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Convergências e divergências na filosofia Oriental
Ao criticar o idealismo, em especial Kant, o próprio Byung-Chul Han vai revelar em seu livro Ausência, que “o pensamento oriental se volta inteiramente à imanência” (Han, 2024, p. 41) e ainda que haja na filosofia oriental uma verdadeira ascese, ela está deslocada e ao mesmo tempo próximo de um sentido ontológico do Ser-para-o-outro e fica preso ao “assim-é”.
A Crítica da razão pura de Kant, uma crítica revisionista da metafísica racionalista, cria um dualismo entre aquilo que podemos conhecer por estão presente no tempo e no espaço, sendo assim imanente, com aquilo fora do tempo e espaço, e por isto transcendente, ora toda a física quântica atual seria transcendente, e no entanto, para os físicos é imanente, pois tudo que não é demonstrado pertence ainda a física teórica, como a teoria das cordas, por exemplo.
Usa o conceito oriental de dao, com ideias de equilíbrio mental e do corpo, porém Han o coloca no “assim-é” das coisas e do aqui-agora, e assim escaparia à nomeação, pois ele é alto-demais, algo que flui porque meandra (p. 41), porém lembramos que no centro da via láctea está um buraco negro, e a física teórica agora especula que podemos estar dentro do buraco negro, e assim a transcendência idealista e daoísta lhe escapa, há um “terceiro incluído”.
Assim como o oráculo grego e o profeta hebraico, Han argumenta que “o sábio não existe nem retrospectiva nem prospectivamente… ele vive presentemente” (Han, 2024, p. 42), mas ao afirmar que ele “não tem a agudeza e a resolução do instante” (p. 43), admite que “o instante está ligado à ênfase e à resolução do agir”, assim a ausência não está nem no espaço nem no tempo, a física chama este estado de “entrelaçamento” e é exatamente o terceiro incluído.
O problema de escapar da transcendência e da imanência está no aspecto “trinitário” no qual algo teo-transcendente acontece, porém partindo da antropotécnica, que admite uma visão da techné que originalmente pertencia ao conhecimento prático, sem ser o empírico idealista, e, que a antropotécnica trata, porém escapa-lhe o aspecto onto do além do técnico e da ação.
Há uma convergência do princípio trinitário com a crítica de Han, no situacional há um “escape” da “situação heidegeriana” onde “o Dasein se apropria resolutamente de si mesmo. Ele é o supremo da presença. O caminhante habita em cada presente, mas não permanece, pois, a permanência possui uma referência aos objetos forte demais” (Han, 2024, p. 43).
Ele apresenta um sonho de Zhuang Zhou que no qual seria uma “borboleta”: “Esquecendo-se de si mesmo, Zhuang Zhou flutua entre si mesmo e o outro” (p. 44), mas em seguida volta a contrapô-la a essência, um “habitar em parte alguma” do zen-budismo, porque uma outra transcendência trinitária inexiste para o zen-budismo, é um elevar-se ao céu infinitamente.
Lembro Duns Scotus que afirmava que não podemos separar o “ser” de uma coisa do que é.
Só há uma verdadeira ascese a um estágio trinitário, é uma imanência divinizada ou uma transcendência não objetiva, o Ser por ausência eleva-se a Deus, assim o que preenche este vazio fica não incógnito, é ele próprio.
HAN, B.C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli. Petrópolis, RJ, Vozes, 2024.
Filosofia oriental e o idealismo
Em sua análise crítica do idealismo, Han inicia reafirmando a metáfora do “espelho vazio” no qual repousa a ausência do “eu desejante, sobre um coração em jejum”, ao contrário de Fichte (1752-1814) “filósofo do eu e do estado-de-ação”, um dos expoentes do idealismo alemão.
Citando Fichte, em seu livro sobre a Ausência: “o sistema da liberdade satisfaz meu coração, o sistema oposto o mata e aniquila. Ficar frio e morto, apenas observando a mudança dos acontecimentos, um espelho inerte das figuras que passam e escapam – essa existência me é insuportável, eu a desprezo e execro” (Han, p. 34).
