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Convergências e divergências na filosofia Oriental
Ao criticar o idealismo, em especial Kant, o próprio Byung-Chul Han vai revelar em seu livro Ausência, que “o pensamento oriental se volta inteiramente à imanência” (Han, 2024, p. 41) e ainda que haja na filosofia oriental uma verdadeira ascese, ela está deslocada e ao mesmo tempo próximo de um sentido ontológico do Ser-para-o-outro e fica preso ao “assim-é”.
A Crítica da razão pura de Kant, uma crítica revisionista da metafísica racionalista, cria um dualismo entre aquilo que podemos conhecer por estão presente no tempo e no espaço, sendo assim imanente, com aquilo fora do tempo e espaço, e por isto transcendente, ora toda a física quântica atual seria transcendente, e no entanto, para os físicos é imanente, pois tudo que não é demonstrado pertence ainda a física teórica, como a teoria das cordas, por exemplo, ela tem outras dimensões.
Usa o conceito oriental de dao, com ideias de equilíbrio mental e do corpo, porém Han o coloca no “assim-é” das coisas e do aqui-agora, e assim escaparia à nomeação, pois ele é alto-demais, algo que flui porque meandra (p. 41), porém lembramos que no centro da via láctea está um buraco negro, e a física teórica agora especula que podemos estar dentro do buraco negro, e assim a transcendência idealista e daoísta lhe escapa, há um “terceiro incluído”.
Assim como o oráculo grego e o profeta hebraico, Han argumenta que “o sábio não existe nem retrospectiva nem prospectivamente… ele vive presentemente” (Han, 2024, p. 42), mas ao afirmar que ele “não tem a agudeza e a resolução do instante” (p. 43), admite que “o instante está ligado à ênfase e à resolução do agir”, assim a ausência não está nem no espaço nem no tempo, a física chama este estado de “entrelaçamento” e é exatamente o terceiro incluído.
O problema de escapar da transcendência e da imanência está no aspecto “trinitário” no qual algo teo-transcendente acontece, porém partindo da antropotécnica, que admite uma visão da techné que originalmente pertencia ao conhecimento prático, sem ser o empírico idealista, e, que a antropotécnica trata, porém escapa-lhe o aspecto onto do além do técnico e da ação.
Há uma convergência do princípio trinitário com a crítica de Han, no situacional há um “escape” da “situação heidegeriana” onde “o Dasein se apropria resolutamente de si mesmo. Ele é o supremo da presença. O caminhante habita em cada presente, mas não permanece, pois, a permanência possui uma referência aos objetos forte demais” (Han, 2024, p. 43).
Ele apresenta um sonho de Zhuang Zhou que no qual seria uma “borboleta”: “Esquecendo-se de si mesmo, Zhuang Zhou flutua entre si mesmo e o outro” (p. 44), mas em seguida volta a contrapô-la a essência, um “habitar em parte alguma” do zen-budismo, porque uma outra transcendência trinitária inexiste para o zen-budismo, é um elevar-se ao céu infinitamente.
Lembro Duns Scotus que afirmava que não podemos separar o “ser” de uma coisa do que é.
Só há uma verdadeira ascese a um estágio trinitário, é uma imanência divinizada ou uma transcendência não objetiva, o Ser por ausência eleva-se a Deus, assim o que preenche este vazio fica não incógnito, é ele próprio.
HAN, B.C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli. Petrópolis, RJ, Vozes, 2024.
Espiritualidade oriental e a violência
Ao analisar os efeitos da ausência, livro de Byung-Chul, ele continua discordando da visão funcionalista de F. Jullien, ao citar os parágrafos §§68 e 69 pode a primeira vista tratar da questão da eficácia, mas não é, ele pode “utilizar a energias dos outros sem esforços”, e cita o § 69 como uma interpretação funcional: “Laozi também aplica esse princípio ao âmbito da estratégia: um bom militar não é “belicoso”, isto é, como interpreta o comentador (Wang bi, §69), ele não se põe em perigo e não ataca. Em outras palavras, “quem está em condições de derrotar o inimigo não inicia nenhum combate com ele” (Han, 2024, p. 29 citando F. Jullien).
