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Porque o mal se espalhou
É verdade que o mal é ausência do bem, assim interpretou Agostinho de Hipona sobre a essência do Ser que é o bem e sua falta como a produz, em nossos posts anteriores também discorremos sobre as virtudes cardeais afirmando que além da Justiça, que é relativamente pensada nos dias atuais, existe a prudência e a sabedoria que deveriam acompanha-las.
As virtudes teologais: fé, esperança e Amor devem acompanhá-las, porém também elas foram comprometidas pela ausência de sabedoria, mais do que desinformação e pós- verdade, é tempo de desconhecimento e ignorância, até mesmo escolar, primária.
Também o poder, através de valores estruturais e formas autoritárias de exercê-lo, contribui para a intolerância e o desprezo pelo conhecimento e valores morais, isto levado a um limite social e estrutural chegamos a guerra.
A prudência e a tolerância entram então não como virtudes secundárias, mas essenciais.
Não há esperança, nem amor e nem fé, onde a intolerância e a exclusão fazem parte do dia-a-dia e infelizmente este discurso está até mesmo na boca daquele que falam do Amor, do respeito ao Outro e da inclusão.
Isto acontece porque as relações são dualistas e não trinitárias, além de mim e o Outro deveria haver um terceiro incluído, na física quântica isto já foi descoberto como um princípio até mesmo da matéria, portanto não é apenas divino, é a própria realidade.
Assim em diversas épocas de nossa história foi por meio da violência que impérios e ditadores impuseram suas vontades e ideologias, não sem o consentimento de boa parte da população, por isso lembramos da má educação, seja através de campanhas de propaganda, seja pela própria escolarização empobrecida e malformada, as duas questões estão ligadas.
É preciso por isto estar atentos a gestão em todos os níveis, desde as nossas casas, bairros e condomínios até as estruturas de poder, pequenas ações ilegítimas, educação para empatia, convivência, limpeza e até mesmo o lazer devem ser observadas e orientadas pelos gestores e órgãos públicos no sentido de preservar o espaço comum e os bens públicos.
O zelo pela honestidade, pela transparência, pelo diálogo respeitoso entre opiniões que não são necessariamente opostos, mas diferentes ainda que em direções completamente divergentes não deve ser motivo de ódio e violência, é sempre possível o diálogo.
O mal precisa da polarização, da radicalização dualista (na negação, há um sentido bom que é ir a raiz de um problema), porém a pura desavença como forma de justificar e propagar a violência é só uma forma arrogante de poder.
As reais possibilidades da paz
Um balanço de 2024 sobre a guerra é desastroso, o conflito que eclodiu em Gaza, com as forças de Israel invadindo aquele território e realizando ações que são condenáveis pelos atos de crueldade e dificuldades de acesso dos organismos internacionais de socorro, o aumento do conflito no leste Europeu, agora com também agressões em território russo e as ameaças da China sobre Taiwan traçam um quadro muito triste e preocupante.
O governo eleito americano que toma posse agora em janeiro, Donald Trump prometeu que poria um fim imediato na guerra, o problema é que as 4 províncias dominadas pela Rússia pela força: Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, não estão em questão, embora a Rússia diga que é possível “alguns ajustes de fronteira”, e exige a Ucrânia fora da OTAN.
Assim a Rússia ganharia 18% do território Ucrânia, mas teme que um acordo de “cessar fogo” seja apenas para a Ucrânia tomar folego e se rearmar, a continuar na atual escalada um maior envolvimento das nações europeias pode tonar o conflito fora dos limites de negociações.
O outro polo preocupante é a escalada da guerra no Oriente Médio, Israel não recua de suas pretensões em eliminar seus inimigos na região, porém o faz fora dos limites humanitários e daquilo que é considerado abominável, mesmo sabendo que a guerra já um desastre humanitário, o bombardeio de escolas, hospitais, o último que funcionava precariamente parece também fora de operação em Gaza, ultrapassa o limite e torna os responsáveis acusados de crime de guerra, claro o ataque terrorista de 8 de outubro com reféns de Israel ultrapassou também qualquer limite do razoável.
Há motivos para se cogitar a paz, sim pois isto gera uma tensão mundial, enfraquece a economia e atinge os povos mais vulneráveis trazendo mais miséria e fome, a rigor não deve interessar a ninguém, mas há um raciocínio trágico das guerras que é saber “se o meu inimigo perdeu mais”, já que todos perdem, e os mais frágeis são os primeiros a serem atingidos.