Ele vai lembra a doutrina da “felicidade celestial” (tian le, 天樂, Z. livro 13) de Ziang Zhou, uma “felicidade suprema” (zhi le, 至樂 , Z. Livro 18), já de outro modo a sorte (fu, 福) repousa sobre uma diferença ou presença, “uma percepção parcial”, quem aspira a sorte acaba se entregando ao azar (Z. livro 15) (Han, 2024, p. 35).
É importante notar que “a ausência de sentido não conduz ao niilismo, mas é uma felicidade celestial com o ser que não tem direção nem rastro” (idem, p. 35).
A doutrina da felicidade celestial de Zhuan Zhou é diametralmente “oposta à doutrina kantiana da felicidade”, em sua antropologia Kant observa que “preencher o tempo com ocupações que progridem um grande fim proposto” é “o único meio seguro de se tornar feliz com a própria vida e, ao mesmo tempo, também saciado dela” (Han pgs. 35-37 citando a obra de Kant Antropologia de um ponto de vista pragmático).
Kant compara a vida a uma jornada, termo presente em muitas narrativas ocidentais, e que elas ocasionam na memória a “inferência […] de que se percorreu um grande espaço e, por conseguinte, também a inferência de um tempo mais longo exigido para isso” (Han citando Kant), para ele Ser é agir, onde “a ausência de objetos perceptíveis, engendra retrospectivamente o sentimento de um tempo mais curto” (Han, 2024, p. 36).
Tanto para Laozi como para Zhuang Zhou “um projeto de existência e um mundo inteiramente distinto são possíveis” (idem, p. 36).
Para estes mestres orientais: “o mundo, com cujo curso natural o ser humano deve se resignar, não é narrativamente estruturado. Por isso ele também é resistente à crise do sentido, que é sempre uma crise narrativa” e o “mundo impelido a uma trajetória narrativa estreita e reduzido”, esta narração e seleção de sentido são uma “exclusão massivas, ou ao mesmo tempo uma diminuição do mundo”. (HAN, 2024, p. 37).
A ideia de nações fechadas, de estruturas belicistas de poder fez o mundo ficar reduzido a narrativas “estreitas”, enquanto Zhuang Zhou ensina a conectar o mundo inteiro, a ser “tão grande quanto o mundo, elevar-se ao mundo inteiro em vez de agarrar-se a uma pequena narrativa e a uma distinção” (HAN, 2024, p. 38).
HAN, B.C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli. Petrópolis, RJ, Vozes, 2024.
KANT, I. Antropologia do ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.
Espiritualidade oriental e a violência
Ao analisar os efeitos da ausência, livro de Byung-Chul, ele continua discordando da visão funcionalista de F. Jullien, ao citar os parágrafos §§68 e 69 pode a primeira vista tratar da questão da eficácia, mas não é, ele pode “utilizar a energias dos outros sem esforços”, e cita o § 69 como uma interpretação funcional: “Laozi também aplica esse princípio ao âmbito da estratégia: um bom militar não é “belicoso”, isto é, como interpreta o comentador (Wang bi, §69), ele não se põe em perigo e não ataca. Em outras palavras, “quem está em condições de derrotar o inimigo não inicia nenhum combate com ele” (Han, 2024, p. 29 citando F. Jullien).
Assim um bom líder militar, afirma Han, apenas cuida que o inimigo não encontre caminho de ataque, faz pressão, mas “sem que ela se concretize totalmente”, e em seguida cita aquilo que Jullien vê como formulações paradoxais: “partir em uma expedição sem que haja uma expedição”, ou “arregaçar as mangas sem que haja braços”, ou “lançar-se à luta sem que haja um inimigo”, ou “segurar firmemente sem ter amas” (§ 69)” (Han, p. 30 Jullien analisando as citações de Laozi).
A contradição está acima da questão da vitória ou derrota, Han lembra que Jullien omite a última frase do §69 que é “o enlutado vence” (ai zhe shen, 挨着生) a outra contradição é entre a concepção de luto que Laozi usa o símbolo ai li usado em ritos funerários no sentido “de ficar de luto” (ai li, 哀禮), “lamentar” (bei, 悲), “chorar” (qi, 泣). (HAN, 2024, p. 31)
O vazio budista kong (空) é muito próximo do vazio taoísta xu (哀), ambos são ausentes até se tornarem um não eu, um ninguém, um “sem nome” (idem, p. 31), já tratamos isto noutro post.
