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Promoção social e bens públicos
A promoção da vida social e a verdadeira boa administração dos bens públicos (água, energia e saneamento) são os verdadeiros insumos básicos de promoção social da vida humana, porém é o que se vê só em propagandas eleitorais, mostram riquezas que serão acessíveis a todos, mas poucos e só em época de eleição.
Falar da fome é o slogan de muitas eleições, em todo mundo, porém as condições que são sustentáveis para isto pouco ou quase nunca são entendidas, e elas dependem sim de um maior equilíbrio de mercados mundiais e garantias de importação e exportações dos insumos básicos, inclusive para a saúde.
Crises econômicas, basicamaente é um desequilíbrio entre a produção e distribuição de bens essenciais e o consumo, e surgem em setores isolados da economia, não é necessário que haja a escassez de vários bens, é um desiquilíbrio em cascata e os capitais e bolsas são mais reflexos do que origem destas crises, que incluem as guerras e revoluções.
Também fatore naturais podem influenciar (secas, inundações, epidemias ou algum evento de grandes proporções como um terremoto ou uma crise atômica que agora é possível).
Assim os verdadeiros tesouros devem ser aqueles que levam a humanidade a um maior equilíbrio e sustentabilidade, incluindo os cuidados com a natureza, pois dela dependem as produções de alimentos, de energia e até mesmo de bens de consumo menos essenciais.
Os verdadeiros tesouros assim, mesmo que só pensemos nos terrenos esquecendo dos espirituais que nos dão conforto e verdadeira alegria, são aqueles que propiciam um maior entendimento civilizatório, a tolerância entre raças e culturas, e nelas não pode ser relegada a segundo plano as que incluem o plano espiritual.
A cultura cada vez mais crescente do individualismo, do ódio (de diversos tipos), da acumulação de bens como símbolo de felicidade, do consumo até mesmo do corpo e da mente humana levam ao caminho oposto daqueles que querem construir tesouros reais.
Os ilusórios passam, a traça consome, o tempo enferruja ou apodrece, porém o que permanece é essencial e dele depende uma verdadeira ascese espiritual, um bem que vislumbre as gerações futuras, e para os que creem, a eternidade.
Assim a crise atual é na sua base uma crise do pensamento, dos valores éticos e solidários, do respeito mútuo e de uma clareza sobre o que significa construir tesouros verdadeiros.
Na bíblia Jesus pega poucos pães e peixes e distribui, o significado é bem direto e simples o pouco distribuído alimenta a todos, e mal distribuído causa opulência de alguns e fome e miséria a muitos.
Bem comum e sociedade
Engana-se quem imagina que a palavra estejam ligadas só às visões religiosas, socialistas ou aos bens naturais (ar, água e bem estar social), na verdade muitas teorias econômicas se debruçaram sobre o tema, desde filósofos morais até economistas públicos, numa lista que inclui Tomás de Aquino, Nicolau Maquiavel, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Adam Smith, Karl Marx, embora opostos Marx releu Adam Smith, John Stuart Mill numa visão utilitarista até John Maynard Keynes, numa visão de estado intervencionista na economia.
Tomás de Aquino considerava “o bem comum” (bonum commune, escrito em Latim) o objetivo da lei e do governo; John Locke declarava que “a paz, a segurança e o bem público do povo” são os objetivos da sociedade política, e argumentou ainda que “o bem-estar do povo será a lei suprema”; David Hume argumentou que as “convenções sociais” são adotadas e recebem apoio moral em virtude do fato de servirem ao interesse “público” ou “comum”, isto na teoria social que estruturou o estado moderno.
A visão mais avançada, dentro dos moldes do contratualismo, foi a visão defendida por Jean-Jacques Rousseau, a sua teoria não prescinde de dois componentes legitimadores: a ideia de que a participação de todos na soberania do corpo social (igualdade política) deve ser acompanhada de um determinado nível de igualdade substancial, e segundo, um princípio racional de moralidade política, que mantem a vontade geral dos interesses daqueles que são diversos ao verdadeiro interesse comum.