O mundo se encontra polarizado, até mesmo aqueles que deveriam ser os mais ardentes defensores da paz se entregaram ao jogo bipolar do ódio ao inimigo, sem possibilidade de diálogo e de entender um ponto de vista diferente, todos dizem “isto não é razoável”.
Assim buscamos freneticamente nas mídias sociais aqueles julgamentos e ódios que nos favorecem, sem perceber que nos tornamos influenciados por esta bipolaridade e este clima hostil entre povos, posições políticas e um diálogo racional sobre suas posições e ideias.
Há sempre esperança de uma renovação no processo civilizatório, no momento parece encalhado e retrocedendo a níveis absurdos educação, saúde, cultual, político e até mesmo espiritual, que se tornou um negócio e sem nenhum exercício de analisar sequer o patrimônio sobre o qual a maioria das religiões foram construídas: solidariedade, socorro aos vulneráveis, maior equilíbrio social e ambientes de valores e virtudes verdadeiramente espirituais.
A virtude da fortaleza: a ética moral da coragem
Desde a Grécia antiga a coragem está associada ao heroísmo violento e a capacidade de enfrentar de modo bélico o medo, porém não é esta virtude moral chamada fortaleza que é vista como uma das virtudes cardeais.
Já citamos que na filosofia, a inglesa Philippa Foot tratou deste aspecto da ética moral e por isto sua ética ficou conhecida como ética das virtudes.
Enfrentar os perigos e até mesmo provações (e provocações) significa estar alinhado as outras duas virtudes cardeais: a prudência e a sabedoria, também a justiça, mas aqui cabe uma outra observação: a justiça humana é impiedosa e legalista, não contempla a misericórdia e o perdão.
A coragem acompanhada da prudência é aquela capacidade de passar obstáculos da vida com vista a superá-los de modo a não reproduzir o ódio, a violência e a injustiça, assim deve produzir e ser conduzida pela sabedoria, que não é apenas cultura e boa leitura.
Em tempos sombrios ela é particularmente importante porque é preciso coragem para passar por situações difíceis e não perder a serenidade, a capacidade de ajudar os outros a que passam pela mesma ou até pior situação devido ao ambiente hostil.
Assim encontramos pessoas, verdadeiros ícones desta virtude da coragem que salvaram judeus das perseguições (lembro aqui do filme a lista de Schindler), muitos personagens que foram verdadeiras fortalezas diante das perseguições e dificuldades em meio a guerra, os membros das equipes da Cruz Vermelha e também o Crescente Vermelho, versão islâmica do socorro em meio a catástrofes e guerras.
Eles levam esperança em meio ao caos, assim não deixam de contemplar também esta virtude teologal, e em muitos casos devolvem a fé e caridade, completando o trio teologal.
Assim vão de encontro ao que todos procuram rejeitar a dor física e moral que sofrem aqueles que se veem em meio a guerras e catástrofes, já postamos aqui sobre a importância desta hermenêutica da dor, por exemplo, quando postamos sobre “A sociedade paliativa: a dor hoje” (Byung-Chul Han).
Neste livro Byung-Chul cita a frase de Ernst Jünger: “Dize tua relação com a dor, e te direi quem és!” e que podemos ser vista como social e dizer o qual nossa relação com a sociedade como um todo, é aqui onde se encontra o maior fundamento da virtude da fortaleza (coragem).
Reformar o pensamento e seu viático
No início do capítulo 5 de Cabeça bem-feita de Edgar Morin, ele faz uma epígrafe de Edita de Eurípedes: “Os deuses nos inventam muitas surpresas: o esperado não acontece, e um deus abre caminho ao inesperado” (Morin, 2003, p. 61), só sabe trabalhar com o inesperado quem medita e tem a parte espiritual bem desenvolvida.
Ele nos dá três viáticos neste capítulo, o primeiro é “Preparar-se para nosso mundo incerto é o contrário de se resignar a um ceticismo generalizado”, é preciso resistir ao que é anti-humano não como um ato de coragem, mas na única certeza que é o erro do caminho que nossas convicções equivocadas podem nos levar (na foto o viático de Leonardo Alenza, 1840).
O segundo viático é a estratégia, nos perdemos no caminho daquilo que é bom e que desejamos.
“A estratégia opõe-se ao programa, ainda que possa comportar elementos programados. O programa é a determinação a priori de uma seqüência de ações tendo em vista um objetivo. O programa é eficaz, em condições externas estáveis, que possam ser determinadas com segurança” (Morin, 2003, p. 62) assim precisamos pensar na estratégia exercendo-a, se queremos mais humanidade é preciso ser humano, se queremos a paz devemos praticá-la.