Por fim explica que o xu do coração no sentido oriental não tem interpretação funcional, é um sentimento não um cálculo ou um raciocínio, utilizará para isto a figura do espelho vazio, de Zhuang Zhou (diferente radicalmente do espelho animado de Leibniz explica), ele não precede, mas acompanha, citando Zhou:
“o ser humano mais elevado utiliza seu coração como um espelho. Ele não persegue as coisas nem vai em direção a elas: ele as reflete, mas não as segura […] ele não é um senhor (zhu, 生) do conhecimento. Ele se atenta aos mínimos detalhes e, no entanto, é inesgotável e reside além do eu. Ele aceita todas as coisas que o céu oferece, mas ele as tem como se nada tivesse” (Han, 2024, p. 32).
O zen-budismo também gosta da figura do espelho, lembra Han, nele se ilustra a não retenção (outra forma de ausência) do coração vazio (wu xin, 無心), que no ocidente seria um “não possuir”, “não querer” e espiritualmente um fazer um vazio na alma para “ouvir o coração”.
Não alimentamos nossa alma se não fazemos um vazio, o cardeal africano Robert Sarah em seu livro “A força do silêncio” lembra a ruidosa sociedade ocidental e o vazio existencial que ela penetrou, é famosa sua frase: “No silêncio não só nasce a caridade genuína, mas faz o homem ser mais parecido com Deus”, embora por caminhos diferentes é possível aproximar estas espiritualidades.
Byung-Chul Han citando o mestre budista Bi Yän Lu usando a metáfora do espelho: “somente quem reconheceu a nulidade do mundo e de si mesmo também vê nele a eterna beleza” (HAN, 2024, p. 33, citando Bi Yän Lu).
HAN, B.C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli. Petrópolis, RJ, Vozes, 2024.
Ausência oriental além da funcional
Byung-Chul o vazio (xu, 虛) como ausência não permite uma interpretação puramente funcional (Han, 2024, p. 16), citando o livro 15 Zhuang Zhou “nota: “quietude, serenidade, ausencialidade, vazio e inação: eis o equilíbrio entre o céu e a terra” (tian dan ji mo, xu wu wu wei, ci tian di zhi ping, 恬淡寂寞, 虛无无为, 此天地之平). O vazio xu, na expressão xu vu (虛无无), não possui significado funcional” (Han, 2024, p. 26).
Ele dá vários exemplos anotados por Byung-Chul em nota de rodapé, o vazio dos raios de uma roda de carroça, o vazio na argila para tornar-se um vaso, portas e janelas de aposentos, e critica François Julien que interpreta segundo uma análise funcional:
“despojado de todo misticismo (uma vez que não possui orientação metafísica), o célebre retorno ao vazio de Laozi é uma exigência de dissolver os bloqueios aos quais o real está sujeito assim que não encontra mais nenhuma lacuna e fica saturado. Quando tudo está preenchido, não há mais espaço de ação. Quando todo vazio é abolido, destrói-se também a margem que permitia o livre desdobramento dos efeitos” (Han, 2024, p. 27 citando F. Julien).
Lembra da história a “aparência assustadora do aleijado” que não precisa ir a guerra, e recebe “abundante” auxílio do Estado e também a anedota do cozinheiro que trincha o animal com facilidade, em vez de cortar resolutamente passa a faca nas cavidades já presentes nas juntas.
Segundo as duas histórias a interpretação funciona sugere que ela aumenta a eficácia da ação, mas lembra citando também uma árvore nodosa (cheia de nós) que atinge uma idade muito avançada, permite também uma interpretação utilitarista, mas o fato de haverem tantos aleijados e tantas coisas inúteis nas histórias de Zhuang, conduz a própria funcionalidade ao vazio, estes personagens aparecem precisamente contra a utilidade e eficiência (pg. 28).
Lembro-me também da mística ocidental, onde ela ainda existe, que a busca pelo pão, pela saúde e pelo socorro social é muitas vezes motivada também por um vazio existencial, mesmo que tem alguma condição social busca algo em sem “vazio” não funcional, mas espiritual.
