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Arquivo para janeiro, 2025

O mal e nossa mente

17 jan

Não gosto do gênero de terror, mesmo assim fui assistir no filme argentino O mal que nos Habita (foto), dirigido por Demián Rugna (Aterrorizados, the last gateway) e me fez reflexões sobre o mal que pode ser encontrado em regiões e locais onde percebem algo errado e saem a procura de explicações, no caso do filme, após encontrarem um corpo mutilado.
São muitas as mutilações contemporâneas: drogas, embriaguez, pornografia barata, roubos e tudo o que acompanha uma sociedade em crise, no caso do filme eles acabam descobrindo um homem com o corpo infectado pelo diabo e que está prestes a dar a luz a um demônio real.
Não cabe aqui a discussão sobre a realidade da existência desta entidade, pessoalmente creio, porém, o interessante do filme é a comunidade se reunir diante de um caos já instalado para tentar combate-lo e o tempo parece não estar a seu favor.
A metáfora que vejo é não apenas as guerras, como também diversos pensamentos e males já instalados e a população em busca desta “entidade” do mal, porém sem conseguir encontra-la, estamos num limiar civilizatório perigoso e o pior é aquilo que aprisiona a mente e a alma.
Ausência de perdão, fechamento em grupos concêntricos, mais do que bolhas são correntes culturais equivocadas onde um grupo procura eliminar o outro sem qualquer possibilidade de trégua e se pudéssemos denominar este “mal” seria o que Freud chamou de “mal estar civilizatório”, no caso do filme, não eliminar, mas tratar daquele “homem” infectado.
A exclusão e o combate ao “outro lado” parecem as respostas mais evidentes, porém ela só nos encaminha para um mal maior: a guerra, a exclusão e suas consequências.
Reconhecer nossos erros é o primeiro passo, mas deve ser complementado com o perdão aos que por algum motivo nos prejudicaram ou ofenderam e o terceiro é verificar a origem do mal social, este o mais difícil porque a maioria, sem a sabedoria necessária, prefere a exclusão.
Não se trata de tolerância ao mal, nem mesmo a inocência perante ele, é preciso testemunhar vivendo a esperança de um recomeço pessoal, dos que estão a nossa volta e social, vemos no caso do acordo de paz de Israel este passo difícil, pois os espíritos continuam armados, ontem houve novo bombardeio de Israel.
O mundo espera a paz, não haverá com espíritos armados, incapazes de dar o primeiro passo, pois de alguma forma estamos todos infectados por um clima de hostilidades.

 

Paz ou trégua no Oriente Médio ?

16 jan

Um acordo de paz foi comemorado onde no Oriente Médio, mas ainda pairam dúvidas sobre as reais condições deste acordo, maus acordos apenas protelam ódios e reorganizam forças.

Um acordo de cessar-fogo apenas significa um novo balanço militar na região, conforme avalia Binyamin Netanyahu primeiro-ministro de Israel, na prática com os Estados Unidos dando as cartas na região e um recuo do Irã, a queda de uma longa ditadura na Síria contribuiu para isto, mas haverá paz sem a reconstrução das condições humanitárias na região e no Iêmen

Antes do ataque de 7 de outubro feito pelo Hamas em território israelense, o Irã dava as cartas na região, incluindo terroristas bem treinados espalhados na faixa de Gaza, onde moram os palestinos com constantes hostilidades de Israel, isto escalou depois de 7 de outubro.

É preciso restabelecer as condições humanitárias na região, e entender que a pobreza no Iêmen é uma das mais graves do mundo, assim não basta a trégua é preciso ir a raiz da guerra.

Em mais de 40 anos poucos acordos foram bem-sucedidos e a crise segue na região, desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, acordos firmados entre Israel e Egito, entre Israel e Jordânia, a questão central entre palestinos e israelense não foi resolvida, é preciso um acordo direto.

O acordo anunciado oficialmente no Qatar pelo primeiro ministro Mohammed bin Abdulrahman Al Thani, foi feito entre negociadores do Hamas e de Israel, o que é por ser direto entre as partes, um bom início.