O terceiro viático é o desafio, geralmente procuramos nossa zona de conforto ou segurança, mas nem conforto nem segurança estão lá, em geral exigem um desafio para conquista-las, diz Morin: “Uma estratégia traz em si a consciência da incerteza que vai enfrentar e, por isso mesmo, encerra uma aposta. Deve estar plenamente consciente da aposta, de modo a não cair em uma falsa certeza. Foi a falsa certeza que sempre cegou os generais, os políticos, os empresários, e os levou ao desastre” (Morin, 2003, p. 62) deste é o desastre da falsa paz de hoje.
O que pode nos levar a um futuro ainda melhor, quem responde não é exatamente um cristão, e sim alguém de origem judaica, mas que vive um laicismo: “A aposta é a integração da incerteza à fé ou à esperança. A aposta não está limitada aos jogos de azar ou aos empreendimentos perigosos” (Morin, 2003, p. 62), se trabalhamos para a paz e para o processo correto do que é civilizatório temos certeza de contar com alguma ajuda extra, porque não: divina.
MORIN, E.
MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. tradução Eloá Jacobina. – 8a ed. -Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
Se a noite da humanidade vier
O que fazer se a crise civilizatória chegar aos limites humanos e continuar a se humanizar? abordamos em posts anterior a tomada de consciência que Edgar Morin trás no capítulo 4 do livro Terra-Pátria sobre as “nossas finalidades terrestres”
É nele que o autor trabalha também o aparente paradoxo: conversar/revolucionar, trata- se de entender a mudança sem abandonar os principais princípios humanitários: “A tomada de consciência de nossas raízes terrestres e do nosso destino planetário é uma condição necessária para realizar a humanidade e civilizar a Terra” (Morin, 2003, p. 99) pois o adjetivo “revolucionário” tornou-se reacionário e muito manchado de barbárie” (idem).
O autor acrescenta mais a frente: “Aqui aparece um outro problema: há um poder das ideias sobre a realidade, o que suporia uma realidade e uma força das ideias? Conforme já tivemos ocasião de mostrar, as ideias e os mitos adquirem realidade, impõem-se nos espíritos e podem inclusive impor-se na realidade histórica, violentá-la, desviá-la” (Morin, 2003, p. 126) e isto é muito relevante no contexto atual.
Isto é complementado por Morin ao salientar que “conservar/revolucionar: é o paradoxo progredir/resistir”, onde o resistir é “estar na defensiva em todas as frentes contra os retornos e manifestações da grande barbárie, escrito antes do novo milênio, isto é muito atual em face a possibilidade de guerra.
Escreveu Morin naquela época, o que hoje é a realização de uma profecia: “A primavera dos povos de 1989-1990 sofreu um regelo. Todos os seus germes de liberdade estão em via de destruição. A grande barbárie faz um grande retorno” (Morin, 2003, p.100).
Resistir agora então significa não abandonar valores humanitários, também na atualidade Morin falou sobre “resistência do espírito” que é conservar em nós os mais caros valores da vida, do humanismo e da crença em valores verdadeiramente “divinos”.
Não acreditar que fomos feitos para a guerra, para a barbárie e temos um destino cruel, embora o panorama mundial seja sombrio, é preciso resistir com a armadura da paz.
MORIN, Edgar & Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria. Trad. Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
A crise do pensamento simplista e o complexo
A epistemologia da complexidade é um ramo da epistemologia que estuda os sistemas complexos e fenômenos emergentes associados, em alguns ambientes como na mecânica e na física construíram uma tendência a aprofundar o que até então eram apenas chamados de sistemas dinâmicos, e agora sistemas não lineares ou caóticos.
O processo de industrialização serviu de grande suporte para um desenvolvimento até então impensáveis das ciências naturais, depois a geração de tecnologias: o vapor e a combustão, depois a eletricidade, e tudo parecia mover-se numa engrenagem perfeita.
Tudo se caracterizou até um certo momento em um movimento que Edgar Morin chamou de disjuntor-e-redutor, tanto as ciências como nas artes a ideia de reduzir o que é complexo ao simples (por exemplo, buscar na menor parte da física até então, os átomos) uma realidade que aos poucos mostrou-se complexas (sub-partículas em dimensões cada vez mais microscópicas até chegar ao universo quântico).