Fosse perseguida esta visão: liberdade, igualdade e fraternidade se comporiam de modo a ajustar-se ao interesse do bem-comum, porém lembra Edgar Morin em seu livro “Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo” (no Brasil editado pela Editora Palas Athena) que o lema da revolução francesa não são complementares, mas precisa de um esforço, de uma ação humana prática e reflexiva para se integrarem e interagir entre si.
Há também uma discussão moderna sobre a ideia que o bem comum nunca é bem gerenciado senão em mãos privadas, a chamada Tragédia dos comuns (Tragedy of Commons) que foi contestado pela economista Elinor Ostrom, primeira mulher Nobel de economia.
Não significa que tudo vai passar para as mãos do estado, ou como diz a teoria keynesiana o estado deve intervir na economia, este sim provoca grandes tragédias e no Brasil os bons economistas tem arrepios lembrando fatos históricos destas intervenções: plano Collor, congelamento de preços, etc. todos deram grandes prejuízos a economia popular.
Mas aqui queremos centralizar os estudos sobre os bens comuns naturais: o meio ambiente.
Tragedy of Communs foi um texto de sucesso inicial de Garrett Hardin, porém ele recorria a tema ambientais para justificar este tipo de “tragédia”: o aumento do consumo dos recursos naturais, e por outro lado a forma como os seres humanos se organizam para extrair esses mesmos recursos, e este é parte da justificativa de mal uso de recursos ambientais.
A aprendizagem que os estudos de Elinor Ostrom nos trouxe é aquela o uso sustentável dos recursos de bem comum, são soluções alternativas ao fatalismo de Hardin, para ela tanto a propriedade estatal como a privatização, estão sujeitas ao fracasso conforme as circunstâncias (Ostrom et al. 1999).
Ostrom et al. Revisiting the Commons: Local Lessons, Global Challenges, Science, Vol. 284. no. 5412, pp. 278 – 28, 1999.
O Justo vê o Outro e é delicado
Paul Ricoeur em seus dois volumes de O Justo irá se dedicar a desvelar esta relação, que envolve relações de poder, iniciando pelo grito que considerado justo: “Isto é injusto!” diz no prefácio de seu livro em referência ao primeiro capítulo do livro de R.J. Lucas “On the Justice” (1955) e reconhece nela uma proclamação de um protesto.
Como em boa parte da obra de Paul Ricoeur é no reconhecimento da face do Outro que devemos entender o príncipio da Justiça, mas faz uma longa análise da obra de John Rawls “Teoria da Justiça” porque não ignora relações de poder e sua influência na visão de justiça atual, até mesmo Habermas o analisou.
A experiência de injustiça é feita por nós próprios como por outros indivíduos e ainda mais por grupos humanos, em especial aqueles que estão em guerra por que consideram graves: o roubo de seus direitos, mas a experiência de injustiça requer uma reflexão profunda, em especial naqueles casos que há violência contra vítimas e a injustiça social.
Ricoeur retoma Aristóteles para analisar a “vida boa”, mas é preciso esclarecer que não é o sentido pejorativo de boa vida de malandros e oportunistas usado no senso comum, na linguagem aristotélica e da Grécia antiga o bom tem um sentido eminentemente ético, ou seja, o bem que se busca é inseparável do bem do outro, assim busca a paz e não o conflito ou a usurpação de bens como Eduardo Galeano classifica todas as guerras, é além de qualquer egoísmo repreensível, que rebaixa o sujeito o impedindo de atingir e ser respeitado no plano moral.
No ensaio verdade é justiça, do Justo 2, Ricoeur se refere à expressão mesma que serve de título ao seu livro O outro como um si-mesmo, onde comenta: “A fórmula de « Si-mesmo como um outro » é neste sentido uma fórmula primitivamente ética, que subordina a reflexividade do si à mediação da alteridade do outro.”
Há uma dimensão deontológica que não é distante da teológica no seu pensamento sobre o Justo, a ética de Ricoeur não se limita ao monologismo inerente ao formalismo kantiano, presente em John Rawls, ao mesmo tempo que se recusa a um apelo ao sentimento, digamos ao “coração” tem uma dimensão de “delicadeza” no respeito ao Outro.