Suas palavras “esperançosamente, está será a última página”, é muito significativa, mas não se pode subestimar as condições no médio e longo prazo, ou seja, restabelecer as condições humanitárias na região e não pensar o Iêmen como um capítulo a parte, é sede dos Houthis, eles atacaram um posto “vital” em Israel no dia de ontem, antes do acordo.  

Sobre os reféns que devem ser soltos em breve, dos 251 capturados pelo Hamas no 7 de outubro de 2023, acredita-se que 94 continuam em Gaza, 60 estejam vivos e 34 mortos.

É preciso agora desarmar os espíritos bélicos, não só na região, mas em todo planeta.

Urgente: Segundo a Associated Press, o gabinete de Israel ainda não ratificou o acordo, diz que Hamas impôs “novas” concessões: “O gabinete não vai se reunir até os mediadores notificarem Israel de que o Hamas aceitou todos os itens do acordo”, disse Netanyahu, lutem, orem ou pensem positivo pela PAZ.

 

A paz de quem ama

15 jan

Eu vos dou a paz, mas não como o mundo dá, diz a sabedoria bíblica (João 14,27), e que tipo de paz é esta, claramente não é aquela que chamamos de paz entre nações e povos.

Já citamos aqui, a chamada paz ibérica, na na Sassânida (527-531), que tornou-se sem retorno a guerra, e em períodos sombrios para a paz humana seria altruísmo ou inocência pensar na paz

Dizer o que pensa, manter a coerência em ações e palavras, a justiça e os valores não valem apenas para seu grupo ou nação, devem ser valores coerentes e que sejam práticos sempre e com todos, independem de narrativas e polaridades políticas e sociais, é preciso ter sabedoria no que diz e prudência no que faz, e a pura liberação de sentimentos não é saudável e exige de quem faz sempre uma dose de empatia e amor.

Se corrige, corrija por amor, se fica calado cale-se por amor, muitas vezes é sábio calar, e não significa sempre indiferença ou omissão, é também sabedoria e prudência, as virtudes que já discorremos aqui e que foram tratadas com propriedade pela filósofa Philippa Foot.

O amor contem todas as virtudes, mas a palavra se esvaziou na contemporaneidade, ela é até sinônimo de hipocrisia e exclusão, faz-se maldade e se diz “fiz por amor”, por isto é necessário hoje compreender as outras virtudes que estão embutidas no amor verdadeiro.

Há também o apelo a ignorância, mais que apelo há um desconhecimento, a desinformação é apenas uma consequência da falta de sabedoria, e não é apenas de um lado da narrativa.

As narrativas modernas estão em moda, os instrumentos de mídia social ajudam a propaga-las com raciocínios e frases rápidas, trata-se apenas de negar o que o Outro diz, é fruto de um longo processo de desconhecimento.

A paz que almejamos é a paz do amor, mas ele deve vir contendo as virtudes cardeais: justiça (a divina), prudência, temperança e coragem (fortaleza).

 