Quando alguém pede pão, está pedindo também dignidade, cidadania, respeito e muitas outras além do vazio funcional, o princípio da inclusão não é meramente retórico e não deve ser funcional, deve ser ontológico enquanto Ser-aí, porém além do pré-sente e do au-sente (abwesend em alemão ou absent em inglês), é apenas um sente (wow feel em inglês ou Wow Gefühl em alemão), a palavra wow tanto em ambas línguas é uma expressão para uau!), mas claro, traduções são sempre imperfeitas, o significado permanece acoplado a um língua.
Em português seria melhor um “sendo” no sentido de sentimento, sein em alemão e being em inglês onde o ver to be possui um sentido mais estrito que outras línguas, aqui num sentido de existindo ou subsistindo a vida, misticamente o pão funcional é também um pão místico no cristianismo.
HAN, B.C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli. Petrópolis, RJ, Vozes, 2024.
*escultura de Albert György intitulada “Melancholy” (lago de Genebra) representa “vazio de uma alma” (foto).
O que a filosofia oriental pode contribuir
Tentando entender a etimologia de Ser no oriente, indicado por Han em seu livro Ausência, procurei as palavras Ser/Estar e não encontrei o símbolo que o autor aponta, ao colocar ser, possuir ou ter encontrei o símbolo 有 (you) que “representa uma mão segura um pedaço de carne” (p. 17) … “no entanto, o ser como exigência, apetição, não domina o pensamento chinês” (HAN, 2014, p. 18).
Citando Zhuang Zhou, “o sábio caminha no não ser” (you yu wu you, 慧於無為者, Z. [Zhuan Zhou] Livro Z), que também fala em “caminhar na simplicidade” (you yu dan, 游宇丹) (p. 18).
Também cita o sábio chinês L. Laozi que nega igualmente a “essência” (wu, wu, 非無 ) e através da não essência (wu wu, L. [Laozi], §14), “ou melhor, au-sência”, em alemão Abwesen (essência) onde ab significa negação, lembro que a palavra em inglês absence também é muito próxima do alemão.
Para esta filosofia taoística, o sábio caminha onde não há “porta nem casa” e segundo Han é comparado a uma codorna que não tem ninho, ou seja, não tem uma morada fixa, assim “caminha com um pássaro que não deixa rastros” (p. 19), mas o não caminhar taoísta não é totalmente idêntico à “não habitação” budista (wu zhu, 無竹 ), mas a negatividade os conecta.
O mestre zen japonês Dogen também ensinar o habitar em parte alguma: “um monge zen não deve ter domicílio, como as nuvens, e não deve ter um suporte fixo, como a água” (p. 20).
O caminhante de Laozi não persegue nenhuma direção, não tem nenhuma intenção, ele não vai a lugar algum (p. 20), e tudo isto sugere um não Ser, mas isto não é um niilismo oriental, pois ali também “surgem essencialidades fixas … a alma também insiste” (p. 21), assim a figura que recomenda o caminhar no não ser ao “chão do céu”, onde buscava conselhos, Wu Ming (無名 , literalmente, “o sem nome”, Z. Livro 7).
Esta interpretação inédita, para mim, de uma fusão do budismo com o taoísmo parece no não ser, sugerir uma transcendência como a divina do ocidente não secularizado, “aquele que é” e que de fato não pode ter nome, porque é assim pura linguagem no silêncio e no não ser.
Assim retorno as análises anteriores de uma filosofia ocidental presam ao logicismo e de uma lógica binária onde o Ser é e o não-Ser não é, e a filosofia oriental caminha numa direção do não-Ser, assim ausência pode também indicar uma forma de ser transcendendo ao Ser-é.
Vejo certa fusão possível e um novo horizonte num círculo hermenêutico nesta “ausência” oriental: ser, não ser e não-ser transcendente (ausência ou vazio).
HAN, B.-C. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli, Petrópolis, RJ: Vozes, 2024.
DOGEN, Eihei, Shobogenzo Zuimonki, Unterweisungen zum wahren Buddha-Weg. Heidelberg: Kristkeitz Werner, 1997. (citado por B.-C. Han).
ZHOU, Zhuang. Das whare Buch Das wahre Buch vom südlichen Blütenland, Düsserldof: diederichs, 1969. (citado por B.-C. Han).