As particularidades da física subatômica introduziram incertezas e mostrou os limites do reducionismo que estava levando a uma visão distorcida da realidade, mostrou suas incertezas e ingenuidades, a pretensão de captar uma realidade objetiva que poderia ser independente do observador, quanto o próprio observador faz parte do fenômeno.
Assim esta lógica redutora-reducionista da física ampliou-se para o universo social e pessoal, e mecanismos aparentemente simples poderiam resolver problemas que são complexos, e toda a problematização decorrente desta realidade não foi observada.
O pensamento complexo não se limita ao mundo acadêmico, ele transborda e está presente em diversos setores da sociedade, assim como o simplismo de raciocínios que não contemplam a complexidade e a diversidade da vida social.
Também no mundo espiritual (ou subjetivo como poderia pensar quando vemos os objetos foram da realidade do sujeito) este equívoco nos conduz a uma porta larga, onde os valores básicos do humanismo podem ser ignorados e a vida fragmentada.
Assim a porta por onde passam lógica simplistas e triviais conduzem a grandes e problemáticos enganos, enquanto a complexidade de um caminho socialmente justo e verdadeiro não se reduz às formas ideológicas simplistas e pouco humanas.
Passar pela porta estreita nunca será um caminho fácil, porém o único que pode conduzir a humanidade a um futuro sustentável e realmente humano, de paz, de fraternidade e de valores sociais de respeito a dignidade humana.
A identidade e a família humana
Temos identidades e culturas regionais, ligados as nações, o fato que existem nacionalidades não deveria ser contrário a existência e visão de uma família humana, não apenas pela nossa identidade genética e animal, mas principalmente pela nossa vida e relações em comum.
Edgar Morin, em seu livro Terra-Pátria (Editora Sulina, 2003) traça as origens de uma visão do homem ligado a natureza (e por consequência ao Cosmos), que irá se desenrolar nas visões de Bacon, Descartes, Buffon e Marx (Morin, 2003, p. 54) que fizeram do homem “um ser quase sobrenatural que progressivamente assume o lugar vazio de Deus” (idem), porém isto disparou uma visão arrogante e autoritária perante o Cosmos e o Outro.
Como isto regredimos em nossa visão planetária: “A identidade do homem, ou seja, sua unidade/diversidade complexa, foi ocultada e traída, no cerne mesmo da era planetária, pelo desenvolvimento especializado/compartimentado das ciências” (pg. 61), uma visão xenófoba de nacionalismo e de identidade agora explode inibindo uma visão da família humana.
Escreve Morin: “A nação e a ideologia edificaram novas barreiras, suscitaram novos ódios. Deixam de ser humanos o islamita, o capitalista, o comunista, o fascista. “ (pg. 60), note-se que isto foi escrito 1993 (a primeira edição original em francês).
Nossa visão de homem se reduziu, aponta Morin: “A filosofia, encerrada em suas abstrações superiores, só pôde se comunicar com o humano em experiências e tensões existenciais como as de Pascal, Kierkegaard, Heidegger, sem, no entanto, jamais poder ligar a experiência da subjetividade a um saber antropológico” (idem, pg. 61), a visão destes autores parece etérea.
Isto ocorreu também nas ciências humanitárias: “A antropologia, ciência muldimensional (articulando dentro dela o biológico, o sociológico, o económico, o histórico, o psicológico) que revelaria a unidade/diversidade complexa do homem, não poderá edificar-se de fato a não ser correlativamente à reunião das disciplinas … “ (pg. 62), e assim o fragmento humano se traduz em pensamento fragmentado.
É esta fragmentação traduzida em guerra e ódio que exige um desocultar do Ser, reclamado por Heidegger e pensadores que o seguiram (Hans-Georg Gadamer, Hannah Arendt e outros), e que está pensado também em Morin: “Donde a necessidade primordial de desocultar, revelar, na e através da sua diversidade, a unidade da espécie, a identidade humana, os universais antropológicos” (p. 60), des-velar (mais que re-velar, que é velar de novo) como diz a ontologia moderna.
A família humana pode ser desocultada em seus interesses comuns: a ecologia, o equilíbrio econômico e principalmente a paz.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003
Ontologia, idealismo e a verdade
O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser” (questão central de Heidegger), ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).
Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, pg 336).
A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).
Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.
Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).
“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).
“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).
Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Noética, Ontologia e a guerra
Para Platão noésis é superior à dianóia, que é discursiva e aparentemente lógica, enquanto a primeira é uma elevada atividade mental possível, habitando a esfera do Bem e da Harmonia.