Byung-Chul Han lembra em seu livro “No exame” que apenas uma relação é simétrica (diríamos horizontal, sem a relação de poder): “o respeito” e é esse respeito que nos leva a compreensão do Justo com relação ao Outro.
Assim aquele que pratica a justiça raramente busca holofotes ou brilho próprio, sabe que em essência o que faz é uma relação de respeito ao Outro, diferente e diverso.
Ricœur, P. Le Juste 1. Paris : Éditions Esprit, 1995.
Narrações de uma vida futura
Muitas são as visões e até profecias sobre a policrise contemporânea, ela extrapola o pensamento e chega até a vida social, a política e as guerras em escalada preocupante, mas a pergunta é quais a razões para ter esperança, e ao mesmo tempo aquilo que Edgar Morin chamou de “resistência do espírito” , nos trechos finais de A crise da narração de Byung-Chul, ele critica a política atual: “as narrativas políticas oferecem a perspectiva de uma nova ordem das coisas, pintam mundos possíveis … nós nos arrastamos de uma crise para a outra. A política é reduzida à solução de problemas. Hoje falta-nos justamente narrativas futuras que nos dão esperanças.” (Han, 2023, p. 132).
A solução de problemas pontuais e emergenciais são são a solução da crise, as “obras” podem ser visíveis e trazer popularidade aos governantes, mas deveriam ter tanto a perspectiva de longo prazo quanto noção que são as soluções de curto prazo implantadas com parcimônia que encaminham para respostas duradoras, sustentáveis e eficazes e conclui Byung-Chul: “toda ação que transforma o mundo pressupõe uma narração” (idem) e assim poucos são os casos de respostas imediatas que sejam de fato duradouras e eficientes.
Há uma narração bastante conhecida que uma jovem pergunta ao senhor que plantava tâmaras “por que o senhor perde tempo plantando o que não vai colher “, o senhor virou e respondeu: se todos pensassem como você, ninguém colheria tâmaras.
A ideia que as coisas podem ser rápidas e simples está no storytelling atual: como emagrecer sem esforço, como aprender este ou aquele trabalho complexo em poucas lições, como falar de maneira clara e simples de um problema com solução complexa e muitas outras formulas “mágicas” que pouco tem de imaginação e encantamento, são narrativas que visam venda e consumo de facilidades e de produtos cuja eficácia é questionável.
A primeira ideia então entender soluções a médio e longo prazo, segundo é desconfiar de soluções fáceis que não sejam duradouras e terceiro admitir que um problema complexo
necessita de uma narração mais demorada e de escuta silenciosa de diversas vozes e diversos ouvintes capazes de ouvir com paciência.
A um ditado bíblico que diz que o Reino de Deus é como um grão de mostarda (uma das menores sementes), você a planta, em anos ela cresce e vira uma árvore frondosa e só depende de sua própria natureza e de um tempo de espera.
Diz Byung-Chul Han em seu parágrafo final: “no mundo do storytelling, tudo é reduzido ao consumo. Isso nos cega para narrações, outros modos de vida, outras percepções e realidades” (p. 132-133).
Han, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: ed. Vozes, 2023.
Narrativas, guerras e perigos
Em um dos recentes ensaios de Byung-Chul Han, ao mesmo tempo que o autor lembra Hyppolyte de Villemessant, fundador do jornal francês Fígaro e de Walter Benjamin ensaísta e filósofo que faleceu na década de 40, o autor não deixa de associar a narrativa moderna associada as novas mídias, ao storytelling chamando de storyselling (produto para venda).
Assim ao invés de provocar uma reflexão sobre os grandes problemas da atualidade, entre eles a escalada das guerras, mas o problema é antigo: “o leitor do jornal moderno pula de uma notícia para à outra, em vezes de deixar seu olhar vaguear à distância, e demorar-se ali. O olhar longo, lento e demorado se perdeu” (Han, 2023, p. 17), ou seja, não há reflexão.
Assim trata-se de criar uma narrativa favorável a esta ou aquela visão ideológica, pouco importa a lógica e a humanidade, mesmo diante de tragédias estamos mais ocupados (não todos felizmente) em criar uma narrativa para justificar determinada posição do que para defender um princípio humanitário, há esta ou aquela guerra, mas todas matam inocentes, todas como disse Eduardo Galeano escondem desejos de poder e de exploração sobre a nação a ser dominada, mas grandes impérios sucumbiram apesar de toda a prepotência e genocídios.