O ente, o ser e transcender-Ser
O ser não é o que se manifesta direta e imediatamente, ele se manifesta com um ente, porem não é um ente, embora se aproprie dele, assim o Ser tem algo que transcende o ente.
Assim escreve Heidegger: “o ser não somente não pode ser definido, como também nunca se deixa determinar em seu sentido por outra coisa nem como outra coisa. O ser só pode ser determinado a partir do seu sentido como ele mesmo” (Heidegger, 2005), assim ele é autonomia, independente e indefinível.
A essência, na filosofia, refere-se à natureza fundamental e imutável de um objeto, ser ou conceito, é aquilo que define a identidade e as características essenciais de algo.
Foi Etienne Gilson em seu livro O ser e essência que esclarece o debate filosófico desta questão, fazendo uma leitura de O ser e o nada (Jean-Paul Sartre) e do primeiro capítulo da Wisseschaft der Logik (A ciência da lógica, de Hegel) admitindo que esta palavra “ser” em certa tradição idealista havia tentado bani-la do vocabulário filosófico, ao menos no “Ocidente”, em substituição ao ser entra então uma “lógica” científica e o dilema do logicismo.
No Ser e o nada (1943) a filosofia de Sartre se depara com uma negação do Ser que mergulha num nada, ou seja, sou eu mesmo e nunca um Outro, parecia naquele momento da história (ele também escreve sobre A Idade da Razão), que o Outro seria meu inferno e não parte do Ser.
Em um livro Ausência Byung-Chul Han sai de seus ensaios e começa a esboçar uma filosofia do “Oriente” ele vai trabalhar o que considera ofuscado na cultura ocidental, escreve citando Elias Canetti, “que talvez não faça mal acreditar que de fato há um país ‘onde quem diz ´eu´ imediatamente afunda na terra” (Han, 2024, p. 9), e é assim que começa a esboçar a ausência.
Han começa nesta obra já uma nova filosofia além do ser e da essência, “essência é substância. Ela subsiste. É o imutável que resiste à mudança persistindo em si como o mesmo e, por isso, se distingue do outro” (p. 12), denuncia seu caráter bélico: “somente algo que está inteiramente resoluto de si, que mantém a si mesmo com firmeza e habita em si permanentemente, isto é, que tem a interioridade da essência, também pode travar um conflito e um combate com o outro” (p. 13).
Persegue sua visão linguística da filosofia e vai reler Leibniz (citamos no post anterior) em sua Monadologia: “Leibniz leva ao limite, de maneira consequente, a ideia de essência, ou seja, de substância. A “mônada” representa a consequente exacerbação e acabamento da essência” (p. 14), lembro que o monismo de Leibniz é oposto ao dualismo objeto x sujeito, é o uno essencial.
Descreve a alma leibniziana como um “mirror vivant” (espelho vivo) e “é lugar de desejo. O universo é apenas um objeto de sua ‘apetição’. A mônada o percebe porque tem apetite dele.” (p. 15), ou seja, sem desejo não há nada.
Neste sentido começa a introduzir sua crítica a Heidegger (é bom lembrar que seu professor Peter Sloterdijk surge no cenário filosófico criticando Carta ao Humanismo de Heidegger, 1946), mas o faz de maneira mais profunda: “apesar do esforço para deixar para trás o pensamento metafísico, apesar de estar sempre buscando se aproximar do pensamento do Extremo Oriente, Heidegger também permaneceu um filósofo da essência da casa e da habitação” (Han, 2024, p. 16).
Esclarece que está na afirmação de Heidegger: “o amor também consiste em ajudar o outro a aceder a sua “essência”: institua o amor!”, em seguida reivindica Agostinho escrevendo: “talvez a interpretação mais profunda da questão ´o que é o amor resida na sentença … ‘amo volo ut sis”, eu amo, isto é, eu quero que o amado seja o que ele é” e esclarece que ele convoca a essência (Han, 2024, p. 17), mas para Agostinho a essência e transcendência é Deus.
HAN, Byung-Chul. Ausência: sobre a cultura e a filosofia do extremo oriente. Trad. Rafael Zambonelli, Petrópolis, RJ: Vozes, 2024.