Assim um bom líder militar, afirma Han, apenas cuida que o inimigo não encontre caminho de ataque, faz pressão, mas “sem que ela se concretize totalmente”, e em seguida cita aquilo que Jullien vê como formulações paradoxais: “partir em uma expedição sem que haja uma expedição”, ou “arregaçar as mangas sem que haja braços”, ou “lançar-se à luta sem que haja um inimigo”, ou “segurar firmemente sem ter amas” (§ 69)” (Han, p. 30 Jullien analisando as citações de Laozi).
A contradição está acima da questão da vitória ou derrota, Han lembra que Jullien omite a última frase do §69 que é “o enlutado vence” (ai zhe shen, 挨着生) a outra contradição é entre a concepção de luto que Laozi usa o símbolo ai li usado em ritos funerários no sentido “de ficar de luto” (ai li, 哀禮), “lamentar” (bei, 悲), “chorar” (qi, 泣). (HAN, 2024, p. 31)
O vazio budista kong (空) é muito próximo do vazio taoísta xu (哀), ambos são ausentes até se tornarem um não eu, um ninguém, um “sem nome” (idem, p. 31), já tratamos isto noutro post.
Por fim explica que o xu do coração no sentido oriental não tem interpretação funcional, é um sentimento não um cálculo ou um raciocínio, utilizará para isto a figura do espelho vazio, de Zhuang Zhou (diferente radicalmente do espelho animado de Leibniz explica), ele não precede, mas acompanha, citando Zhou:
“o ser humano mais elevado utiliza seu coração como um espelho. Ele não persegue as coisas nem vai em direção a elas: ele as reflete, mas não as segura […] ele não é um senhor (zhu, 生) do conhecimento. Ele se atenta aos mínimos detalhes e, no entanto, é inesgotável e reside além do eu. Ele aceita todas as coisas que o céu oferece, mas ele as tem como se nada tivesse” (Han, 2024, p. 32).
O zen-budismo também gosta da figura do espelho, lembra Han, nele se ilustra a não retenção (outra forma de ausência) do coração vazio (wu xin, 無心), que no ocidente seria um “não possuir”, “não querer” e espiritualmente um fazer um vazio na alma para “ouvir o coração”.
Não alimentamos nossa alma se não fazemos um vazio, o cardeal africano Robert Sarah em seu livro “A força do silêncio” lembra a ruidosa sociedade ocidental e o vazio existencial que ela penetrou, é famosa sua frase: “No silêncio não só nasce a caridade genuína, mas faz o homem ser mais parecido com Deus”, embora por caminhos diferentes é possível aproximar estas espiritualidades.
Byung-Chul Han citando o mestre budista Bi Yän Lu usando a metáfora do espelho: “somente quem reconheceu a nulidade do mundo e de si mesmo também vê nele a eterna beleza” (HAN, 2024, p. 33, citando Bi Yän Lu).
HAN, B.C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli. Petrópolis, RJ, Vozes, 2024.
Ausência oriental além da funcional
Byung-Chul o vazio (xu, 虛) como ausência não permite uma interpretação puramente funcional (Han, 2024, p. 16), citando o livro 15 Zhuang Zhou “nota: “quietude, serenidade, ausencialidade, vazio e inação: eis o equilíbrio entre o céu e a terra” (tian dan ji mo, xu wu wu wei, ci tian di zhi ping, 恬淡寂寞, 虛无无为, 此天地之平). O vazio xu, na expressão xu vu (虛无无), não possui significado funcional” (Han, 2024, p. 26).
