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Se a noite da humanidade vier
O que fazer se a crise civilizatória chegar aos limites humanos e continuar a se humanizar? abordamos em posts anterior a tomada de consciência que Edgar Morin trás no capítulo 4 do livro Terra-Pátria sobre as “nossas finalidades terrestres”
É nele que o autor trabalha também o aparente paradoxo: conversar/revolucionar, trata- se de entender a mudança sem abandonar os principais princípios humanitários: “A tomada de consciência de nossas raízes terrestres e do nosso destino planetário é uma condição necessária para realizar a humanidade e civilizar a Terra” (Morin, 2003, p. 99) pois o adjetivo “revolucionário” tornou-se reacionário e muito manchado de barbárie” (idem).
O autor acrescenta mais a frente: “Aqui aparece um outro problema: há um poder das ideias sobre a realidade, o que suporia uma realidade e uma força das ideias? Conforme já tivemos ocasião de mostrar, as ideias e os mitos adquirem realidade, impõem-se nos espíritos e podem inclusive impor-se na realidade histórica, violentá-la, desviá-la” (Morin, 2003, p. 126) e isto é muito relevante no contexto atual.
Isto é complementado por Morin ao salientar que “conservar/revolucionar: é o paradoxo progredir/resistir”, onde o resistir é “estar na defensiva em todas as frentes contra os retornos e manifestações da grande barbárie, escrito antes do novo milênio, isto é muito atual em face a possibilidade de guerra.
Escreveu Morin naquela época, o que hoje é a realização de uma profecia: “A primavera dos povos de 1989-1990 sofreu um regelo. Todos os seus germes de liberdade estão em via de destruição. A grande barbárie faz um grande retorno” (Morin, 2003, p.100).
Resistir agora então significa não abandonar valores humanitários, também na atualidade Morin falou sobre “resistência do espírito” que é conservar em nós os mais caros valores da vida, do humanismo e da crença em valores verdadeiramente “divinos”.
Não acreditar que fomos feitos para a guerra, para a barbárie e temos um destino cruel, embora o panorama mundial seja sombrio, é preciso resistir com a armadura da paz.
MORIN, Edgar & Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria. Trad. Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
A crise do pensamento simplista e o complexo
A epistemologia da complexidade é um ramo da epistemologia que estuda os sistemas complexos e fenômenos emergentes associados, em alguns ambientes como na mecânica e na física construíram uma tendência a aprofundar o que até então eram apenas chamados de sistemas dinâmicos, e agora sistemas não lineares ou caóticos.
O processo de industrialização serviu de grande suporte para um desenvolvimento até então impensáveis das ciências naturais, depois a geração de tecnologias: o vapor e a combustão, depois a eletricidade, e tudo parecia mover-se numa engrenagem perfeita.
Tudo se caracterizou até um certo momento em um movimento que Edgar Morin chamou de disjuntor-e-redutor, tanto as ciências como nas artes a ideia de reduzir o que é complexo ao simples (por exemplo, buscar na menor parte da física até então, os átomos) uma realidade que aos poucos mostrou-se complexas (sub-partículas em dimensões cada vez mais microscópicas até chegar ao universo quântico).
As particularidades da física subatômica introduziram incertezas e mostrou os limites do reducionismo que estava levando a uma visão distorcida da realidade, mostrou suas incertezas e ingenuidades, a pretensão de captar uma realidade objetiva que poderia ser independente do observador, quanto o próprio observador faz parte do fenômeno.
Assim esta lógica redutora-reducionista da física ampliou-se para o universo social e pessoal, e mecanismos aparentemente simples poderiam resolver problemas que são complexos, e toda a problematização decorrente desta realidade não foi observada.
O pensamento complexo não se limita ao mundo acadêmico, ele transborda e está presente em diversos setores da sociedade, assim como o simplismo de raciocínios que não contemplam a complexidade e a diversidade da vida social.