A linguística precoce pós Renascimento
Enfatizamos em posts anteriores a Grammaticae Speculativae (do latim Speculum, espelho) através dos modos de significar, de inteligir e de ser, presentes antes em Duns Scotus e depois em Husserl, em sua análise intencional fenomenológica vão ser tratados na tese de habilitação de Heidegger, porém há uma linguística precoce em Leibniz e seus discípulo Christian Wolff.
Leibniz tinha como projeto aquilo que chamava de Characteristica Universalis, uma linguagem formal e universal capaz de expressar conceitos matemáticos, científicos e metafísicos e que Wolff vai descrever como uma ontologia.
Leibniz partia da ideia de “gêneros supremos das coisas”, com categorias mais amplas e fundamentais usadas para descrever o ser e a existência, as classes mais gerais de todas as coisas existem, e assim são base para a organização e compreensão do mundo.
Estes trabalhos podem ser encontrados em análises de Étienne Gilson (Being and Some Philosophers, 1949) chamava estes filósofos de racionalistas “essencialistas” e tem conexão tanto com a querela dos universais como com a viragem linguística atual.
O projeto de Leibniz não foi finalizado e o de Christian Wolff torna-se uma classificação geral, onde classifica os conhecimentos gerais como sendo classes da História, da Filosofia (das coisas e das ações humanas) e da matemática (a quantidade das coisas), cada uma com subdivisões.
O projeto de Duns Scotus permanece e é reencontrado por Heidegger, o ens rationis (ente da razão) como ente pensado está ao lado do ens naturae (ente de natureza) assim o real, físico ou psíquico, sensível ou suprassensível, corpóreo ou incorpóreo é um extra animam, fora da alma (aqui sim pode-se dizer “transcendente” da consciência), mas Husserl critica o psíquico.
Ele estava presente tanto em Scotus como mais modernamente em Franz Brentano, Husserl diferencia o psicologismo, em suas Investigações Lógicas, mostrando a diferença entre o lógico e o real psíquico, “o que é verdadeiro, é absolutamente verdadeiro, é ´em si´ verdadeiro: a verdade é idêntica e só uma, sejam homens ou não, sejam anjos ou deuses que a apreendem no juízo (HUSSERL, 2014, p. 88).
O “em si” deve ter o poder da verdade que pode ser interpretada corretamente, a verdade é, para a fenomenologia, uma unidade que é sempre a mesma, ainda que os atos de juízo sejam muitos e variados, e executados por vários sujeitos, diversos numericamente ou até mesmo especificamente, ela pertence a outro modo de ser que o da consciência.
Scotus, Husserl e Heidegger estão dentro desta “verdade” da consciência e ela é inequívoca.
HEIDEGGER, M. Frühe Schriften -Gesammtausgabe (Primeiros Escritos – Edição Completa) Vol. I. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1978.
HUSSERL, E. Investigações lógicas: Prolegômenos à Lógica Pura. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
SCOTUS, J. D. B. Johannes Duns Scoti Doct. Subtilis Grammaticae Speculativae (Cura et editio P. Fr. Mariani Fernandez Garcia). Ad Claras Acquas (Quaracchi) – Prope Florentiam: Ex Typographia Colleggi S. Bonaventurae, 1902.
Heidegger como leitor de Duns Scotus
Pouco se sabe sobre a origem do pensamento de Heidegger tendo como influencia Duns Scotus, a primeira observação é que sua tese de habilitação (mestrado) foi sobre a doutrina das categorias e da significação de Duns Scotus (Die Kategorien und Bedeutungslehre des Duns Scotus, 1915) que só isto vale uma profunda influência.
Claro a influencia direta foi de seu professor e mestre (de fenomenologia) Edmundo Husserl, porém o próprio Husserl teria estranhado ao ler seu trabalho sobre Ser e tempo, assim é preciso retornar ao Heidegger primeiro, que também sofria influência do idealismo de Kant e que fez o trabalho sobre Duns Scotus.
O interesse pelas Categorias remonta aos estudos de Porfírio e seu tradutor Boécio, a quem devemos a famosa “querela dos universais”, porém Heidegger a retoma a partir de Franz-Brentano.
