Arquivo para outubro, 2020
Política e religião
Hannah Arendt vai argumentar contra a confusão entre política e religião, e esclarece a diferença entre um local de reunião (sendo pública) com diferenças do que chama de aparência e manifestação. Diz a autora:
“A política cristã sempre esteve diante da dupla tarefa de, por um lado, assegurar-se através da influência sobre a política secular, de que o local de reunião não político dos fiéis esteja protegido de fora, e, por outro lado, impedir que um local de reunião se torne um espaço de aparição, e com isso que a Igreja se torne um poder secular-mundano, entre outros. Daí, verificou-se que a vinculação com o mundo correspondente a tudo espacial e o faz aparecer e parecer, é muito mais difícil de se combater do que a reivindicação de poder do secular, que se apresenta de fora para dentro. Quando a Reforma conseguiu afastar da Igreja tudo aquilo que tem a ver com aparência e manifestação, transformando-a de novo em local de reunião para aqueles que, no sentido dos Evangelhos, viviam no recolhimento, desapareceu também o caráter público desses espaços da Igreja. “
A autora não viveu até nossos dias para ver as consequências disto, ou seja, que a negação do caráter público desses espaços da igreja, transformou-a no oposto, isto é, num oportunismo político para ganhar os fiéis que vão ali buscar uma mensagem divina, um conforto para a alma, e muitas vezes a mudança de vida (conversão).
O que aconteceu foram duas apostasias, a religiosa que é negar o poder divino de Deus, “meu reino não é deste mundo” e a segunda muito pior, que é afirmá-la como poder humano ao qual a política pública deve se submeter e assim tornar os fiéis religiosos vinculados a alguma corrente política, ideológica ou cultural.
Mesmo Jesus sabendo que os judeus viviam sobre um império romano opressor e injusto, isto pode ser observado quando diz, entre muitas passagens: “os publicanos e as prostitutas vos precederão no reino dos céus” (Mt 21,31), que os aproxima como pecadores, e os publicanos eram os responsáveis pela província perante o Império Romano, inclusive a renda e os impostos.
Isto é necessário para compreender o sentido da política e da religião no trecho em que Jesus é questionado sobre a justiça de pagar o tributo ao imperador, ao que ele responde: «Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.» (Mt 22,21) portanto logo após o trecho anterior, onde é questionado o direito (e o poder) de perdoar os pecados, qual era de fato sua autoridade e depois irá compará-la ao poder temporal (e espacial conforme Arendt) do que é “fora” da reunião.
Em termos específicos do religioso a apostasia de apostar em partidos e ideologias, quase sempre com duplicidade de propósitos e fundamentos, ora favorecem a vida, ora a desfavorecem (o aborto e a eutanásia, por exemplo), ora defendem os pobres, ora justificam a corrupção, e assim por diante, não deve ser comparado ao infinito poder divino, claro para aqueles que acreditam, e para os que não creem a busca de uma diretriz para a sociedade e para o mundo implicam em valores.
O sentido da política e as redes
A desconfiança da política (e dos políticos) é tão antiga quanto a tradição da filosofia política, escreve Hannah Arendt e é através desta questão que pode-se entender o sentido da política.
Logo em seguida na introdução ao fragmento 3b escreve: “A política, assim aprendemos, é algo como uma necessidade imperiosa para a vida humana e, na verdade, tanto para a vida do indivíduo como da sociedade”, e acrescenta pouco a diante a: “Tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no sentido mais amplo”.
Em seguida vai esclarecer um equívoco antigo, presente em toda cultura ocidental, já dissemos em outro post do zoon politikon, diz a autora que não é: “uma designação qualquer para o convívio humano, não achava, de maneira nenhuma, que todos os homens fossem políticos ou que a política, ou seja, uma polis, houvesse em toda parte onde viviam homens”, ele julgava “ser apenas uma característica do homem o fato de poder viver numa polis e que essa organização da polis representava a forma mais elevada do convívio humano”, mas sabia que estava longe de ser uma sociedade de anjos e ela estava restrita a um grupo de pessoas.
Esclarece a autora que o que distingue o convívio dos homens na política das outras formas de convívio humano era a liberdade, para uma classe de pessoas.
O sentido da política para os gregos esclarece Arendt no parágrafo 3c: “E o objetivo não era pura e simplesmente a liberdade tal como ela se realizava na polis, mas sim a libertação pré-po-lítica para a liberdade na polis. O sentido da coisa política aqui, mas não seu objetivo, é os homens terem relações entre si em liberdade, para além da força, da coação e do domínio. Iguais com iguais que só em caso de necessidade, ou seja, em tempos de guerra, davam ordens e obedeciam uns aos outros; porém, exceto isso, regulamentavam todos os assuntos por meio da conversa mútua e do convencimento recíproco.”