O recrudescimento da guerra da Ucrânia, as ameaças ao último reduto de refugiados palestinos, as constantes ameaças a Taiwan, além de incursões na África e agora até a América do Sul, a Venezuela volta a ameaçar a Guiana com intenso movimento de tropas e as provocações entre os EUA e o Irã incendiam espíritos bélicos e até pessoas boas, mas inocentes, embarcam nestas narrativas, não há outro interesse nas guerras: saques, mortes de inocentes e desumanidades.
Os encontros entre nações no Brasil, na Europa e as tentativas de sensibilizar governos para os perigos desta escalada bélica não faltam no mundo todo, porém esbarram em narrativas parciais e partidárias, poucos são as mentes que se sensibilizam para o perigo grave e civilizatório desta escalada, em todo mundo o armamento é a única resposta que parece tocar os governantes, e assim crescem as narrativas de “atos heroicos” de fatos bélicos em todo mundo que deviam envergonham aqueles que invocam princípios humanitários, sendo a ONU as guerras e problemas ambientais levaram a fome mais de 700 milhões de pessoas.
Até mesmo para uma narração bíblica ou histórica, onde pretende-se construir um “todo” narrativo, há uma chamada para o humanitarismo, ao Caim matar o irmão Abel, a pergunta divina é “onde está teu irmão?” (Genesis 4,9) e a narração sugerida por Byung-Chul Han é a do rei egípcio Psammenit que foi capturado pelo rei persa Cambises, e após a derrota faz o rei se humilhar ao ver sua filha transformada em escrava e o filho sendo levado para ser executado (Han, pg. 21), porém o rei egípcio só sentirá ao ver um servo idoso e frágil entre os prisioneiros e “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22), assim a narração, diz Han, “dispensa qualquer explicação” (Han, pg. 22).
Se formos capazes de reflexões longas, lentas e demoradas não é difícil entender o perigo da escalada das guerras, das pessoas simples como o serviço de Psammenit que sofrem e morrem por questões que mal compreendem direito, e que as narrativas não explicam, apenas tentam justificar o injustificável: a morte, a pilhéria e a mentira.
Como afirmar o filósofo Morin, é preciso uma resistência do espírito, estamos aos poucos perdendo o sentido de amor, esperança e solidariedade e se lermos e investigarmos as notícias e fatos das guerras veremos que não houve nada nelas que não fossem grandes genocídios, roubos e situações de fome e miséria, é preciso resistir ao ódio e a violência.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Renuncia, economia e alegria
Byung-Chul teoriza que apesar da diferença entre Derridá e Heidegger (veja nosso post anterior) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renuncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renuncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.
Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar mata-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).
Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.
Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.
Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.
Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.
A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Pluralidade, polifonia e tonalidade
Embora Byung Chul Han em sua leitura de Heidegger e sua tonalidade afetiva, descreva apenas de passagem a democracia plural, ao comentar a “polifonia” que Derrida opondo-se à “totalidade não exclui a tonalidade. A justaposição de notas seria equivalente à monotonia de um coração perturbado, que certamente seria distinto do coração atonal” (Han, 2023, pg. 16).
Para desenvolver melhor a questão do estado e de sua pluralidade, aproxima Heidegger da “arte de viver … limitada onde o mundo começa a se povoar com os corações dos outros, onde não nos encontramos mais na proximidade do estético” (pag. 17).
Vai explorar o conflito dos corações de Hegel que pretendia resolver dialeticamente e não aparece em Heidegger (pg. 18), sua “poética” não se identifica “à política do coração” (idem).
Após o fracasso do sujeito do prazer faustiano (Hegel cita Fausto de Goethe), Hegel ao opor o particular com o universal não se reencontra na “ordem universal”, esta abertura imediata do coração para o universal, a universalização do coração faz que a autoconsciência “enlouqueça” e causa uma colisão frontal entre o universal e o particular que fende a consciência (pg. 18).