Também no mundo espiritual (ou subjetivo como poderia pensar quando vemos os objetos foram da realidade do sujeito) este equívoco nos conduz a uma porta larga, onde os valores básicos do humanismo podem ser ignorados e a vida fragmentada.
Assim a porta por onde passam lógica simplistas e triviais conduzem a grandes e problemáticos enganos, enquanto a complexidade de um caminho socialmente justo e verdadeiro não se reduz às formas ideológicas simplistas e pouco humanas.
Passar pela porta estreita nunca será um caminho fácil, porém o único que pode conduzir a humanidade a um futuro sustentável e realmente humano, de paz, de fraternidade e de valores sociais de respeito a dignidade humana.
Além da fraternidade generosa
O livro de Edgar Morin no capítulo 3, explora as “fontes biológicas da fraternidade: a ajuda mútua”, aborda o equívoco (de interpretação) da darwinismo tornado social ,“A origem das espécies por meio da seleção natural” (a obra é de 1859-1860), além de outros autores seu livro Método 2 “A vida da vida”, onde aponta que há uma solução da problemática entre a cooperação e conflito, para entender inclusive as sociedades.
Assim responde a esta “complexa relação”, presente em todas sociedades, há uma relação “complementar e antagônica (dialógica) entre solidariedade e conflitualidade.
Abre o quarto capítulo apoiando-se na filosofia de Heráclio (540-470 a.C.) “Concórdia e discórdia: pai e mãe e todas as coisas” o autor se vale da ideia do próprio universo: sua formação, desenvolvimento, dispersão e morte, mais ainda apoiado nas descobertas do mega telescópio James Webb (o livro é mais antigo) e hoje com a ampliação da cosmovisão se confirma.
O quinto capítulo finalmente chegamos a uma concepção mais complexa de fraternidade, para Morin as três noções: paternidade, maternidade e fraternidade, argumenta que, diferente do que a sociedade patriarcal demonstrou, o conceito de pai é tardio na história da humanidade.
Lembra que a ideia de macho (pai) e fêmea (mãe) não é um conceito universal para toda a natureza, e com isto a relação de irmandade (conceito mais horizontal de fraternidade) é o que deve prevalecer, mas lembra que os conceitos de nascimento e dependência, são muito importantes para o mutualismo e cooperação, estes sim presentes em todas formas de vida.
Para desenvolver o sexto capítulo recorre a experiências pessoais, e lembra que as esferas da fraternidade no interior de uma família, estão na origem das fraternidades externas que encontramos nas relações sociais no decorrer da vida.
As experiências do autor vão se tornar mais explícitas no capítulo 7 “minhas fraternidades” que são vivências do autor e um capítulo breve e inspirador que esclarece o posicionamento do autor sobre um tema tão importante num contexto dramático civilizatório que vivemos.
O autor assim apresentação o que chama no capítulo 10, de um “Oásis de Fraternidade”, onde a sociedade moderna, da globalização, contra a redução da vida humana a uma dimensão só “tecnoeconômica” que reduz o humano a uma dimensão particular mais material da vida.
Muito antes da crise atual, que Morin parecia antecipar, vai escrever nos capítulos finais “Mudar de via?” onde nossos problemas sociais ambientais são resposta ao Sapiens demens (ligados apenas a tecnologia, ao transumanismo e agora a inteligência artificial), somente uma mudança radical de via podemos recuperar a serenidade, a paz e uma volta ao processo civilizatório.
MORIN, E. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo, trad. Edgar de Assis Carvalho, São Paulo SP: ed. Palas Athena, 2019.
A guerra escalou
No final de semana Israel revidou os ataques do dia 1º. de outubro quando o Irã lançou cerca de 200 mísseis contra Israel, pela morte do líder do grupo extremista Hezbollah Hassan Nasrallah, os alvos aparentemente foram todas bases militares e o Irã lamentou a morte de 4 militares.
Os alvos também não são claros, porém há relatos das cidades na Síria de Homs, Damasco (capital) e Daraa, no Irã as cidades de Karaj (arredores de Teerã), as cidades de Mashhad, Isfahã e Shiraz (gráfico), até a noite de ontem (27/10) poucos revides do Irã aconteceram.