Assim tal como surgiu na polis grega o que é “… decisivo nesse contexto não é tanto o conflito entre a polis e os filósofos — nos quais mais tarde teremos de entrar em detalhes* — mas sim não poder persistir a simples indiferença de um âmbito em relação ao outro, na qual o conflito pareceu solucionado por um momento, porquanto impossível o espaço da minoria e sua liberdade — se bem que era também um âmbito público e não-pri-vado — desempenhar as duas funções, assim como a política incluía todos os que estavam aptos para a liberdade”.
A nota* (número 17 no texto) segundo a compiladora dos fragmentos é que pode se tratar de um capítulo não escrito sobre “A posição Socrática”, o que a autora está tratado aqui é a diferença entre o que foi aprofundado por muitos autores mais tarde entre o espaço público e o espaço privado, que deveriam estar aptos a liberdade.
O que acontece no mundo contemporâneo com a mídias de redes sociais, nunca é demais diferenciar mídias das próprias redes que são o conjunto das relações sociais que Hannah Arendt recupera, é de suma importância porque vai possuir propriedades diferentes daquelas que estão entre os “privilegiados” políticos, tal como os gregos os estabeleceram e como diz a autora, que muitas vezes rejeitamos por não sermos políticos profissionais.
O conjunto do convívio humano não era possível de ser pensado antes da comunicação global e das mídias de redes sociais, a polis grega foi uma experiência social de pequenas cidades-estados onde uma parte da população que era livre podia estabelecer a democracia nela, porém o conjunto da sociedade não era livre.
As novas emergentes realidades criam um maior espaço de convívio humano e denotam as fragilidades civilizatórias, e colocam a própria democracia em cheque, ainda há cidadãos que são livres apenas para votar e a política é dominada por minorias que tomam o poder para estabelecer seus privilégios.
(English) Politics and the crisis of human thought
A ideia que há um juízo do gosto, sobre o qual sentenciou também Kant, que não se pode “discutir”, mas sim brigar e chegar a um acordo, nós o conhecemos bem na vida cotidiana, e Hannah Arendt já apontava isto nos anos 50, numa situação ainda desconhecida, opinamos que este ou aquele teria julgado a situação correta ou erradamente, assim não é assunto de hoje, mas desde que o relativismo, a ausência de valores e de parâmetros se instalou no conjunto da sociedade.
Se a função do preconceito é defender o homem julgante tanto da liberdade de fazê-lo como de não se expor abertamente diante de cada realidade encontrada e daí ter de defrontá-la pensando, assim as visões de mundo e ideologias parecem cumprir esta tarefa, uma vez que as protegem de toda experiência,, pois supostamente todo o real estaria nelas previsto de alguma maneira, mais isto era o que defendia a neutralidade científica e que é possível achar soluções “científicas” em cada caso.
Essa falta de parâmetro do mundo moderno, a impossibilidade de se julgar o que aconteceu e acontece todos dias segundo critérios fixos e aceitos por todos, de submetê-los a um esquema geral conhecida, é porque há uma dificuldade estreitamente ligada a isso, de indicar princípios da ação para o vai acontecer, é incerto.
O que há de brilhante em Hannah Arendt, e também encontramos em muitos outros humanistas contemporâneos como Edgar Morin e Hans Georg Gadamer, é que ela entende por mundo (humano-social) não o mundo natural (da vida, dos animais, por exemplo), nem do universo (o mundo físico), o que ela está tentando definido é um novo “social” (entrelaçados, diríamos em termos atuais em rede), e para ela este humano, nesse sentido é um ente social.
O espaço entre os homens que é o mundo não faria sentido sem os próprios homens, assim como o universo ou a natureza sem homens, seria uma contradição em si, sem isso significar que o mundo e as catástrofes que nele ocorrem seriam reduzidos a um acontecer puramente humano, muito menos ainda que fosse algo que reduzidos a algo que acontecesse com “o homem” ou com a natureza do homem.
Se poderia objetar com facilidade ser o mundo do qual é falado com apenas um mundo dos homens, isto é o resultado do fazer e do agir humano, como queiram, estas capacidades pertencem à natureza do homem, e quando falham não se deveria mudar a natureza do homem, antes de se poder pensar numa mudança do mundo ?
