser e ente ficam submersas e subentendidas no texto, o homem enquanto ser criado e ente, é ao mesmo tempo Imago Dei e natureza perecível, porém a imagem significa trinitária, e, por outro lado perecível significa finito enquanto ente e não enquanto Ser.

Agostinho não usa categoria ontológicas, mas onto-teológicas, assim o homem tem alma imortal e corpo perecível, Agostinho para responder a este aparente paradoxo criacionista, usa o conhecimento neoplatônico, que o ser humano é composto por uma porção corpórea/ material e uma porção espiritual, que diferente do dualismo que desmerece o corpo.

Para Agostinho a alma conhece e vive no corpo, assim “logo, tal como a mente recolhe o conhecimento das coisas corpóreas por meio dos sentidos corporais, é por si mesma que [recolhe o conhecimento] das incorpóreas. Portanto, já que ela própria é incorpórea é por si mesma que ele se conhece” (De Trinitate, XI,3,3 ), e assim formula sua episteme inseparável da alma e vista como “trinitária”.

Dito de outra forma, é subjacente ao autocentramento da mente, o se conhecer e se a amar, há o concurso da memória, da inteligência e da vontade, isto será mais desenvolvido em Porfírio e depois em Boécio (480-524 dC).

Discípulo de Plotino, Porfírio (c. 234–305 d.C.) foi um filósofo neoplatônico e seu trabalho sistematizou e difundiu o pensamento neoplatônico, suas contribuições abrangem diversas áreas, incluindo lógica, metafísica, ética e teologia, porém é famosa sua arvore do conhecimento, chamada Árvore de Porfírio (imagem acima).

Boécio seu discípulo e tradutor avança na contribuição que Porfírio pretendia deixar de unificar a filosofia platônica e aristotélica, a chamada henologia (a doutrina da unidade divina), sua obra Consolações Filosóficas traz parte do questionamento sobre conceitos particulares e universais, que será tema polêmico entre os nominalistas e realistas da baixa idade média.

Período caracterizado pelo feudalismo e pelas rotas comerciais preparou o renascimento.

SANTO AGOSTINHO, De Trinitate / Trindade, Covilhã, PT: Paulinas Editora, Prior Velho, 2007 (pdf IX-XIII)

 

Princípios da história do Ser e eternidade

22 abr

Na filosofia não há como referir-se ao Ser sem abordar o ente e a essência, dita de diferentes formas pelos filósofos durante o processo civilizatório e de construção do conhecimento, há pontos que podem ser traçados nesta trajetória.

Para os gregos, a partir de Sócrates, o ser (visto como o que constitui ser humano) reside na alma ou razão, que não são separadas, e a consciência é a fonte tanto intelectual como moral e o homem é capaz de transcender o mundo material e buscar a verdade e a virtude, para ele a alma é essência e não está separado do corpo (ente ou forma) é obstáculo para as virtudes.

Platão elabora o “ente” (o ser) é aquilo que existe, enquanto “essência” (a forma) é a natureza fundamental e imutável que define esse ser, enquanto Aristóteles a essência de um ser é a sua natureza fundamental, o que o define e o torna o que é, ela é a forma que se une à matéria para formar uma substância, que é o ser individual.

Assim o transcender de Sócrates some, Platão então elabora o Sumo Bem como a essência do que é bom, justo e verdadeiro,  enquanto Aristóteles o define como busca da felicidade, o bem mais alto que o ser humano busca, também cria a ideia do motor imóvel, causa primeira de tudo que existe e do universo, Platão defende a imortalidade da alma, já Aristóteles está preso a ideia da finitude humana onde tudo é mortal.

O neoplatônico Plotino (204-270 d.C.), vê a alma concebida como uma ponte entre o mundo inteligível (o Uno e o Intelecto) e o mundo sensível, é a imagem do Intelecto e da força vital que impulsiona a vida e o motivo, em seu livro Enéada VI:

“E nós, o que somos nós? Somos aquele ou somos o que se associou e existe no tempo? Na verdade, antes de acontecer o nascimento, estávamos lá [no inteligível], sendo outros homens e, alguns, também deuses: almas puras e intelectos unidos à totalidade da essência, partes do inteligível, sem separação, sem divisão, mas sendo do todo (e nem mesmo agora estamos separados). Mas agora, daquele homem se aproximou outro homem, querendo ser. E nos encontrando, pois não estávamos separados do todo, ele se revestiu de nós e acrescentou a si mesmo aquele homem, o que cada um de nós era então” (Plotino, VI, 4, 14, 16-25).