Ele dá vários exemplos anotados por Byung-Chul em nota de rodapé, o vazio dos raios de uma roda de carroça, o vazio na argila para tornar-se um vaso, portas e janelas de aposentos, e critica François Julien que interpreta segundo uma análise funcional:
“despojado de todo misticismo (uma vez que não possui orientação metafísica), o célebre retorno ao vazio de Laozi é uma exigência de dissolver os bloqueios aos quais o real está sujeito assim que não encontra mais nenhuma lacuna e fica saturado. Quando tudo está preenchido, não há mais espaço de ação. Quando todo vazio é abolido, destrói-se também a margem que permitia o livre desdobramento dos efeitos” (Han, 2024, p. 27 citando F. Julien).
Lembra da história a “aparência assustadora do aleijado” que não precisa ir a guerra, e recebe “abundante” auxílio do Estado e também a anedota do cozinheiro que trincha o animal com facilidade, em vez de cortar resolutamente passa a faca nas cavidades já presentes nas juntas.
Segundo as duas histórias a interpretação funciona sugere que ela aumenta a eficácia da ação, mas lembra citando também uma árvore nodosa (cheia de nós) que atinge uma idade muito avançada, permite também uma interpretação utilitarista, mas o fato de haverem tantos aleijados e tantas coisas inúteis nas histórias de Zhuang, conduz a própria funcionalidade ao vazio, estes personagens aparecem precisamente contra a utilidade e eficiência (pg. 28).
Lembro-me também da mística ocidental, onde ela ainda existe, que a busca pelo pão, pela saúde e pelo socorro social é muitas vezes motivada também por um vazio existencial, mesmo que tem alguma condição social busca algo em sem “vazio” não funcional, mas espiritual.
Quando alguém pede pão, está pedindo também dignidade, cidadania, respeito e muitas outras além do vazio funcional, o princípio da inclusão não é meramente retórico e não deve ser funcional, deve ser ontológico enquanto Ser-aí, porém além do pré-sente e do au-sente (abwesend em alemão ou absent em inglês), é apenas um sente (wow feel em inglês ou Wow Gefühl em alemão), a palavra wow tanto em ambas línguas é uma expressão para uau!), mas claro, traduções são sempre imperfeitas, o significado permanece acoplado a um língua.
Em português seria melhor um “sendo” no sentido de sentimento, sein em alemão e being em inglês onde o ver to be possui um sentido mais estrito que outras línguas, aqui num sentido de existindo ou subsistindo a vida, misticamente o pão funcional é também um pão místico no cristianismo.
HAN, B.C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli. Petrópolis, RJ, Vozes, 2024.
*escultura de Albert György intitulada “Melancholy” (lago de Genebra) representa “vazio de uma alma” (foto).
O que a filosofia oriental pode contribuir
Tentando entender a etimologia de Ser no oriente, indicado por Han em seu livro Ausência, procurei as palavras Ser/Estar e não encontrei o símbolo que o autor aponta, ao colocar ser, possuir ou ter encontrei o símbolo 有 (you) que “representa uma mão segura um pedaço de carne” (p. 17) … “no entanto, o ser como exigência, apetição, não domina o pensamento chinês” (HAN, 2014, p. 18).
Citando Zhuang Zhou, “o sábio caminha no não ser” (you yu wu you, 慧於無為者, Z. [Zhuan Zhou] Livro Z), que também fala em “caminhar na simplicidade” (you yu dan, 游宇丹) (p. 18).
Também cita o sábio chinês L. Laozi que nega igualmente a “essência” (wu, wu, 非無 ) e através da não essência (wu wu, L. [Laozi], §14), “ou melhor, au-sência”, em alemão Abwesen (essência) onde ab significa negação, lembro que a palavra em inglês absence também é muito próxima do alemão.
Para esta filosofia taoística, o sábio caminha onde não há “porta nem casa” e segundo Han é comparado a uma codorna que não tem ninho, ou seja, não tem uma morada fixa, assim “caminha com um pássaro que não deixa rastros” (p. 19), mas o não caminhar taoísta não é totalmente idêntico à “não habitação” budista (wu zhu, 無竹 ), mas a negatividade os conecta.