É a partir desta visão que Hannah Arendt vai pensar o sentido da política, esta pergunta é muito antigo, muito mais do que se pensa, Platão censurava Péricles ao dizer que os atenienses não seriam melhor depois que morressem, e será este o assunto de Hannah Arendt no fragmento 3b.
ARENDT, Hannah, (1998) “O que é política” (1950), obras póstumas 1992, compiladas por Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
O animal político: preconceito e juízo
O argumento de Hannah Arendt sobre o Zoon politikon é fundamental, argumento que se o homem tivesse algo de político que pertencesse à sua essência, não seria algo da relação entre-os-homens, e assim, totalmente fora dos homens, na polis, ou seja, no que Arendt chama de intra-espaço onde a relação se estabelece.
A política é assim uma relação, e que pressupõe a diversidade entre os homens, e assim lembra os nossos preconceitos, uma vez que a maioria de nós não é um político profissional, afirma no fragmento 2: “tais preconceitos, comuns a todos nós, representam algo de político no sentido mais amplo da palavra: não brotam da soberba das pessoas cultas e não são culpados do cinismo delas, que viveram demais e compreenderam de menos.”
Entretanto é evidente que essa justificação do preconceito enquanto medida do juízo dentro da vida cotidiana tem seus limites, é preciso que ele não se transforme num juízo, assim a opinião (doxa) é matéria-prima da política (e não o conhecimento filosófico, científico ou técnico, a epistem e ou techné) que define a democracia.
Assim é preciso, como o fez Hannah Arendt entrar na questão do preconceito e o juízo, “a periculosidade dos preconceitos reside no fato de neles sempre se ocultar um pedaço do passado”, e dirá ainda mais a frente: “O perigo do preconceito reside no fato de originalmente estar sempre ancorado no passado, quer dizer, muito bem ancorado e, por causa disso, não apenas se antecipa ao juízo e o evita, mas também torna impossível uma experiência verdadeira do presente com o juízo.”
O que acontece se um preconceito torna-se algo imperativo: “Mas é um preconceito em si mesmo o fato de algo imperativo adequar-se ao juízo; os critérios, enquanto duram, jamais podem ser demonstrados de maneira forçada; só lhes serve, sempre, a evidência limitada dos juízos sobre os quais todos concordaram e sobre os quais não se precisa mais brigar nem discutir”, e assim a democracia deve estabelecer os limites entre o juízo e os preconceitos.
O fato é que o preconceito se antecipa ao juízo, por isso a fenomenologia estabelece a necessidade do epoché, justamente a suspensão do juízo em reconhecimento que temos sempre os nossos pré-conceitos (a hermenêutica filosófica a usa no sentido positivo), em geral recorremos ao passado, como explica Arendt, pois a razão é temporal e limitada a épocas históricas, formando em termos apenas quantitativos muitos aspectos da História, nelas o novo é raro e o velho domina a política.
O que é política ?
A política tornou-se um imperativo absoluto, mesmo em tempos de pandemia em que a saúde e as questões sanitárias deveriam ocupar o topo das preocupações, elas não cedem, e a polarização já grave a alguns anos torna-se ainda mais dramática, polarizando até temas que deveriam ter unanimidade, como a saúde.
Hannah Arendt tem um ensaio instigante, publicado como obras póstumas, e organizadas e compiladas por Ursula Lutz, e datado de 1950, teve uma publicação no Brasil em 1998.
Preocupada com os dramas de seu tempo, duas guerras, parece apontar também para nosso cenário atual: “o sentido positivo da “coisa política” parte de duas experiências básicas de nosso século, que ofuscaram esse sentido e transformaram-no em seu oposto: o surgimento de sistemas totalitários na forma do nazismo e do comunismo, e o fato de que hoje em dia a política dispõe de meios técnicos, na forma da bomba atômica, para exterminar a Humanidade e, com ela, toda espécie de política”, descreveu o prefaciador Kurt Sontheimer, da versão alemã de 1992.
Arendt no Fragmento 1, elabora sete pressupostos e discorre sobre eles: 1. A política baseia-se na pluralidade dos homens, 2. A política trata da convivência entre diferentes, 3. Quando se vê na família mais do que a participação, ou seja, a participação ativa na pluralidade, começa-se a bancar Deus, ou seja, a agir como se se pudesse sair, de modo natural, do princípio da diversidade. Ao invés de se gerar um homem, tenta-se criar o homem na imagem de si mesmo (alonguei este de propósito), 4. O homem, tal como a filosofia e a teologia o conhecem, existe — ou se realiza — na política apenas no tocante aos direitos iguais que os mais diferentes garantem a si próprios.