Gerar esta “singularidade da consciência, que quer imediatamente universal” resultam em esquizofrenia (pgs. 18-19), é um trecho fundamental de Byung-Chul Han capaz de explicar até mesmo as grandes guerras e o momento bélico mundial.
Ela mostra o que acontece com os corações com o “pulsar do coração” para o universal, que se transforma em “fúria de uma presunção desvairada”, postula “o desvario da ordem mundial” (pg. 19), o coração efetivado é repressivo, se efetiva ao reprimir outros corações.
A circuncisão do coração do particular por parte do “espirito” (reivindicado por Hegel), suprassume o particular em favor do universal, “saber a lei do coração como lei de todos corações, e a consciência do Si como a ordem universal reconhecida” (Han citando Hegel, pg. 20).
Heidegger opõe a lei da casa (oikos), do fogo doméstico para além da economia dialética, ela “não deve pisar no palco dos discursos” (Han, pg. 21), esta “disputa sem guerra” (na visão de Hegel) não tem nenhuma semelhança familiar com o conflito dos discursos (pg. 21).
“O coração de Hegel, que na terceira parte da Enciclopédia se torna a sede das sensações, carece de toda objetividade e universalidade” (Han, pg. 22), nela o “coração cego de Hegel só sabe expressar algo “singularizado, contingente, unilateralmente subjetivo” … “é uma reação meramente subjetiva a sensação externa” (pg. 22), e Han dá o antídoto, chamando-o de dom.
O Ser com dom é o “singular por excelência, que, na sua singularidade, é unicamente o uno unicamente unificador, antes de todo o número”, a impossibilidade do número anula a economia da troca (pg. 25).
O que deve ser retomado deve ser dado como um dom, é preciso manter este dom afastado da economia da troca, soltá-lo do circulo econômico da troca”, isto é princípio do afetivo.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023
Tragédia natural no sul do Brasil
Acompanhamos, geralmente nas segundas feiras a grave crise civilizatória que nada mais é que uma guerra mitigada entre as grandes potências, sempre com um risco de tornarem-se uma guerra total, três grandes impérios estão ali em conflito: o americano, o Chinês e o Russo.
Porém a tragédia natural com intensas chuvas no sul do Brasil nos lança um alerta solidário.
Os dados até a tarde do dia de ontem (05/05) são tristes e alarmantes: 334 municípios afetados, 16609 pessoas em abrigos, quase 90 mil desalojados, 780.725 pessoas afetadas, 155 feridos, 103 desaparecidos e 75 mortos confirmados (mais 6 investigados se sob ação das chuvas), além disto em 839 mil imóveis não há água e 421 mil residências estão sem luz, há 113 bloqueios em estradas.
Empresários, diversas organizações humanitárias, e a maioria dos órgãos de comunicação estão em campanhas de fundos e socorro aquela população, também o governador, os prefeitos e políticos do governo federal estão empenhados em mobilizar fundos para o socorro, houve quem comparasse esta ajuda emergencial como típica de uma guerra.
Os eventos sociais e esportivos foram adiados, embora tenha havido shows milionários no país onde sequer tiveram a sensibilidade de referir-se ao desastre natural (não darei publicidade), mas o povo brasileiro é solidário, se comove, chora junto com os gaúchos e se mobiliza.
Ainda há chuva nestes dias e os rios continuam subindo, a tragédia pode ser ainda maior, e depois o processo de reconstrução não será simples, temos uma chance de sermos mais unidos e solidários e não viver uma eterna polarização de ódios e incompreensões.
Felizmente os órgãos do país estão solidários e espero que permaneçam, seria bom também talvez uma nota de setores do judiciário, por exemplo, a OAB ou tribunais estaduais.
Despertar o espírito solidário neste momento pode representar uma boa tomada de consciência sobre as nossas dívidas com a sociedade e com o povo que está sempre em dificuldades, quem vive perto da população humilde percebe um momento grave.
Todo apoio humanitário ao povo gaúcho, serão confortados se sentirem todo nosso apoio.
O homem-mundo e o provinciano
É possível que alguém tenha um sentimento capaz de abraçar a humanidade em suas diferenças e contradições, se for capaz de abraçar as enfermidades e feridas do outro.