É uma possibilidade de acesso ao mundo “divino” (o sumo bem de Platão que está no eidos), é transcendente, absoluto, além do raciocínio humano comum, os filósofos a perseguem sem ao menos tocar na questão da crença de um Deus superior onde a noésis “habita”, não é Ser, mas atitude mental.
Já a dianóia enquanto habita um raciocínio lógico, matemático e técnico fica preso ao que a mente consegue captar do mundo terreno, mesmo admitindo equívocos, verdades não absolutas e as vezes confusas, elas habitam o cotidiano do humano, também desligado do Ser.
Há uma linha fundacional que vai da fenomenologia à antropotécnica de Peter Sloterdijk e Byung-Chul Han, envolvendo essencialmente a questão do Ser, a ligação entre a noesis e o noema, fragilizada pelo bombardeio de narrativas que o universo digital proporcionou, mas o esquecimento do ser, a ausência de interioridade levaram àquilo que Chul-Han chama de “desauritização” e a “pura facticidade” dita assim:
“O desencantamento do mundo se expressa como desauritização. A aura é o brilho que eleva o mundo para além de sua pura facticidade, o véu misterioso que envolve as coisas” (Han, 2023, p. 80).
Não se trata de negar a facticidade, mas de não permitir sua noesis, isto é a compreensão inicial na mente em toda sua aura, ela faz uma “seleção narrativa”, no dizer de Byung-Chul (falando sobre a fotografia): “Ela estende ou encurta a distância temporal. Ela pula anos ou década. A narratividade se opõe à facticidade cronológica” (Han, 2023, p. 81).]
São estas as mentiras das guerras, são de todas as guerras porque escondem seus reais motivos, mas particularmente das guerras atuais porque usam narrativas para mudar o que é evidente se lido na facticidade cronológica, em exemplo bem atual, o bombardeio na semana passada de um hospital de idosos na Ucrânia (foto) e o bombardeio de bases da ONU no Líbano, isto tem correlação com a crueldade e a ausência de qualquer narração que as justifique.
A paz está nos corações e autoridades que mantem a aura da esperança, o espírito solidário.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Enfrentar de fato a questão da miséria
Basta distribuir a renda ou apenas dar um prato de comida, resolve a questão emergencial, mas mantém a pobreza latente e não propicia a ascensão social e estabilidade econômica.
A questão da miséria é um problema complexo embora sua consequência seja facilmente vista, porém, a elevação da qualidade de vida e a sobrevivência digna de milhões de pessoas deve ser encarada de modo além do emergencial, ainda que este seja necessário.
Entre as causas poucas vezes analisadas da pobreza estão a corrupção, as guerras, a infraestrutura precária e a dificuldade em gerar empregos e cria-los com salários dignos, assim a informalidade e até mesmo os crimes e mercados ilegais (até de drogas) são consequências.
As consequências são conhecidas: fome, desemprego, falta de moradia digna, ausência de saneamento básico, violência, propagação de doenças epidêmicas, discriminação e vulnerabilidade social.
Combater um dos aspectos ignorando outros, por exemplo, a questão do saneamento básico é crucial e não é facilmente visível para muitos gestores públicos que veem apenas aspectos que dão mais visibilidade e ajudam a melhorar a visão dos gestores, que no Brasil é sempre crítica.
A questão da distribuição de renda é um aspecto fundamental, mas não se trata de resolver só o emergencial, criar possibilidades de mobilidade social entre os níveis de renda mais baixos é um fator essencial para erradicação da pobreza, assim como promover aspectos de escolaridade e criação de empregos.
O problema global a ser enfrentado é a emigração, não só a fome e a pobreza, mas principalmente as guerras e perseguições a determinados grupos étnicos é um fator muito grave e pode escalar em uma guerra mundial, era visível isto no final das duas grandes guerras.
Programas públicos claros não apenas que resolva o problema emergencial, que é o visível para a população, mas de médio e longo prazo são essenciais, a pouca mobilidade social e a dificuldade das camadas de mais baixa renda de acesso a bens e serviços públicos é ainda um fator crucial em muitos países do mundo, e a miséria extrema persiste, apesar de programas e política, onde elas fracassaram foram exatamente onde a propaganda era mais forte e as medida menos efetivas.
Mudar a retórica do assistencialismo e da distribuição das sobras sociais é fundamental, é preciso devolver a dignidade a toda pessoa humana, superando não só o preconceito, mas principalmente o modo de encarar estas pessoas que tem a mesma dignidade das outras.