Porque o mal se espalhou

14 jan

É verdade que o mal é ausência do bem, assim interpretou Agostinho de Hipona sobre a essência do Ser que é o bem e sua falta como a produz, em nossos posts anteriores também discorremos sobre as virtudes cardeais afirmando que além da Justiça, que é relativamente pensada nos dias atuais, existe a prudência e a sabedoria que deveriam acompanha-las.
As virtudes teologais: fé, esperança e Amor devem acompanhá-las, porém também elas foram comprometidas pela ausência de sabedoria, mais do que desinformação e pós- verdade, é tempo de desconhecimento e ignorância, até mesmo escolar, primária.
Também o poder, através de valores estruturais e formas autoritárias de exercê-lo, contribui para a intolerância e o desprezo pelo conhecimento e valores morais, isto levado a um limite social e estrutural chegamos a guerra.
A prudência e a tolerância entram então não como virtudes secundárias, mas essenciais.
Não há esperança, nem amor e nem fé, onde a intolerância e a exclusão fazem parte do dia-a-dia e infelizmente este discurso está até mesmo na boca daquele que falam do Amor, do respeito ao Outro e da inclusão.
Isto acontece porque as relações são dualistas e não trinitárias, além de mim e o Outro deveria haver um terceiro incluído, na física quântica isto já foi descoberto como um princípio até mesmo da matéria, portanto não é apenas divino, é a própria realidade.
Assim em diversas épocas de nossa história foi por meio da violência que impérios e ditadores impuseram suas vontades e ideologias, não sem o consentimento de boa parte da população, por isso lembramos da má educação, seja através de campanhas de propaganda, seja pela própria escolarização empobrecida e malformada, as duas questões estão ligadas.
É preciso por isto estar atentos a gestão em todos os níveis, desde as nossas casas, bairros e condomínios até as estruturas de poder, pequenas ações ilegítimas, educação para empatia, convivência, limpeza e até mesmo o lazer devem ser observadas e orientadas pelos gestores e órgãos públicos no sentido de preservar o espaço comum e os bens públicos.
O zelo pela honestidade, pela transparência, pelo diálogo respeitoso entre opiniões que não são necessariamente opostos, mas diferentes ainda que em direções completamente divergentes não deve ser motivo de ódio e violência, é sempre possível o diálogo.
O mal precisa da polarização, da radicalização dualista (na negação, há um sentido bom que é ir a raiz de um problema), porém a pura desavença como forma de justificar e propagar a violência é só uma forma arrogante de poder.

 

Entre a guerra e a esperança

13 jan

Crescem em todo o mundo rumores de novas guerras, até mesmo os pacíficos Canadá e Groenlândia foram ameaçados por falas incompreensíveis do novo governo dos EUA de Donald Trump que toma posse em breve, a queda do governo Trudeau no Canadá, que foi comemorada pela população, demonstra as recentes fragilidades do país.

A guerra no leste europeu segue com pesadas baixas e agora já há muitos bombardeios em território russo: campos de petróleo e localizações estratégicas militares como as de Engels, a base aérea de Rostov do Don e da região de Lipetsk, enquanto a Ucrânia perde soldados e territórios. 

Também as bases dos rebeldes Houthis no Iêmen foram bombardeadas por Israel, gerando protestos em vários países árabes, o conflito segue com várias denuncias de organizações humanitárias e aliados antissemitas.

A tensão também ficou elevada com a pose do ditador Nicolas Maduro na Venezuela que segue sem qualquer possibilidade de solução pacífica por uma crise que já está além do ideológico, os governos do Chile e da Colômbia também contestam as fraudes nas eleições de lá, e o governo que aparentemente foi eleito Gonzales Urrutia chegou a ameaçar que iria à Venezuela para a posse, mas recuou após a prisão e soltura de sua vice Maria Corina Machado.

Também a guerra comercial entre China e EUA ganham novos contornos com o bloqueio de envio de materiais chineses para 28 empresas consideradas de uso suspeito de serviram tanto a propósitos civis quanto militares, em especial, aquelas que ajudam Taiwan a se armar.

Há esperança num quadro tão belicoso?  e a resposta sempre será sim, é bom lembrar que nestes momentos sempre surgiram líderes que proclamaram a paz: Mahatma Gandhi, o líder americano Martin Luther King, lideres religiosos sinceros (os que promovem a guerra devem ser colocados sob suspeita) e todos os milhões de pessoas que sabem que a guerra não traz benefícios e que em última instancia querem sempre o domínio de um povo sobre o outro.

Ainda que estas pessoas pareçam “idiotas” e ingênuas, a literatura é farta destes personagens, como já citamos na semana passada os personagens de Dostoiévski, lembro também de um filme dirigido pelo argentino Sebastián Boresztein (Um conto chinês, foto) que fala de uma amizade inesperada entre um ranzinza vendedor de ferragens e um migrante chinês chamado Jun.

A paz é sempre desejada em corações generosos e serenos, o conflito vive na cabeça de pessoas que olhar a todos com suspeita, veem inimigos onde não existem, ainda que falem de paz, o que querem é subjugar os que tem visões de mundo, cultura ou religião diferente.