O mestre zen japonês Dogen também ensinar o habitar em parte alguma: “um monge zen não deve ter domicílio, como as nuvens, e não deve ter um suporte fixo, como a água” (p. 20).
O caminhante de Laozi não persegue nenhuma direção, não tem nenhuma intenção, ele não vai a lugar algum (p. 20), e tudo isto sugere um não Ser, mas isto não é um niilismo oriental, pois ali também “surgem essencialidades fixas … a alma também insiste” (p. 21), assim a figura que recomenda o caminhar no não ser ao “chão do céu”, onde buscava conselhos, Wu Ming (無名 , literalmente, “o sem nome”, Z. Livro 7).
Esta interpretação inédita, para mim, de uma fusão do budismo com o taoísmo parece no não ser, sugerir uma transcendência como a divina do ocidente não secularizado, “aquele que é” e que de fato não pode ter nome, porque é assim pura linguagem no silêncio e no não ser.
Assim retorno as análises anteriores de uma filosofia ocidental presam ao logicismo e de uma lógica binária onde o Ser é e o não-Ser não é, e a filosofia oriental caminha numa direção do não-Ser, assim ausência pode também indicar uma forma de ser transcendendo ao Ser-é.
Vejo certa fusão possível e um novo horizonte num círculo hermenêutico nesta “ausência” oriental: ser, não ser e não-ser transcendente (ausência ou vazio).
HAN, B.-C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli, Petrópolis, RJ: Vozes, 2024.
DOGEN, Eihei, Shobogenzo Zuimonki, Unterweisungen zum wahren Buddha-Weg. Heidelberg: Kristkeitz Werner, 1997. (citado por B.-C. Han).
ZHOU, Zhuang. Das whare Buch Das wahre Buch vom südlichen Blütenland, Düsserldof: diederichs, 1969. (citado por B.-C. Han).
O ente, o ser e transcender-Ser
O ser não é o que se manifesta direta e imediatamente, ele se manifesta com um ente, porem não é um ente, embora se aproprie dele, assim o Ser tem algo que transcende o ente.
Assim escreve Heidegger: “o ser não somente não pode ser definido, como também nunca se deixa determinar em seu sentido por outra coisa nem como outra coisa. O ser só pode ser determinado a partir do seu sentido como ele mesmo” (Heidegger, 2005), assim ele é autonomia, independente e indefinível.
A essência, na filosofia, refere-se à natureza fundamental e imutável de um objeto, ser ou conceito, é aquilo que define a identidade e as características essenciais de algo.
Foi Etienne Gilson em seu livro O ser e essência que esclarece o debate filosófico desta questão, fazendo uma leitura de O ser e o nada (Jean-Paul Sartre) e do primeiro capítulo da Wisseschaft der Logik (A ciência da lógica, de Hegel) admitindo que esta palavra “ser” em certa tradição idealista havia tentado bani-la do vocabulário filosófico, ao menos no “Ocidente”, em substituição ao ser entra então uma “lógica” científica e o dilema do logicismo.
No Ser e o nada (1943) a filosofia de Sartre se depara com uma negação do Ser que mergulha num nada, ou seja, sou eu mesmo e nunca um Outro, parecia naquele momento da história (ele também escreve sobre A Idade da Razão), que o Outro seria meu inferno e não parte do Ser.
Em um livro Ausência Byung-Chul Han sai de seus ensaios e começa a esboçar uma filosofia do “Oriente” ele vai trabalhar o que considera ofuscado na cultura ocidental, escreve citando Elias Canetti, “que talvez não faça mal acreditar que de fato há um país ‘onde quem diz ´eu´ imediatamente afunda na terra” (Han, 2024, p. 9), e é assim que começa a esboçar a ausência.
Han começa nesta obra já uma nova filosofia além do ser e da essência, “essência é substância. Ela subsiste. É o imutável que resiste à mudança persistindo em si como o mesmo e, por isso, se distingue do outro” (p. 12), denuncia seu caráter bélico: “somente algo que está inteiramente resoluto de si, que mantém a si mesmo com firmeza e habita em si permanentemente, isto é, que tem a interioridade da essência, também pode travar um conflito e um combate com o outro” (p. 13).