Porém o envolvimento direto de Irã e Israel, o clima na região é explosivo e já escalou.
Também na Rússia, soldados norte-coreanos foram enviados para reforçar a guerra na Ucrânia, além de treinamento que será recebido, também muitos, segundo fontes da Ucrânia, serão enviados para a região invadida de Kursh, onde a Ucrânia mantém o domínio, este envolvimento também mexeu com a Coréia do Sul, com o qual tem os maiores litígios.
O envolvimento também se projetou na reunião do Brics feita em Kazan, a formação de um bloco econômico é uma das formas de enfrentar as diversas formas de bloqueios feitas aos países que estão em guerra ou sob ditaduras militares, não acaso, estão envolvidos em guerras.
Ainda há esperança de paz, sempre para aqueles que não desejam soluções autoritárias e bélicas, ainda que os problemas envolvidos sejam graves, porém as guerras não os resolvem e ainda na maioria das vezes pioram as possíveis saídas sustentáveis.
Apontamos no último post, fazendo uma releitura de Edgar Morin, salientamos o seu capítulo Conservar/Revolucionar do seu livro Terra-Pátria, onde salienta que não podemos mudar para um novo horizonte futuro abandonando as conquistas humanísticas já conquistadas, direitos humanos, liberdades democráticas e tolerância cultural-religiosas de todas etnias.
Sempre esperamos uma reviravolta, ainda neste quadro grave, é preciso uma resistência do espírito, ou seja, onde os valores humanos fundamentais estejam assegurados.
Conservar/revolucionar e resistir
O que fazer se a crise civilizatória chegar aos limites humanos e continuar a se humanizar ?.
A resposta de Edgar Morin está no capítulo 4 do livro Terra-Pátria ao estabelecer “Nossas finalidades terrestres”, onde estabelece: “A tomada de consciência de nossas raízes terrestres e de nosso destino planetário é uma condição necessária para realizar a humanidade e civilizar a Terra” (Morin, 2003, p. 99), e salienta que a primeira é conservadora e negligencia “deliberadamente aqui o adjetivo “revolucionária”, que se tornou reacionário e muito manchado de barbárie” (idem) e basta ver as atrocidades do escalonamento das guerras atuais.
Conservadora porque “trata-se de preservar, de salvaguardar não apenas as diversidades culturais e naturais degradadas por inexoráveis processos de uniformização e destruição, não apenas as conquistas civilizacionais ameaçadas pelos retornos e as manifestações de barbárie” (idem p. 99) não podemos regredir nos marcos civilizatórios que já alcançamos, mais que isto, é preciso evoluir.
É um paradoxo, mas justificável: “A conservação tem necessidade da revolução que asseguraria a busca da hominização” (Morin, 2003, p. 100) onde o paradoxo “aparentemente contraditório, conservar/revolucionar: é o paradoxo progredir/resistir” (idem), onde o resistir é “estar na defensiva em todas as frentes contra os retornos e manifestações da grande barbárie, escrito antes do novo milênio, isto é muito atual em face a possibilidade de guerra.
Resistir, para o autor, é se antepor a duas barbáries crescentes: a “crueldade odiosa” que se exprime “no assassinato, na tortura, nos furores individuais e coletivos” e a “crueldade anônima vem da barbárie tecno-burocrática” de estados totalitários assumidos ou presumidos.
Assim, o autor que fala da “hiper-especialização”, “anonimização, da abstração, da mercadorização que conduzem juntas à perda não apenas do global” vê a necessidade imperiosa de resistir a esta mentalidade que conduz necessariamente a barbárie e ao processo de degradação.
Assim a busca “da hominização deve ser concebida como o desenvolvimento de nossas potencialidades psíquicas, espirituais, éticas, culturais e sociais” (p. 101) é parte deste paradoxo resistir/revolucionar, assim o desenvolvimento deve ser concebido de maneira antropológica, isto é, “romper com a concepção do progresso como certeza histórica para fazer dele uma possibilidade incerta …” (p. 102).