Plotino vê a Alma em vários “estágios”, é ela que conecta Espírito e Corpo, a natureza superior e sua materialidade),  é uma criatura de Deus, criada à sua imagem e semelhança, composta por corpo e alma imortal, Agostinho de Hipona reelabora isto como o Ser é uma criatura de Deus, criada à sua imagem e semelhança, composta por corpo e alma imortal, a vê assim fora de sua finitude corporal.

Já o corpo em santo agostinho possui uma natureza dupla, a primeira física e material, como o seu corpo em que ele viveu e a segunda refere-se à igreja como metáfora de corpo de Cristo.

Penso nesta metáfora no sentido da cosmovisão, também o teólogo do século XX Teilhard de Chardin via assim, todo universo é corpo de Cristo, ou seja, não a igreja itinerante, mas aquela eterna e viva na imensidão do universo, assim o seu corpo é eterno, e este é o significado maior da ressureição, Jesus teve uma vivência temporal, uma ex-sistência, mas Ele é eterno.  

 

A paz e a morte do papa

21 abr

As conversações de tréguas entre Rússia e Ucrânia, entre Israel e o Hamas e a guerra só tarifaço de Trump põe o mundo sob alerta de uma grave período de instabilidade civilizatória.

A morte do papa Francisco nesta madrugada da Brasil e manhã da Itália significa também a perda de um defensor incansável da paz e repercute no mundo todo. 

Em nota oficial, na tarde de hoje (21/04) o Vaticano esclareceu que a morte do Papa Francisco aconteceu as 7h35 (hora da Itália), portanto 2h35 do Brasil), causada por:

– AVC Cerebral

– COMA

– COLAPSO CARDIOCIRCULATÓRIO IRREVERSÍVEL  

Deixo um vídeo pessoal onde faço uma reflexão sobre o verdadeiro pensamento do Papa sobre questões polêmicas expressa no capítulo 3 de sua encíclica Fratelli Tutti (todos irmãos), segue:

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A dor, o Ser e a Páscoa

18 abr

Este é um tempo que tentou abolir a dor e exaltar o prazer e a euforia a qualquer preço, porém é tempo de depressão, pânico, intolerâncias e sem vida empática, escreveu Byung-Chul Han: “Justo na sociedade paliativa hostil à dor, multiplicam-se dores silenciosas, apinhadas nas margens, que persistem na ausência de sentido, fala e imagem” (Han, 2021, p. 57).

Nada mais paradoxal neste tempo que mostra que a dor é parte essencial da existência, quem pode aceitar isto senão aqueles que ultrapassaram o desejo de imortalidade e perseguem o desejo da eternidade, Han que tem tendência budista e Hannah Arendt que tem origem judaica escreveram isto.

Walter Benjamin que tinha raízes fortes raízes na Escola de Frankfurt escreveu: “A dor apenas, entre todos os sentimentos corporais, é, para o ser humano, um fluxo navegável, com águas que nunca se esgotam e que o conduz ao mar”.

A ausência de entendimento deste sentimento próprio do Ser, levam a dificuldades de lidar com a frustração, as perdas e as reviravoltas da existência, torna-nos mais fracos e menos resilientes a qualquer contradição, muitas vezes incapazes de lidar com elas.

Entender a dor também nos ajuda a compreender a finitude humana, a morte não como um fim em si mesma, que torna a vida limitada e pequena, mas acreditar que existe algo além dela, que há uma “passagem” para a eternidade, e que sem ela a vida parece efêmera.

Vivemos do consumo, do “disponível”, onde “o mundo que consiste do disponível só pode ser consumido. O mundo, porém, é mais do que a soma do disponível. O mundo disponível perde a aura, sim, o aroma. Ele não permite nenhum se demorar” (Han, 2021, p. 94).

É também um mundo sem a “alteridade”, assim descrita por Han: “Ela o protege de degradar- se em um objeto de consumo. Sem a distância originária, o outro não é nenhum tu. Ele é coisificado no Isso. Ele Não é convocado em sua outridade, mas sim apropriado” (idem, p. 94), aqui Han está lembrando de um texto de outro pensador e educador que é Martin Buber.

Somente pode entender a dor, e a dor extrema como aquela morte de cruz de Jesus aqueles que já passaram da finitude do mundo, do consumo imediato e da vida passageira, para um desejo verdade de eternidade, já aqui, mas como enfatizada Han, logo depois volta ao mundo circundante, que é realidade, porém não anula o desejo e o alcance do além do Ser finito.

HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021.