Persegue sua visão linguística da filosofia e vai reler Leibniz (citamos no post anterior) em sua Monadologia: “Leibniz leva ao limite, de maneira consequente, a ideia de essência, ou seja, de substância. A “mônada” representa a consequente exacerbação e acabamento da essência” (p. 14), lembro que o monismo de Leibniz é oposto ao dualismo objeto x sujeito, é o uno essencial.
Descreve a alma leibniziana como um “mirror vivant” (espelho vivo) e “é lugar de desejo. O universo é apenas um objeto de sua ‘apetição’. A mônada o percebe porque tem apetite dele.” (p. 15), ou seja, sem desejo não há nada.
Neste sentido começa a introduzir sua crítica a Heidegger (é bom lembrar que seu professor Peter Sloterdijk surge no cenário filosófico criticando Carta ao Humanismo de Heidegger, 1946), mas o faz de maneira mais profunda: “apesar do esforço para deixar para trás o pensamento metafísico, apesar de estar sempre buscando se aproximar do pensamento do Extremo Oriente, Heidegger também permaneceu um filósofo da essência da casa e da habitação” (Han, 2024, p. 16).
Esclarece que está na afirmação de Heidegger: “o amor também consiste em ajudar o outro a aceder a sua “essência”: institua o amor!”, em seguida reivindica Agostinho escrevendo: “talvez a interpretação mais profunda da questão ´o que é o amor resida na sentença … ‘amo volo ut sis”, eu amo, isto é, eu quero que o amado seja o que ele é” e esclarece que ele convoca a essência (Han, 2024, p. 17), mas para Agostinho a essência e transcendência é Deus.
HAN, Byung-Chul. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli, Petrópolis, RJ: Vozes, 2024.
O ser: ontologias e epistemes medievais
Agostinho de Hipona, após ter abandonado o maniqueísmo, dualismo entre o bem e o mal, elabora uma ontologia pouco conhecida e citada, mesmo por teólogos, trata-se de uma ontologia trinitária e uma gnose (ou episteme) complexa da verdade.
Ao fazer a leitura de uma passagem do Genésis (Gn 1,26), que é o homem feito a imagem de Deus (imago Dei), ele pondera que a expressão correta é: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança, façamos e nossa foram ditas no plural, e não podem ser compreendidas a não ser como relação” (Agostinho, De trinitate, VII,6,1), onde o plural “façamos” e “nossa” estão lá invocando a trindade.
Esta visão antropológica não poderia passar despercebida, porém a visão filosófica de ser e ente ficam submersas e subentendidas no texto, o homem enquanto ser criado e ente, é ao mesmo tempo Imago Dei e natureza perecível, porém a imagem significa trinitária, e, por outro lado perecível significa finito enquanto ente e não enquanto Ser.
Agostinho não usa categoria ontológicas, mas onto-teológicas, assim o homem tem alma imortal e corpo perecível, Agostinho para responder a este aparente paradoxo criacionista, usa o conhecimento neoplatônico, que o ser humano é composto por uma porção corpórea/ material e uma porção espiritual, que diferente do dualismo que desmerece o corpo.
Para Agostinho a alma conhece e vive no corpo, assim “logo, tal como a mente recolhe o conhecimento das coisas corpóreas por meio dos sentidos corporais, é por si mesma que [recolhe o conhecimento] das incorpóreas. Portanto, já que ela própria é incorpórea é por si mesma que ele se conhece” (De Trinitate, XI,3,3 ), e assim formula sua episteme inseparável da alma e vista como “trinitária”.
Dito de outra forma, é subjacente ao autocentramento da mente, o se conhecer e se a amar, há o concurso da memória, da inteligência e da vontade, isto será mais desenvolvido em Porfírio e depois em Boécio (480-524 dC).