 

As vozes no deserto

10 jan

Em tempos de crises há um reduzido número de vozes que vê além das forças em embate, não são nem os apocalípticos nem os integrados (diria Umberto Eco), mas aqueles que entendem o panorama e as raízes das crises temporais e vem além do temporal, veem o civilizatório divino.

A figura do idiota de Dostoiévski é uma destas figuras que via na sociedade da época, um feudalismo decadente na Rússia, uma crise e imaginava uma sociedade com ética e moral, não apenas uma mudança estrutural, mas uma mudança no modo de ver a sociedade e o Outro.

Os integrados que vivem sobre o domínio de ideias já comprovadamente ultrapassados, quase todas oriundas do idealismo europeu, que imaginou uma paz eterna (Kant) sem entender a base dos conflitos que era uma visão de estado bélico e intercessor na vida cotidiana.

Também um quadro parecido é tratado por David Flusser ao analisar o quadro social da época de Jesus no primeiro século da era cristã, seu livro Jesus fala dos conflitos sociais, políticos e religiosos da época, como judeu traça um quadro visionário de Jesus na época.

Uma verdadeira profecia se realizava, e o profeta Isaias falava bem antes daquele tempo sobre um profeta que viria (o último e o maior, por isso verdadeiro) conforme Marcos (Mc 1,2-3): “Eis que envio meu mensageiro à tua frente, para preparar o teu caminho. Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas! ”.

João Batista era o “idiota” de seu tempo, poucos compreendiam claramente o que dizia da vinda do messias, alguns queriam interpretar politicamente como um guerreiro salvador e outros como um louco que vivia no deserto se alimentando de mel e gafanhotos.

A vida ascética de João Batista, era uma verdadeira ascese, os religiosos e apocalípticos de nosso tempo são incapazes de compreendê-lo e por isso são fariseus e falsos profetas, em meio a crise anunciam riquezas e abundâncias inatingíveis para o povo simples que por eles é explorado.

Salvadores da pátria são diferentes de salvadores que preparam um caminho divino para um futuro pós-guerra, pós-crise e pós-religiosidade belicista e de “sócios” (em referência a Paul Ricoeur citado em posts anteriores), é preciso uma visão de mundo que veja com clareza as virtudes cardeais e não separe delas a justiça e sabedoria.

 

O outro e o narcisismo

09 jan

O brain rot tem uma face que não é facilmente detectável, é a do narcisismo, o mito grego que deu origem ao nome a esta patologia, é que Narciso se julgava tão belo que desprezou diversas pretendentes até apaixonar-se pela própria imagem e morre de fome e sede à beira de um rio que refletia a própria imagem (na foto, desenho encontrado em Pompéia).

Ao ficarmos presos as próprias convicções, aos próprios valores e costumes vamos elaborando narrativas que justificam nossa visão de mundo, nossa posição ou mesmo a desprezar outras que possam parecer até razoáveis, mas prefiro seguir minhas próprias orientações.

O Outro é assim uma negatividade para o narcisista, na filosofia não é apenas pessoas ou ente distinto em relação a si mesmo, pode ser também a diversidade de experiências, culturas, crenças e hábitos, enfim tudo o que sintetiza uma nova visão de mundo, diferente do Narciso.

Assim trends midiáticos que enfatizam determinado comportamento e forma de pensar são um perigoso instrumento de brain rot, criam narrativas e verdades que parecem verdadeiras, mas em geral abusam do marketing, do uso de sons e imagens que prendem o seguidor.

A base de tudo, na raiz está o idealismo e a ideia de “modelos” a serem seguidos, porém já em estágio mais avançado com uso de mídias, fixar ideias e conceitos dependem de certa habilidade de marketing e de uso de coisas confiáveis, as vezes até inteligentes, mas fragmentadas, por isto já abordamos um pouco atrás, a ideia da simplicidade e dificuldade de compreensão do complexo é que permitem esta metodologia.

O Outro resumindo em poucas palavras é tudo aquilo que não é espelho, tudo aquilo que está longe de ser o que temos como modelo quer seja para a minha visão de mundo, quer seja para a minha crença e o que é mais complicado, para diferentes posições políticas.