Diria que estes são quase proto-princípios, porém são nos 3 seguintes que fundamenta seu pensamento sobre a filosofia.
O quinto terá subtópicos. A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas encontrar o lugar onde surge a política. A primeira é: a) Zoon politikon:* como se no homem houvesse algo político que pertencesse à sua essência, neste a autora contesta Aristóteles dizendo que a política é “entre os homens”, b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve ter sido criado.
O sexto: torna-se difícil compreender que devemos ser livres de fato num campo, ou seja, nem movidos por nós mesmos nem dependentes do material dado. Só existe liberdade no âmbito particular do conceito intra da política. Nós nos salvamos dessa liberdade justo na “necessidade” da História. Um absurdo abominável.
O sétimo: Pode ser que a tarefa da política seja construir um mundo tão transparente para a verdade como a criação de Deus. No sentido do mito judaico-cristão, isso significaria: ao homem, criado à imagem de Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens à imagem da criação divina. Provavelmente, um absurdo — mas seria a única demonstração e justificativa possível à ideia da lei da Natureza.
É só a partir daí que a autora inicia sua introdução sobre a questão do que é política, em tempos de polarização o tema é urgente.
ARENDT, Hannah, “O que é política” (1950), obras póstumas 1992, compiladas por Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
A fadiga da pandemia e a pressa da vacina
A OMS em seu escritório da Europa lançou um documento que explica a “fadiga da pandemia” estimando que 60% da população já esteja neste estágio.
O médio Hans Henri Kluge, diretor regional da OMS para Europa, diz que o cansaço já era esperado nesta fase da crise: “desde que o vírus chegou ao continente europeu, há oito meses, os cidadãos fizeram enormes sacrifícios para conter a covid-19, o custo foi altíssimo, algo que esgotou todos nós, independentemente do que vivemos ou do que façamos. Nessas circunstâncias é fácil e natural sentir-se apático, desmotivado, sentir cansaço”, afirmou.
As medidas que aponta para continuar os esforços encontram um centro comum de buscar o senso comunitário na solução da questão: compreender o que as pessoas estão fazendo regularmente e envolver a comunidades em debates e decisões, permitir que as pessoas vivam suas vidas, mas reduzindo riscos e buscando soluções criativas, como tem sido as reuniões virtuais, as entregas de alimentos e produtos de consumo, em especial, para pessoas vulneráveis.
O outro polo preocupante é a corrida para a vacina, que deveria seguir rumos exclusivamente médicos, mas já apontam para uma competição visando o lucro com as pessoas, assim a primeira vacina a chegar no mercado não será necessariamente a melhor, e para piorar os políticos tentam tirar proveito desta corrida.
Médicos brasileiros são cautelosos, como o dr. Álvaro Furtado costa, médico infectologia da HC-FMUSP: “está todo mundo muito otimista, mas o estudo da vacina é algo muito complicado, a maioria deles para na fase 3, de testes clínicos, pelos problemas que aparecem. É importante discutir essa possibilidade (de não se ter uma vacina)”, e chegar na fase 3 não significa que está perto do final, pois a maioria das vacinas param nesta fase, como são os casos de HIV e chikungunya.
O que deve-se fazer neste caso é continuar a busca por medicações que diminuam a taxa de mortalidade e, portanto, recuperam os infectados, por exemplo, pelo vírus SARS-Cov-2, e o ensaio clínico é desenvolvido também no Brasil pela FioCruz, que faz parceria com o International Solidarity, da OMS, e no país estão em 18 hospitais de 12 estados, com pesquisa de diferentes medicações.
O estágio final da fase 3 é bem mais difícil de ser atingido e não é a propaganda política que o resolve, mas os órgãos de controle sanitário dos medicamentos.
A festa e os convidados
A festa de Babette é uma alegoria a uma festa divina, e a misteriosa cozinheira que humildemente vai trabalhar durante muito tempo em uma casa até poder anunciar e realizar a festa, os convidados apesar de desconfiados aceitam e sentem suas vidas renovadas.
O que vivemos em tempos de pandemia é a ausência da festa, mas a verdadeira festa para a qual todos fomos convidados a da fraternidade para todos e de um maior equilíbrio na distribuição de rendas, no tratamento das diversas culturas e do respeito a dignidade humana está longe de ser uma festa.