Discípulo de Plotino, Porfírio (c. 234–305 d.C.) foi um filósofo neoplatônico e seu trabalho sistematizou e difundiu o pensamento neoplatônico, suas contribuições abrangem diversas áreas, incluindo lógica, metafísica, ética e teologia, porém é famosa sua arvore do conhecimento, chamada Árvore de Porfírio (imagem acima).
Boécio seu discípulo e tradutor avança na contribuição que Porfírio pretendia deixar de unificar a filosofia platônica e aristotélica, a chamada henologia (a doutrina da unidade divina), sua obra Consolações Filosóficas traz parte do questionamento sobre conceitos particulares e universais, que será tema polêmico entre os nominalistas e realistas da baixa idade média.
Período caracterizado pelo feudalismo e pelas rotas comerciais preparou o renascimento.
SANTO AGOSTINHO, De Trinitate / Trindade, Covilhã, PT: Paulinas Editora, Prior Velho, 2007 (pdf IX-XIII)
A dor, o Ser e a Páscoa
Este é um tempo que tentou abolir a dor e exaltar o prazer e a euforia a qualquer preço, porém é tempo de depressão, pânico, intolerâncias e sem vida empática, escreveu Byung-Chul Han: “Justo na sociedade paliativa hostil à dor, multiplicam-se dores silenciosas, apinhadas nas margens, que persistem na ausência de sentido, fala e imagem” (Han, 2021, p. 57).
Nada mais paradoxal neste tempo que mostra que a dor é parte essencial da existência, quem pode aceitar isto senão aqueles que ultrapassaram o desejo de imortalidade e perseguem o desejo da eternidade, Han que tem tendência budista e Hannah Arendt que tem origem judaica escreveram isto.
Walter Benjamin que tinha raízes fortes raízes na Escola de Frankfurt escreveu: “A dor apenas, entre todos os sentimentos corporais, é, para o ser humano, um fluxo navegável, com águas que nunca se esgotam e que o conduz ao mar”.
A ausência de entendimento deste sentimento próprio do Ser, levam a dificuldades de lidar com a frustração, as perdas e as reviravoltas da existência, torna-nos mais fracos e menos resilientes a qualquer contradição, muitas vezes incapazes de lidar com elas.
Entender a dor também nos ajuda a compreender a finitude humana, a morte não como um fim em si mesma, que torna a vida limitada e pequena, mas acreditar que existe algo além dela, que há uma “passagem” para a eternidade, e que sem ela a vida parece efêmera.
Vivemos do consumo, do “disponível”, onde “o mundo que consiste do disponível só pode ser consumido. O mundo, porém, é mais do que a soma do disponível. O mundo disponível perde a aura, sim, o aroma. Ele não permite nenhum se demorar” (Han, 2021, p. 94).
É também um mundo sem a “alteridade”, assim descrita por Han: “Ela o protege de degradar- se em um objeto de consumo. Sem a distância originária, o outro não é nenhum tu. Ele é coisificado no Isso. Ele Não é convocado em sua outridade, mas sim apropriado” (idem, p. 94), aqui Han está lembrando de um texto de outro pensador e educador que é Martin Buber.
Somente pode entender a dor, e a dor extrema como aquela morte de cruz de Jesus aqueles que já passaram da finitude do mundo, do consumo imediato e da vida passageira, para um desejo verdade de eternidade, já aqui, mas como enfatizada Han, logo depois volta ao mundo circundante, que é realidade, porém não anula o desejo e o alcance do além do Ser finito.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021.
Sobre o paliativo e a dor
Byung-Chul Han escreveu “Sociedade Paliativa: a dor hoje”, em plena pandemia (o livro original é de 2020), o que era praticamente um desafio a um mundo assustado com milhares de mortes, isolamento e uma corrida a medicamentos sem os devidos testes de contraindicações, mas o livro é sobre a modernidade onde “a dor é vista como um sinal de fraqueza” (Han, 2021, p. 13).