O fato de ser necessário uma nova metodologia, como o círculo hermenêutico que propõe a fusão de horizontes antes do “diálogo”, uma nova epistemologia que escape da bipolaridade do Ser é e o não Ser não é, criando um terceiro incluído, como aquele já apontado na física quântica moderna.

Assim não é um diálogo necessariamente convergente, mas que parte de um ponto em comum, há uma inicial fusão de horizontes inicial, isto é, parte-se de uma certa “convergência” inicial.

Considerar o Outro é essencial para fugir da bipolarização e dos sensos-comuns de explicações simplistas para questões que são complexas, também aqui pode-se fazer necessário uma certa simplicidade: o Outro embora não seja um espelho, tem algo em comum, no mínimo o fato que co-dividimos o mesmo momento histórico, a mesma época e o mesmo desejo de paz.

 

Amor: o sócio e o próximo

08 jan

Um dos capítulos mais duros da queda civilizatória é a transformação do conceito de amor, há até patologias que vivem do cancelamento desta relação, porém a base é a transformação em interesse, importa mais os interesses do que qualquer tipo de empatia ou afetividade.

Paul Ricoeur foi o filósofo que abordou diretamente esta questão em seu livro “História e Verdade”, que diria é um complemento do livro de Hans-Georg Gadamer: Verdade e Método”.

O egoísmo, o fechamento em círculos viciosos, abrem separação de abismos com o Outro, não há outra palavra que defina melhor, exclusão, é ela que leva a incredulidade do amor ao próximo e abre caminho para as relações de interesses, em poucas palavras relação de dinheiro.

O que outro poderia parecer impensável, agora relações econômicas criam círculos concêntricos, estruturas de poder e até mesmo gangues urbanas relacionadas ao dinheiro, e são elas que deterioram a base social, destroem relações empáticas e criam relações de disputa e ódio entre grupos, na base do “brain rot” está o conjunto destas relações sociais.

Para explicar isto, Ricoeur discorre sobre a caridade: “A caridade não precisa estar onde aparece; também está escondida na humilde e abstrata agência dos correios, a previdência social; muitas vezes é a parte oculta do social ”, Paul Ricoeur em Le socius et le Prochain (1954), e está traduzido no livro História e Verdade de 1968.

Já no livro de Gadamer o que vamos encontrar é como fazer estas relações na leitura de um texto, ou no diálogo contínuo sobre determinado tema, é preciso uma “fusão de horizontes”, antes do diálogo, aquilo que primariamente os gregos chamavam de époque, ou seja, fazer um vazio para ouvir e dialogar com o Outro.

Este exercício é difícil, para não dizer quase impossível na sociedade polarizada e qualquer discurso sobre o amor não passa de mera retórica, na base está “segregar” o Outro.

Assim quem permanece na caridade, no diálogo e na compreensão, tem propriedade para falar do Amor.

 

“Brain rot” a palavra de 2024

07 jan

Segundo o site da Universidade de Oxford, uma pesquisa feita em votação publica com 37 mil pessoas, a palavra do ano escolhida foi “brain rot”, traduzida como “podridão cerebral” um estado mental produzido pelo excesso de consumo de conteúdos de baixa qualidade.

Segundo o site da imprensa de Oxford o primeiro uso registrado da palavra é de 1854, feito por Henry David Thoreau, no livro Walden, que relata suas experiências de viver um estilo de vida simples no mundo natural, o autor já criticava no século XIX a tendência da sociedade de desvalorizar ideias complexas, ou aquelas que podem ser interpretadas de maneira múltipla.

É importante por entender que esta forma de ver o simplismo do cotidiano, é muitas vezes um indicativo de declínio do esforço mental e intelectual, cita o texto de Oxford: “Enquanto a Inglaterra se esforça para curar a podridão da batata, não haverá nenhum esforço para curar a podridão cerebral – que prevalece de forma muito mais ampla e fatal”.

Isto serve para entender que as tecnologias midiáticas atuais aceleraram este processo, mas ele vem de longa data, e também a maior crítica a inteligência artificial deve-se ao fato que não elaboramos mais raciocínios e análises de questões complexas, assim a inteligência bem articulada de uma máquina torna-se superior a média de elaborações intelectuais de baixa qualidade, resultado do consumo de mídias com conteúdos sem conexão e sem veracidade.