Quem foram os convidados, primeiramente aqueles que dizem ter estes princípios e que nem sempre são os praticados, ou seja, participam mais das festas das riquezas, do poder e de suas benesses do que promovem a festa que todos poderiam participar.
A pandemia deveria ser uma tomada de consciência, privados da festa, deveríamos pensar naqueles que sempre foram privados, e não procurar promover mesmo na pandemia nossa festa particular onde os amigos participam.
A parábola bíblica (Mt 22, 1-14) da festa de casamento na qual um rei chama os convidados e eles dão desculpas para não comparecerem, é uma boa explicação para o que acontece aos que foram convidados e não foram e aos excluídos que são chamados para a festa e eles vão, é diríamos uma última tomada de consciência.
Os convidados, diríamos em termos bíblicos os eleitos, não foram, então o rei manda seus empregados irem as praças, as encruzilhadas dos caminhos e chamarem a quantos encontrarem para a festa, porém na festa nota ainda alguém que não está com trajes adequados (na foto gravura de Jan Luyken).
A alegoria bíblica é para dizer que também entre os não convidados há aqueles que também não são dignos de participar da divina festa.
A festa de Babette
A festa de Babette, é um dos contos mais célebres de Karen Blixen (1885 –1962), narra a história de duas senhoras puritanas, filhas de um pastor protestante, que vivem uma vida muito opressiva até que o pai morre, o conto ficou famoso depois de ser filmado pelo diretor dinamarquês, sendo o primeiro filme de Blixen a ser filmado pelo Danish Film Institute, e o primeiro a ganhar um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
O roteiro foi adaptado por Just Betzer, Bo Christensen e Benni Korzen, nele Filippa (Bodil Kjer) e Martine (Birgitte Federspiel) são filhas do rigoroso pastor luterano, que após sua morte, surge no vilarejo Babette (Stéphane Audran), uma parisiense que se oferece para ser a cozinheira e faxineira da família.
Muitos anos depois de trabalhar na casa, ela recebe a notícia que ganhou um grande prêmio na loteria e se oferece para preparar um jantar francês de gala em comemoração ao centésimo aniversário do pastor, os paroquianos inicialmente temerosos, aceitam o banquete de Babette.
O simbolismo do filme é forte, os tons de azul ligeiramente contrastados, estão na fronteira entre o céu e a terra é quase imperceptível, em meio a paisagem cinzenta da Dinamarca, uma primeira imagem prenuncia uma comunhão diferente num lugar entre coisas terrenas e celestes.
Outro aspecto da simbologia é o peixe, muito influente no cristianismo primitivo, porém é a mesa que foi capaz de re-ligar aquelas pessoas com um verdadeiro eu, e despertar-lhes novamente um sentido pela vida que há algum tempo tinham perdido.
A dança dos participantes ao redor do povo (foto), também uma simbologia religiosa, é um ponto alto desta retomada de sentido da vida daquelas pessoas.
O que a arte de Babette, a comida feita com amor e arte fez, foi criar na mesa uma “espécie de envolvimento amoroso”, mas “num envolvimento amoroso daquela categoria nobre e romântica na qual a pessoa não mais distingue entre o apetite ou a saciedade, corporal e espiritual!”, assim como descreve a própria autora da peça original, Blixen exprime assim o mais profundo de sua expressão neste conto.
Eça de Queirós e a mesa
Estando em Portugal em 2018, e sendo a Uab (Universidade Aberta) muito próxima a Confeitaria Cister, onde Eça de Queiroz frequentava, há inclusive um desenho do canto que ele gostava de ficar e ali escrever (foto), lembro da mesa portuguesa lembrando deste canto de Lisboa, e os escritos de Eça sobre a mesa de refeição.
Um dos textos mais comuns sobre o tema é um artigo conhecido como “cozinha Arqueológica”, publicado em 1893, na Gazeta de Notícias, de Lisboa, Portugal. Nele Eça afirmou: “a mesa constituiu sempre um dos fortes, se não o mais forte alicerce das sociedades humanas” e ainda “o caráter de uma raça pode ser deduzido simplesmente de seu método de assar a carne” (III, p. 1226)
Eça antecipou as reflexões de historiadores como Jean François-Revel (1996) e Massimo Montanari (2004), para quem os valores do sistema alimentar são resultado da representação dos processos culturais e as relações se desenvolvem de acordo com critérios econômicos, nutricionais e simbólicos.