Entre várias análises os pensamentos de E. Jünger (sobre a dor) e M. Heidegger (Acerca de Ernst Jünger), escreveu o primeiro “Me diga a sua relação com a dor e eu te direi quem és!” em replica “pretensamente irônica de Heidegger”, Han cita Heidegger que “observa: “Me diga a sua relação como ser, caso você sequer tenha alguma ideia a esse respeito, e te direi como você se se você se ´ocupará´ com a ´dor´ou se pode refletir sobre ela” (Han, 2021, p. 84-85).
Heidegger tem em mente, pontua Han, “antes, uma ontologia da dor” … “ele quer penetrar, por meio do ser, na “essência da dor” (idem, p. 85) … “Nós, porém, somos sem dor, não nos apropriamos [vereigen] a essência da dor” (citação de Han das Conferências de Bremen e Freiburg).
Cita mais a diante: “o pensamento é a dor, a paixão pelo segredo que ´se furta oscila oscila na retirada´”(citando outro texto de Heidegger A caminho da linguagem, p. 87), ela desvela o ser, ela é “santuário do ser”, ela chega até a vida” e este “santuário do nada, daquilo, a saber, que em todos os sentidos nunca é meramente um ente, mas que ao mesmo tempo, direciona, até mesmo como um segredo” (p. 89, citando novo texto Conferências e preleções).
E conclui, por raciocínio filosófico, que “a morte significa que o ser humana está em relação com o indisponível, com o inteiramente outro que não vem dele” (idem, p. 89), poderia ser muito bem também um desenvolvimento teológico, aquele que Heidegger, Arendt e Han diferenciam quando falam da imortalidade humano e da eternidade como o puro Ser.
Em “Vita Contemplativa” Han refletindo sobre Hannah Arendt escreve: “contudo, nenhum ser humano consegue, prossegue Arendt, demorar-se na experiência do eterno. Ele precisa retornar ao mundo circundante. Tão logo, porém, um pensador abandona a experiência do eterno e começa a escrever, ele se entrega a vita activa, cuja finalidade última é a imortalidade” (Han, 2023, p. 145).
Arendt se admira com o Sócrates que não escreve, disse Han, com isto renunciou a imortalidade, pode-se acrescentar que Jesus também não escreveu, e no seu caso sofre a “paixão” com dores sobre requintes de tortura pública, até sua morte pública ao lado de dois ladrões, com isto “viveu o inteiramente outro” como pensou Han, e pode experimentar a passagem (Páscoa) da vida para a morte e da morte para a vida, eis a razão também para Ele.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa. Petrópolis, Vozes, 2023.
HAN, B.C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis, Vozes, 2021.
Além do ser-no-mundo, sua superação
Byung-Chul Han interpreta que Heidegger vai realizar a sua virada na passagem do “agir para o ser” e é daí que surge a sua obra maior: Ser e Tempo (primeira publicação de 1927 nos Anais de Filosofia e Pesquisa Fenomenológica editados por Edmund Husserl).
Escreve Han: “em oposição ao medo, que meramente se relaciona com algo no mundo, o “de que” da angústia é o mundo como tal: “aquilo de que a angústia se angustia é o próprio ser-no-mundo. O ente dentro do mundo […] afunda na angústia. O ´mundo´ não consegue fornecer mais nada, tampouco o ser-aí-com os outros” (Heidegger, 2005, p. 179).
E Han acrescenta que esse mundo que escapa da angústia não é o mundo geral, mas “o mundo familiar, cotidiano, no qual vivemos sem questionar” (Han, 2023, p. 76), e acrescentar o “impessoal”.
O impessoal como “ninguém” retira do “ser-aí o fardo da decisão e da responsabilidade ao livrá-lo da ação em sentido restrito. O impessoal deixa à disposição do ser-aí um mundo pré-parado no qual tudo já foi interpretado e decidido”, não sei se no alemão tem esta conotação, mas no português este “parar”, esta pausa na vida da ação é aquilo que a modernidade busca.