Sua leitura da Tese de Franz Brentano (1862): “Os múltiplos significados do ente segundo Aristóteles” vem do clássico texto de Aristóteles “As Categorias”, a doutrina da significação que será retomada por Husserl, discípulo de Franz Brentano é assim denotada por Heidegger: “à medida que a doutrina das significações salienta as diferentes formações categoriais a partir de ‘significação em geral’ e põe o fundamento para toda a ulterior elaboração dos problemas lógicos de sentido e de validade” (HEIDEGGER 1978, p. 203).
É importante ressaltar que Heidegger esclareceu mais tarde que seus estudos da “Grammatica Speculativa” de Duns Scotus* era na verdade um texto ampliado de Tomás de Erfurt, Heidegger expõe a teoria do modus significandie sua relação com o modus intelligendie o modus essendi.
Husserl, a luz de suas Investigações Lógicas (publicadas em 1900/1901) e, elaborado no volume I das Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (publicada em 1913), o que Scotus chamava de ens rationis (ente de razão), Husserl chama de sentido noemático, e o que Husserl chama de Noesis é para Scotus a intuição direta.
Retomando Porfírio (já abordamos em posts anteriores), Scotus escreve: “À primeira questão, deve-se dizer que o universal está numa coisa como num sujeito, porque a designa, não o intelecto. Mas o ininteligível está no efetuador e o conhecido no conhecedor.” (Scotus 1998, p. 826), em tradução direta do latim, onde é relacionado o modo objetivo com o subjetivo.
Para Scotus assim o ens rationis não é subjetivo no intelecto, não é algo que existe como uma “afecção da alma”, é algo que está de modo objetivo, como algo representado pelo intelecto, referente a um conteúdo pensado, isto se deve em parte, a ser chamado realista moderado.
Mas sua gramática é bem desenvolvida e não pode ser separada de uma raiz linguística, conforme explica Heidegger uma coisa é a forma linguística de uma expressão, que os medievais chamavam de “vozes” (Heidegger, 1978, p. 290-291) outra coisa o conteúdo da pressão, sua significação e entrelaçamento de juízos.
* Duns Scotus era um monge franciscano, embora professor viveu na pobreza colocando seus bens em comum.
ARISTÓTELES. Da Interpretação (Ed. Bilíngue). São Paulo: UNESP, 2013.
HEIDEGGER, M. Frühe Schriften -Gesammtausgabe (Primeiros Escritos – Edição Completa) Vol. I. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1978.
HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. SP, Aparecida: Ideias & Letras, 2006.
SCOTUS, D. Opera Omnia -editio minor I: Opera Philosophica (a cura di Giovanni Lauriola). Bari: Alberobello, 1998.
A virada linguística e a retomada do Ser
Completando o percurso introdutório das ideias da modernidade, que conforme postamos vem das questões dos universais x particulares (querela medieval), depois nominalismo x realismo (filosofia do final da idade média) e finalmente a questão da razão moderna.
O realismo filosófico da modernidade se viu independente da ontologia da realidade em relação aos esquemas conceituais, de crenças ou mesmo de pontos de vista, tipicamente a verdade é uma questão de correspondência entre nossas crenças e a realidade.
Porém o final do século XIX e início do século XX, tanto através da fenomenologia e da hermenêutica estes conceitos voltam a entrar em xeque, e tanto o ressurgimento da ontologia quanto a viragem linguística (que é possível fazer uma conexão com o nominalismo) são dois fenômenos novos na filosofia onde se questiona a “ilusão do sentido” e a “tarefa interpretativa” pressuposto pela “virada linguística” e pela fenomenologia.
Filósofos como M. Heidegger (1889-1976) e L. Wittgenstein (1889-1951) levando esta virada linguística a últimas consequências questionam temas como o de sujeito (a questão do Ser), verdade (além da lógica formal) e racionalidade através da epoché fenomenologia (colocar entre parêntesis) e da redução eidética, a busca da essência como estrutura invariável de um fenômeno.
Por isto, todo o percurso do pensamento foi necessário, e também sua desestruturação com o idealismo moderno (eidos gregos com visão racionalista), a retomada do Ser o reintegra.
Filósofos como Duns Scotto (1266-1308) são recuperados (realismo moderado) e é possível traçar sua influência desde René Descartes e Leibniz até M. Heidegger, para ele “o ser humano perdeu a intuição direta da essência dos entes” e isto torna sua filosofia bastante atual, vendo presente no ente a intuição direta essência.