E acrescenta ele deve “compreender que nenhum desenvolvimento é adquirido para sempre: como todas as coisas vivas e humanas, ele sofre o ataque do princípio de degradação e precisa incessantemente ser regenerado” (p. 102) e aponta a ideia falsa de desenvolvimento, pois “: o subdesenvolvimento dos desenvolvidos aumenta precisamente com seu desenvolvimento tecno-econômico” (p. 104), a guerra e os conflitos partes justamente dos “desenvolvidos”.
Assim a noção de subdesenvolvimento: “por mais bárbara que seja, estabelece um vínculo antropológico entre os ditos desenvolvidos e os ditos subdesenvolvidos; ela incita a uma ajuda técnica e médica útil – abrir poços, desenvolver fontes de energia, lutar contra as endemias e as carências nutricionais -, embora se efetue em condições de exploração económica, de degradação natural e de urbanização miserável que ocasionam novos males” (p. 105).
Assim é preciso “suportar” as diferenças e até estabelecer vantagens sobre elas, não mais ignorar ou demonizar culturas diferentes, estabelecer ajuda e acordos para o desenvolvimento global e o processo de ampla humanização, que o autor chama de “hominização”.
MORIN, Edgar & Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria. Trad. Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
Uma nova revolução copernicana
O centro de nosso universo não é mais o sol, no centro de nossa galáxia o que existe é um buraco negro, apesar do nome parecer ser negativo, segundo as novas teorias depois do super telescópio James Webb ele é apenas uma nova realidade além do pensamento físico atual, chamado Sagitário A* tem um diâmetro de 35 milhões de quilômetros e é o objeto mais massivo da galáxia (primeira foto feita em 2017 pelo telescópio Event Horizon, Feryal Ozel).
Edgar Morin aponta esta e outras mudanças científicas de nosso século mais “formidáveis” que as ideias aparentemente revolucionárias de nosso tempo que pouco ou nada mudaram na concepção social, humana e de mundo que ainda tempo.]
Escreveu Morin: “Tivemos que abandonar um universo ordenado, perfeito, eterno por um universo em devir dispersivo, nascido na irradiação, no qual atuam dialogicamente, isto é, de maneira ao mesmo tempo complementar, concorrente e antagónica, ordem, desordem e organização” (Morin, 2003, p. 62), e ainda: “estamos num universo que não é nem banal, nem normal, nem evidente” (p. 63) e deveríamos pensar assim também da vida humana e social.
Assim nossa minúscula casa num universo quase-infinito é “… é um pequeno cesto de lixo cósmico transformado de maneira improvável não apenas num astro muito complexo, mas também num jardim, nosso jardim” (p. 64) e assim deveríamos pensar e não em conflitos.
“Nossa árvore genealógica terrestre e nossa carteira de identidade terrestre podem hoje finalmente ser conhecidas” (p. 64) e aponta para isto a evidência de nossos problemas.
A primeira evidência que aponta é o desregramento econômico: “Não poderíamos considerar a economia como uma entidade fechada. Trata-se de uma instância autónoma dependente de outras instâncias (sociológica, cultural, política), também elas autónomas/dependentes umas em relação às outras” (p. 65), assim as guerras atuais não são senão a disputa de mercados onde poderiam reconhecer a interdependência e autonomia de cada economia.
A segunda e a crise ecológica: aponta o relatório Meadows encomendado pelo Clube de Roma em 1972, mas também: “as grandes catástrofes locais com amplas consequências: Seveso, Bhopal, Three Mile Island, Chernobyl, secagem do mar de Arai, poluição do lago Baikal, cidades no limite da asfixia (México, Atenas)” e agora mais recentemente Fukushima e as catástrofes naturais.
Apontava ainda a crise de desenvolvimento e a crise universal do futuro, aquela que estamos mergulhados hoje, com ódios e guerras mundiais escalando onde o amor e a fraternidade se encontram sufocados.