O autor não apenas propôs observações da cozinha nas sociedades clássicas, como também considerou que a gastronomia possui um arqué, um elemento básico das representações da sociedade portuguesa, o que foi notado por vários de seus leitores e críticos, a comida despertou, por exemplo, a atenção de Machado de Assis já em 1878.
A moda brasileira, Machado de Assis viu aí em Eça uma fartura desnecessária, o argumento sobre este tipo de excesso se contrapõe o da coerência gastronômica que se constitui ao longo da obra, a comida está relacionada ao próprio excesso deste escola literária, se Eça não tivesse continuado a ser cuidadoso com este tema, o cuidado deveria aumentar tanto em quantidade como em qualidade nas obras e versões seguintes, reforçando por exemplo que o autor de “Os Maias” pode ter encontrado na cozinha os elementos fundamentais de seu projeto de representar Portugal através de seus traços mais característicos.
O certo é que a mesa se expande aos valores culturais e sociais, assim como os tempos, as épocas de desenvolvimento das sociedades e até das escolas literárias as refletem.
ASSIS, Machado. Eça de Queirós: O Primo Basílio. In: Obra Completa. V. III. Rio de Janeiro: Aguillar, 1997.
O banquete de Platão
Nos banquetes, as mesas e o compartilhamento de alimento se celebram muitas coisas, inclusive o diálogo sobre temas essenciais.
Ocorrido por volta de 380 a.C. é um diálogo, e há alguns que preferem a tradução do grego como Simpósio (no grego antigo sympotein significa “beber junto), e o tema central é o Amor, entre o eros e o ágape, e o personagem central como na maioria dos seus diálogos é Sócrates.
Também estão no diálogo Aristófanes e Ágaton (ou Agatão), na casa dele ocorrera um banquete anterior em comemoração ao prêmio literário que ele havia ganhado, neste banquete Sócrates e outros participantes discursaram sobre o “amor”, estavam nele Apolodoro e Glaucon, Aristodemo e o próprio Ágaton.
Glaucon considera Apolodoro como doido porque despreza o material, Ágaton significa “bom” em grego, coisas boas e o amor levam à prática do bem e do belo, e se soubéssemos a prática do amor o bem que faz, os homens fariam um exército de amantes, lembrando o exército de banos, cuja frente estava Pelópidas e Epaminondas em 371 a.C.
O discurso de Fedro é que o amor cultuado pelos homens revela-os mais virtuosos e felizes durante a vida e após a morte, mas é na cosmogonia que os discursos vão se contrapor, enquanto Fedro vê a origem de Eros como um deus muito antigo, sem menção de progenitores, teve seu nascimento junto a Geia (terra) após o Caos.
Pausânias o segundo a discursar, contrariando Fedro, existem vários Eros, era filho de Afrodite, e duas Afrodites, uma filha de Urano e outra de Zeus, a de Zeus gera um eros vulgar e a de Urano um Eros celeste.
Eriximaco aprova a distinção de Pausânias sobre a duplicidade do Amor e, universalista, o amplia a todo cosmo: “grande e admirável, e a tudo se estende ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas”, sendo médico afirma que o amor e a concórdia provem a harmonia, combinando opostos (o sadio e o mórbido) que se estendo por todo universo: “deve-se conservar um e outro amor …”.
Aristófanes insistirá no poder que o amor possui sobre a natureza histórica, com o uso do mito dos andróginos, legimitima a homoafetividade e a desenfreada busca pelo que hoje chamamos de “almas gêmeas”, que é uma busca pelo perfeccionismo e de certa forma pelo narcisismo.
Sócrates elogia o fato de Ágaton ter principiado a mostrar a natureza e quais são as obras do Amor, mas depois segue seu clássico método da Pergunta: “é de tal natureza o Amor que é Amor de algo ou de nada?”, Ágaton confirma que o Amor é Amor de algo. De qual “algo” é o Amor e segue com a indagação: “Será que o Amor, aquilo de que é amor, ele o deseja ou não ?” e segue o banquete a moda dos clássicos gregos.
O banquete, a mesa a qual todos sentam é o importante deste diálogo, parece tão clássico e tão presente, mas acrescentaríamos uma questão e Francisco de Assis, lembrado estes dias, afirmava ele com convicção: “O Amor não é amado”, assim antes de ser instrumento como afirma Agaton é ele próprio algo a ser usado como instrumento, em momento de tanta dor na humanidade, ou então a maneira socrática perguntar: “É o Amor amado ?”.
Platão, O Banquete, ou, Do Amor – trad. José Cavalcante de Souza, Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.