Esta essência é interpretada no contexto em que a obra foi escrita e não no contexto que é lida, assim assinalou Paul Ricoeur (2010, p. 24), é a identificação de como o que “outrora foi”, o re-efetuar o que é um des-distanciamento, e não o distanciamento puro supondo-o neutro.
Assim o interprete deve ser visto no seu contexto como um Outro, junto a sua essência.
Somente esvaziando o ego racionalista, recuperando nossa miseri-cordis (humildade de coração) pode o fazer o homem moderno sair da oposição dualista e falsa do realismo moderno, devolvendo-lhe a dignidade de sua cultura e do seu ser, fora da visão idealista.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo/Sein und Zeit. Petrópolis: Vozes. 2012.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
A idade da razão e a ontologia da coisa
O final da idade média significa o renascimento do humanismo grego, porém retoma a ideia da intuição apenas se fundamentando no intelecto da razão, para René Descartes (1596-1650) ela é a única capaz de distinguir o verdadeiro do falso e ela que permite obter o conhecimento do mundo, os 4 pontos de seu método são: evidência, análise, ordem e enumeração.
Esse caminho constituído pela dúvida, a experimentação (nasce o empirismo) e a formulação de leis foram as influências que viriam a predominar os preceitos racionalistas do iluminismo.
Immanuel Kant (1724-1804) faz em sua Crítica da Razão Pura, uma reelaboração das ideias empiristas e racionalistas, e é esse caminho que irá elaborar as doutrinas iluministas dos século XVII e XVIII ocidental, ela afirma “Toda a nossa intuição não é mais do a representação de um fenómeno ; as coisas que nós intuímos não são, em si próprias, como nós as intuímos, nem as relações entre elas são em si próprias tais como nos aparecerem” sendo um ponto central da sua filosofia, em particular no seu Idealismo Transcendental.
Para Kant, mediante esta intuição, os objetos nos são dados e a doutrina que estuda estes dados é a Estética Transcendental, ela ordena e classifica as coisas segundo uma série de categorias não apenas intuídas, mas deduzidas pelo intelecto, não é mais uma transcendência divina, é fruto da razão prática de uma ordem moral.
O mundo do sujeito e suas elaborações fica reduzido a sua “subjetividade”, sua forma como cada indivíduo experiência e constrói o mundo, assim seu “método” em sua crítica da “razão pura” é a capacidade de um sujeito de pensar, julgar e agir sobre o conhecimento dos objetos.
Estabelece então um dualismo entre a objetividade do mundo das coisas e a subjetividade do sujeito que conhece através de uma “transcendência” que é sua experiência sobre o mundo.
O auge do idealismo, principalmente na Alemanha é o idealismo de Hegel e seus discípulos, e após a sua morte se dividem entre os velhos hegelianos presos ao mundo da transcendência e suas contradições dualistas e uma reelaboração do espírito religioso idealista, destacam-se David Frederico Strauss (1808-1874), os irmão Bruno Bauer (1809-1882) e Edgar Bauer (1820- 1886), e Max Stirner (1806-1956).
Entre os jovens hegelianos, segundo a visão de Karl Marx estavam ele e seu companheiro Frederic Engels, fazem uma crítica a Ludwig Feuerbach (1804-1872), para eles o único que teria passado do idealismo Hegel para um materialismo objetivista e assim nasce o marxismo.
Assim escreveu Engels: ele [Feuerbach] “…pulverizou dum golpe a contradição, repondo em seu trono, sem mais delongas o materialismo. A natureza existe independentemente de toda a filosofia e é a base sob a qual crescem e se desenvolvem os homens, que são também, eles próprios, produtos naturais; fora da natureza e dos homens nada existe …” (Engels, 1941).
Porém Feuerbach se apoiava na natureza e pouco na política, e aí nasce a crítica marxista.
A ideia de ser fica reduzida a uma concepção histórica e materialista, relacionada a produção, a economia e a política, já a visão contemplativa, moral e ética do Ser ficam sujeitas à “coisa”.
A ideia que houve um momento da criação do universo fica sujeita a matemática e a física.
Engels, F. Ludwig Feuerbach. Versão espanhola, página 13, Moscou 1941.