“Assim, por toda parte, o desenvolvimento da tríade ciência/ técnica/ indústria perde seu caráter providencial. A ideia de modernidade permanece ainda conquistadora e cheia de promessas onde quer que se sonhe com bem-estar e meios técnicos libertadores” (p. 76).
Sem um retorno ao bom senso, à cooperação mundial e a fraternidade a crise será profunda.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003
O cosmos, a noosfera e a perdição
No capítulo sobre “A perda da salvação, a aventura desconhecida” do livro Terra-Pátria de Edgar Morin ele lança um olhar profundo sobre a nossa falta de cosmovisão e a perdição em nossas microscópicas preocupações que não olham um mundo e uma realidade maior a nossa volta.
Diz no início: “Se houvesse navegadores do espaço, sua rota no aglomerado de Virgem ignoraria a muito marginal Via Láctea e passaria longe do pequeno sol periférico que tem em sua órbita o minúsculo pla- neta Terra. Como Robinson em sua ilha, pusemo-nos a enviar sinais em direção às estrelas, até agora em vão, e talvez em vão para sempre. Estamos perdidos no cosmos” (Morin, 2003, p. 163).
Acrescenta: “Este mundo que é o nosso é muito frágil na base, quase inconsistente: nasceu de um acidente, talvez de uma desintegração do infinito, a menos que consideremos que surgiu do nada” (idem, p. 163).
Mas o homem na modernidade agigantou seu ego, quer ele próprio ser uma espécie de “Homo Deus” usando a metáfora de Yuval Harari, cujo subtítulo é “uma breve história do amanhã”, também pessimista como Morin, porém o autor de Terra-Pátria espera que o homem encontre um novo futuro mais promissor.
Morin ainda que reconheça que “A vida, a consciência, o amor, a verdade, a beleza são eféme- ros … Estamos na itinerância. Não marchamos por um caminho demarcado, não somos mais teleguiados pela lei do progresso, não temos nem messias nem salvação, caminhamos na noite e na neblina” (pgs. 164-165), acrescenta: “Estamos na aventura desconhecida. A insatisfação que faz recomeçar a itinerância jamais poderia ser saciada por esta. Devemos assumir a incerteza e a inquietude, devemos assumir o dasein, o fato de estar aí sem saber por que” (p. 166) lembrando esta categoria cara a Heidegger, que elaborou o “esquecimento do ser”.
Como recomeçar a itinerância, poderíamos perguntar, o autor dá uma “Boa-má nova” (lembrando a boa nova significado da palavra Evangelho): “Eis a má nova: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos. Se há um evangelho, isto é, uma boa nova, esta deve partir da má: estamos perdidos, mas temos um teto, uma casa, uma pátria: o pequeno planeta onde a vida criou seu jardim, onde os humanos formaram seu lar, onde doravante a humanidade deve reconhecer sua casa comum (pg. 166), e a resposta mesmo agnóstica, não é diferente da evangélica.
E então lembra deste apelo: “O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de “boa vontade” que veiculam essa mensagem” (Morin, 2003, p. 167).
E aqueles que conhecem esta mensagem, esta esperança não podemos permanecer calados, indiferentes ou o que é muito pior, aderir a desesperança, devem lembrar daquela mensagem evangélica: “A quem muito foi dado, muito será pedido” (Lucas 12, 39-48) sob a pena da omissão, da distorção ou do abandono da mensagem fundamental da salvação terrena e celeste.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
A identidade e a família humana
Temos identidades e culturas regionais, ligados as nações, o fato que existem nacionalidades não deveria ser contrário a existência e visão de uma família humana, não apenas pela nossa identidade genética e animal, mas principalmente pela nossa vida e relações em comum.
Edgar Morin, em seu livro Terra-Pátria (Editora Sulina, 2003) traça as origens de uma visão do homem ligado a natureza (e por consequência ao Cosmos), que irá se desenrolar nas visões de Bacon, Descartes, Buffon e Marx (Morin, 2003, p. 54) que fizeram do homem “um ser quase sobrenatural que progressivamente assume o lugar vazio de Deus” (idem), porém isto disparou uma visão arrogante e autoritária perante o Cosmos e o Outro.