É preciso compreender que isto é um processo mais longo que significou paulatinamente o esvaziamento de conteúdos de qualidade, de capacidade de leitura, e principalmente de metodologias e epistemologias que procuram simplificar métodos que não são simples, veja por exemplo as teorias físicas e cosmológicas, que deram um salto de newtonianas a quânticas.

No nível existencial há um esvaziamento do ser, isto em toda a literatura, Dostoievski que falamos no post anterior era também um existencialista, Edgar Morin falou do método complexo, a medicina cada vez mais fala de tratamentos holísticos que tratem todo o corpo.

Assim a visão de que isto é devido a emergência dos dispositivos digitais, é muito rasa, elas sem duvida influenciam, mas a tendência a uma cultura vazia vem de muito tempo, Nietzsche já falava nela, Theodore Dalrymple pseudônimo do psiquiatra Anthony Daniel que escreveu sobre o esvaziamento da cultura, já escria sobre isso na década de 80: Coups and Cocaine: Two Journays in South America (1986), Fool or Physician: The Memoirs of a Sceptical Doutor (1987) e Filosofa´s Republic (1989) (uso o pseudônimo Thrusday Migwa).

Enfim vivemos um declínio civilizatório, há até que fale de dificuldade comunicacional (estudos sobre alterações na escrita feito pela Universidade de Stavanger, na Noruega).

 

Dostoiévski e a guerra

06 jan

Imaginar que toda literatura russa seja soviética, é antes de tudo a-histórico porque grandes mestres da literatura são anteriores ao período soviético: Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Anton Tchecov (1860-1904) e Leon Tostói (1828-1910), sem falar de Gogol, Pushkin e outros.

Dostoievski foi um mestre em explorar as questões éticas e espirituais em seus personagens, também aborda questões de fé, redenção e a busca pela verdade.

Dostoievski esteve preso por motivos políticos, seu estilo de literatura era realista, porém do ponto de vista filosófico para dar uma conotação mais precisa era um existencialista, suas ideias anti-czar (a monarquia russa) fazem muitos interpretes o colocam como “revolucionário”.

Dostoievsky pertenceu a um grupo conhecido como Circulo Petrashevsky, apesar de serem de correntes diferentes, eram majoritariamente progressistas e queriam o fim do feudalismo russo.

Entre suas obras mais conhecidas estão: Os irmãos Karamazov, O idiota e Crime e Castigo, embora sejam dramas éticos e existencialistas, há no interior destas obras o ideal do pan-eslavismo, um ideal de unidade entre todas as nações cristãs ortodoxas e eslavas e neste sentido eram conservadores, já que outras correntes defendiam a integração à Europa.

O Idiota, foi um romance iniciado em setembro de 1867 quando o autor estava em Genebra e concluído em janeiro de 1869 na cidade de Florença, só isto indicaria seu caráter universal e com temas que extrapolam o âmbito literário e político.

O idiota narra a estória do jovem príncipe Míchkin que, após vários anos em um sanatório na Suíça, regressa a Rússia e se depara com um mundo atolado na indolência e na vida material.

Ao contrário do título, o personagem visto por muitos como idiota por se recusar a valores e ao espírito de indolência regressando ao seu país, sente-se um idiota até certo ponto, porém nos ensina que é possível viver fora dos padrões antiéticos e imorais do seu tempo.

O personagem resolve ser cortês e sincero num mundo corrompido e escreve o autor sobre ele: “Ninguém deve esperar mais do que isso, de mim. Talvez aqui também me olhem como uma criança; não faz mal” e complementa: “Mas posso eu ser idiota, agora, se me sinto apto a ver, por mim próprio, que todo o mundo me toma por um idiota? Quando cheguei, pensei: “Bem sei que me tomam por um idiota; todavia tenho discernimento e eles não se dão conta disso!…”.

Assim o drama russo de viver o pan-eslavismo ou a integração ao ocidente já estava presente.