É este impessoal, explica Han, que repele toda perspectiva autônoma do mundo, e que Heidegger considerava a “inautenticidade” ou “decadência” e que impede a realização do Ser.
Em contraste com a visão idealista, Han descreve que “o tédio não é, para Heidegger, nenhum pássaro onírico que choca o ovo da experiência. Ele é interpretado, igualmente, como um apelo á ação” (p. 78), o apelo que hoje é tão desastradamente impelido pelas mídias sociais.
O que Heidegger reivindica através da recusa deste apelo, é “justamente a possibilidade da sua ação [do ser-aí] e inação” (Han, p. 78 citando Heidegger).
Heidegger e Han chegam até mesmo a comparar isto a uma “morte” (claro não exatamente no sentido físico, mas da afirmação do eu), e “essa morte me liberta para o outro. Em vista da morte, desperta uma serenidade, uma amabilidade com o mundo” (Han, 79 citando sua obra Morte e Alteridade).
É esta abertura que permite superar medos, incertezas, frustrações, inseguranças e tantas angustias cotidianas, delas renascem um novo ânimo, criatividade e alegria para seguir em frente, para superar barreiras e entender a possibilidade um novo horizonte.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis, Vozes, 2005.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa ou sobre a inatividade. Petrópolis, Vozes, 2023.
Escutar aquela voz “interior”
Qual a voz do mundo que escutamos? ou temos capacidade de desenvolver e saber escutar uma voz interior, tanto Hannah Arendt quanto Byung-Chul desenvolvem isto claramente, porém é preciso recuperar as raízes alemães, por isso Byung-Chul em suas traduções deixa de propósito os termos dispostos [gestimmtes] e ouvir e se colocar de acordo com a voz [stimme].
Assim ele explica como o ser-no-mundo originário articula o correntes e o estar disposto, “não podemos dispor da disposição, antes somos lançados nela, não a atividade”, mas o “corresponder” significa àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser” (p. 67), assim ouvir e escutar atentamente precede a ação e se dá à disposição.
Assim o “corresponder ouve a voz do chamado […] é sempre necessário … não apenas por acaso e às vezes, um disposto [gestimmtes]”, onde “o falar do corresponder recebe sua precisão” … “antes, ela concebe ao pensado uma De-finição [Be-Stimmheit]” (Han, 2023, p. 68), que vem dos o texto de Heidegger “O que é isto – A filosofia”
Explica Han: “pensar já é sempre disposto; ou seja, exposto a uma disposição que o fundamenta”, e citando novamente o texto de Heidegger: “todo pensar essencial exige que seus pensamentos e proposições sejam extraídos renovadamente, como minério, da disposição fundamental” (Heidegger, citado na p. 69).
Este pensar é no seu amigo, o que os gregos chamavam de pathos e Heidegger recupera, mas lembra na raízes latina o paschein*: “sofrer, aguentar, suportar, entregar, deixar-se carregar, deixar-se de-finir por [algo]” (p. 69), e acrescento aqui, [ou alguém] se pensar novamente na diferença que Arendt e Han fazem entre imortalidade e eternidade, grifo *nosso do hebraico (פַּסחָא), lembrando nosso post anterior sobre a “paixão civilizatória”.
Assim, pode-se reduzir (simplificar é sempre complicado), que podemos ouvir uma voz interior da consciência, mas Heideggeer e Han lembram que a disposição antecede a isto, quer dizer, muitas vezes estamos “escutando” porque temos funções auditivas, mas não temos a disposição e a atenção para de fato ouvir o que a consciência manda.
É claro que ter consciência é muito mais que ter convicções, muitas vezes nossas certezas e convicções atrapalham ouvir esta voz, porque somos humanos e erramos, queremos o eterno, mas nos contentamos como que é passageiro, ouvir exige “meditar”.
Pensar numa verdadeira “pachein” pode ajudar nos momentos de dificuldades, de contrariedades, enfim tudo o que de certa forma é normal na vida e devemos passar, enfim a paixão boa ou má é passagem para um outro lado.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa Ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ, 2023.