Aquele que é capaz de entender o mundo como um todo, entendendo a complexidade das culturas, dos sentimentos e dos sistemas culturais diferentes, é capaz de abraçar e se solidarizar com as dores da humanidade, este é um homem-mundo.
O provinciano não é capaz de ver além de sua aldeia, pode-se até elogiar o espírito de aparente paz e deleite daquele que vive em um mundo pequeno, ou numa bolha, porém é dali que partem os piores preconceitos, as piores xenofobias e a incapacidade de ver além.
Se Honoré de Balzac dizia: na província se vive em público, agora na aldeia global todos vivemos em público, cada cidadão é portador de uma câmera que pode registrar tudo.
Para ser no mundo um sinal de esperança, em um tempo cada vez mais conflituoso é preciso ir além dos próprios conceitos (que são pré-conceitos) e entender que a lógica da vida social vai se mudando desde que passamos a viver numa aldeia global, a cultura entre pela TV, pelo rádio e pelas mídias sociais, e não há como retroceder, vieram para ficar.
Os pecados e incompreensões que elas deram vazão não são novos, apenas deu-se agora uma visibilidade maior e nos chocamos com uma sociedade com dificuldades de ver o outro com respeito e compreensão.
Aqueles que querem liberdade, apressam em limitá-las, aqueles que proclamam o amor, não querem o mesmo amor fora de suas bolhas, não resolvemos as nossas dificuldades e feridas e ao mesmo tempo aumentamos o clima de incompreensão na humanidade.
Os grandes impérios contemporâneos trabalham culturalmente estas dificuldades, ódio ao diferente, intolerância a cultua do outro, e assim alimentamos no microcosmo a política de um belicismo crescente e que ameaça tomar toda humanidade.
Nunca foi tão urgente o amai-vos uns aos outros, há até os que o proclamam, mas para sua pequena aldeia ou sua bolha provinciana.
Policrise e esperança
Rumores de confronto Rússia e Otan se agravaram nas últimas horas, entretanto, a esperança de paz e a resistência do Espírito, como protagonizava Edgar Morin, permanecem de pé.
Além da policrise de Morin (assim como poli é múltiplo e também é polis de cidade, Krisis tem também o significa de poder de decisão) o professor Adam Tooze (artigo do Financial Times), de história da Universidade de Yale (EUA) ampliou e atualizou: pandemias, secas, inundações, mega tempestades, incêndios florestais, guerra na Ucrânia (e agora na faixa de Gaza0, preços de energia e alimentos, etc.
No seu raciocínio, sem apontar diretamente o professor “descobre” a complexidade e uma nova visão transdisciplinar do “todo”: “Um problema se torna uma crise quando desafia nossa capacidade de lidar e, assim, ameaça nossa identidade. Numa multiplicidade de crises, os choques são diferenciados, mas interagem de modo que o todo é mais ambíguo do que a soma das partes”, afirma no artigo (na imagem o quadro de Tsherin Sherpa (Nepal), Espíritos Perdidos, 2014.).
Assim sentenciava Morin: “Ligado ao domínio do cálculo num mundo cada vez mais tecnocrático, o progresso dos conhecimentos é incapaz de conceber a complexidade da realidade e em particular das realidades humanas. O resultado é um retorno aos dogmatismos e aos fanatismos, e uma crise da moral enquanto se espalham os ódios e as idolatrias” (Jornal La Repubblica, entrevista), entretanto além da policrise há sinais de esperança.
Enquanto a Resistência do Espírito invoca uma compreensão da gravidade e das questões que envolvem a crise atual, a Esperança (aqui maiúscula) significa este Espírito colocado em ação e assim a obtenção de uma espiritualidade contracorrente que invoque valores de mudança.
Aqueles que mergulham de diversas formas nesta Esperança, estão sempre dispostos a abraçar os problemas que todos fogem, a abraçar os fragmentos de um mundo polarizado, e a lembrar o que une ao contrário daquilo que desune e polariza, felizmente há estes espíritos e chamaria de Espíritos da Resistência através da Esperança.
Ide pelo Mundo e Levai a Boa Nova, não pode ser só uma chave bíblica, é a Esperança Viva.