Como isto regredimos em nossa visão planetária: “A identidade do homem, ou seja, sua unidade/diversidade complexa, foi ocultada e traída, no cerne mesmo da era planetária, pelo desenvolvimento especializado/compartimentado das ciências” (pg. 61), uma visão xenófoba de nacionalismo e de identidade agora explode inibindo uma visão da família humana.
Escreve Morin: “A nação e a ideologia edificaram novas barreiras, suscitaram novos ódios. Deixam de ser humanos o islamita, o capitalista, o comunista, o fascista. “ (pg. 60), note-se que isto foi escrito 1993 (a primeira edição original em francês).
Nossa visão de homem se reduziu, aponta Morin: “A filosofia, encerrada em suas abstrações superiores, só pôde se comunicar com o humano em experiências e tensões existenciais como as de Pascal, Kierkegaard, Heidegger, sem, no entanto, jamais poder ligar a experiência da subjetividade a um saber antropológico” (idem, pg. 61), a visão destes autores parece etérea.
Isto ocorreu também nas ciências humanitárias: “A antropologia, ciência muldimensional (articulando dentro dela o biológico, o sociológico, o económico, o histórico, o psicológico) que revelaria a unidade/diversidade complexa do homem, não poderá edificar-se de fato a não ser correlativamente à reunião das disciplinas … “ (pg. 62), e assim o fragmento humano se traduz em pensamento fragmentado.
É esta fragmentação traduzida em guerra e ódio que exige um desocultar do Ser, reclamado por Heidegger e pensadores que o seguiram (Hans-Georg Gadamer, Hannah Arendt e outros), e que está pensado também em Morin: “Donde a necessidade primordial de desocultar, revelar, na e através da sua diversidade, a unidade da espécie, a identidade humana, os universais antropológicos” (p. 60), des-velar (mais que re-velar, que é velar de novo) como diz a ontologia moderna.
A família humana pode ser desocultada em seus interesses comuns: a ecologia, o equilíbrio econômico e principalmente a paz.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003
Dilemas sobre a paz na Europa e Oriente Médio
O primeiro grande dilema, embora bastante é obvio, não tem respaldo na grande imprensa internacional: falta forças que queiram a paz de modo equidistante dos países em conflito.
Outrora a ONU poderia representar este papel, mas com lutas internas entre as grandes potências este poder está limitado a discursos e tentativas de sensibilizar as partes em guerra.
O segundo grande dilema vem de um sério equívoco que é comum ver em forças belicistas: se deseja a paz prepare-se para a guerra, pois é justamente o contrário, se deseja a paz lute por ela.
Além dos países em conflito, todas as regiões fronteiriças se acham sensibilizadas para a guerra, no leste europeu por exemplo, foi notícia na imprensa alemã, que a Estônia que possui apenas 6.500 militares na ativa e uma população de 1,3 milhão de habitantes, fez a simulação de um plano de evacuação recente para retirada da população, embora 60% dos cidadãos se digam dispostos a defender o país, não teriam preparo militar para isto.
Uma curiosa estrutura de defesa foi implantada na fronteira de muitos países bálticos (foto do jornal alemão DW – Deutsche Welle) instala na fronteira, não se sabe a eficácia, mas é para a guerra, a proximidade da Ucrânia e da Rússia faz vários países bálticos se preparem para o pior.
Em meio a ataques israelenses e pouca ajuda pública, são forças ativistas que estão no Líbano que entram em ação, ainda que politizada e insuficiente para as pessoas necessitadas, é o que tem mantido a ajuda humanitária no país, há denuncias inclusive de ser um “negócio” para a Síria, segundo o mesmo jornal DW militares e forças de oposição na Síria cobram valores exorbitantes para o transporte de, refugiados fugindo da guerra.
Isto induz a um terceiro e grave dilema, a cruz vermelha e o crescente vermelho (versão árabe da cruz vermelha) embora não aceitem a polêmica religiosa, é ela que divide forças de ajuda.
O quarto dilema é resolver a questão de fundo ideológica e cultural-religiosa de fundo nos conflitos, o sociólogo Raymond Aron proferia no período da guerra fria (EUA x União Soviética) uma frase mundialmente conhecida: “A guerra Fria foi um período em que a guerra era improvável, e a paz, impossível”, o dilema agora é inverso: “a paz é improvável, e a guerra possível”, as forças imperialistas em jogos não cederão com facilidade os interesses disputados.
Como pensar na paz, parece um caminho árido e pouco prático, mas grandes pensadores têm apelado para ele: “a resistência do espírito” e como consequência “a resistência da esperança”, Edgar Morin entre outros apontam este caminho, talvez o único mudar a mentalidade do poder, para pensar em solidarizar e servir toda a humanidade, não um grupo específico.
Poder, Ira e Tempo
Em tempo de ameaças e ódios que colocam em cheque não apenas povos, nações e culturas, mas até mesmo o processo civilizatório é bom rever aquilo que pensamos de poder e Ira.
Sloterdijk (2006) tinha desenvolvido a questão de Ira em tempos atuais, num contexto de psicologia política, valores como orgulho, ambição e vaidade contribuem para aquilo que pode ser chamado em tempos de redes, a uma verticalização da vida social.
O autor esclarece que as teorias sociais da “estratificação social na base da dominação, regressão e privilégio” são trocadas pelas ideias de disciplinamento individual (ascese, virtuosidade e desempenho) apontadas como causas da diferenciação vertical.
Isto parecia óbvio tanto para Michel Foucault, patrocinador deste víeis interpretativo, já que denunciava nos anos 70 a intima relação entre discurso e disciplina, por outro lado na visão da viragem linguística, nos seus famosos jogos de linguagem, vinculou esta última com figuras comportamentais e abriu para a sociologia (e algumas meias-filosofias) a compreensão dos rituais latentes, próprios de jogos comunicativos.
Meias-filosofias porque Sloterdijk vai contestar esta leitura e também diversas vertentes da filosofia analítica anglo-americana, que veem nos jogos de linguagens um igualitarista e relativista, não o é.
A chamada tensão vertical, na obra de Sloterdijk, tem grande relevância para a ética e a pedagogia, pois estabelece uma hierarquia entre valores, sem os quais a ética é sabotada, e o educador ao perseguir algo mais alto ao qual o educando está, deve ter algo a mais na alma e no corpo, e isto é seu discurso sobre “a sociedade de exercícios”.
O que estes autores chamam a atenção é a destruição contemporânea da interioridade, tema que Byung-Chul Han vai até a raiz, mas tanto Heidegger, Hannah Arendt e agora Sloterdijk já haviam chamado a atenção para isto: o estar-no-mundo, destruiu aquilo que foi considerado durante milhares de anos como algo mais importante: distinguir-se radicalmente deste mundo.
Em Heidegger este discurso já está presente apontando que o homem como alguém que não dispõe mais de uma interioridade que pode servir de abrigo, para o fugitivo do mundo que ele, eventualmente escolheria ser, as condições modernas, se opõe a certeza de uma vida mais que verdadeira no horizonte da realidade ou num hipotético “fim de mundo”, isto foi escrito muito antes das visões apocalípticas e pseudo-proféticas atuais, sem ver a ausência de ascese.
Hans Jonas escreveu: “age de maneira que os efeitos do seu agir não coloquem em perigo a permanência da vida humana autêntica na terra!” (Jonas, 2006) e Edgar Morin pede uma humanidade (re) humanizada, enfim reverter o processo do poder violento, do ódio e da guerra.
JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation. Frankfurt Suhrkamp, 2006.
SLOTERDIJK, P. Zorn und Zeit. Frankfurt: Suhrkamp, 2006.