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Arquivo para a ‘Linguagens’ Categoria

Sobre o ente e a essência: a ontologia escolástica

24 abr

Anselmo da Cantuária (1033-1109) é anterior a Tomás de Aquino (1223-1274) e influenciado por Boécio (480-534), já traçados em posts anteriores o caminho de Plotino até Boécio, passando por Porfírio (234-304 dC), e o seu nome verdadeiro seria Malco ou Telec, ele traduziu Enéada.

A influência de Aristóteles e Platão é grande, porém a tentativa de síntese de Aristóteles e Platão já em Isagoge de Porfírio, que foi traduzida para o latim por Boécio, sendo atribuída a Tomás de Aquino e por consequência a igreja católica é um equívoco, foi Anselmo da Cantuária o fundador de fato, da filosofia escolástica, com sua onto-teológica e seu “argumento ontológico” de Deus.

Deve-se a Boécio a “querela dos universais”, se eles existem ou são apenas nomes, o que dividiu o nominalismo e realismo, da Baixa Idade Média e inicio da Renascença.

Na adolescência Anselmo não teve aprovação do pai para ser monge, após uma doença, ele sai de casa e vai para a Normandia, lá seu conterrâneo Lanfranco o recebe como noviço na Abadia de Le Bec em 1059, e em 1063 se torna prior, quando escreve as obras Monológio e Proslógio.

Le Bec é por este período um centro de estudos, mas inicialmente protegido de Guilherme II, recebe terras que depois serão tomadas, é deste período as primeiras investigadas dos reis sobre as nomeações de bispos e até de papa (é uma história a parte), porém nomeado bispo da Cantuária (Canterbury, é até hoje é sede do bispado anglicano) (foto).

Ele se submete ao papa Urbano II (na mesma época havia Clemente III, considerado antipapa), foi o primeiro inclusive a falar contra o tráfico de escravos em 1102, num concílio em Westminster (revendo os fatos), não se submeteu à monarquia inglesa, e teve 2 exílios.

Em Proslógio,  a existência de Deus é um “a priori”, ou seja, através da razão, sem recorrer à experiência, parte do conceito que “um ser do qual não se pode pensar nada maior” (Deus) e argumenta que*, para ser o ser mais perfeito, Deus deve existe tanto na mente como na realidade. 

Tomás de Aquino sofreu influência de Santo Anselmo, e em sua obra de juventude “O ente e a essência” ele descreve a questão do ser e da realidade, distinguindo ente (aquilo que é, o ser) de essência (o que algo é), nela esclarece como o intelecto percebe inicialmente o ente e sua essência, explorando a relação entre substâncias simples e compostas. 

Para Duns Scotus (1265/1266-1308), um realista moderado para alguns, um nominalista na minha visão, os universais existem como entidades “in rebus” (nas coisas), mas não são separados deles como as ideias platonistas, e sim como uma “ratio” (razão) do intelecto.

Sua principal tese descrita em Ordinatio I, parte 1, qq. 1-2) é que “se há entre os entes um ente infinito atualmente existente”, para ele os universais “bondade” e “verdade” serão reais, isto está expresso biblicamente: “caminho, verdade e vida” (Jo, 14-6) e “só um é o bom” (Lc 18,19).

ANSELMO, St. Proslógio. Trad.: Ângelo Ricci, Ruy Afonso da Costa Nunes. São Paulo, SP; Nova Cutlural ed., 1988. (Coleção os Pensadores, Anselmo/Abelardo). (4ª. edição) (pdf)

AQUINO, S. T. O Ente e a Essência, R.J.: Mosteiro de São Bento, Editorial Presença, 1981.

SCOTUS, John Duns. Seleção de Textos. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

* ”Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não existe porque “o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe”?4 Porém, o insipiente, quando eu digo: “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, ouve o que digo e o compreende.” (4 Salmo 13, 1).  Texto na Coleção Pensadores.

 
 

O ser: ontologias e epistemes medievais

23 abr

Agostinho de Hipona, após ter abandonado o maniqueísmo, dualismo entre o bem e o mal, elabora uma ontologia pouco conhecida e citada, mesmo por teólogos, trata-se de uma ontologia trinitária e uma gnose (ou episteme) complexa da verdade.

Ao fazer a leitura de uma passagem do Genésis (Gn 1,26), que é o homem feito a imagem de Deus (imago Dei), ele pondera que a expressão correta é: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança, façamos e nossa foram ditas no plural, e não podem ser compreendidas a não ser como relação” (Agostinho, De trinitate, VII,6,1), onde o plural “façamos” e “nossa” estão lá invocando a trindade.

Esta visão antropológica não poderia passar despercebida, porém a visão filosófica de ser e ente ficam submersas e subentendidas no texto, o homem enquanto ser criado e ente, é ao mesmo tempo Imago Dei e natureza perecível, porém a imagem significa trinitária, e, por outro lado perecível significa finito enquanto ente e não enquanto Ser.

Agostinho não usa categoria ontológicas, mas onto-teológicas, assim o homem tem alma imortal e corpo perecível, Agostinho para responder a este aparente paradoxo criacionista, usa o conhecimento neoplatônico, que o ser humano é composto por uma porção corpórea/ material e uma porção espiritual, que diferente do dualismo que desmerece o corpo.

Para Agostinho a alma conhece e vive no corpo, assim “logo, tal como a mente recolhe o conhecimento das coisas corpóreas por meio dos sentidos corporais, é por si mesma que [recolhe o conhecimento] das incorpóreas. Portanto, já que ela própria é incorpórea é por si mesma que ele se conhece” (De Trinitate, XI,3,3 ), e assim formula sua episteme inseparável da alma e vista como “trinitária”.

Dito de outra forma, é subjacente ao autocentramento da mente, o se conhecer e se a amar, há o concurso da memória, da inteligência e da vontade, isto será mais desenvolvido em Porfírio e depois em Boécio (480-524 dC).

Discípulo de Plotino, Porfírio (c. 234–305 d.C.) foi um filósofo neoplatônico e seu trabalho sistematizou e difundiu o pensamento neoplatônico, suas contribuições abrangem diversas áreas, incluindo lógica, metafísica, ética e teologia, porém é famosa sua arvore do conhecimento, chamada Árvore de Porfírio (imagem acima).

Boécio seu discípulo e tradutor avança na contribuição que Porfírio pretendia deixar de unificar a filosofia platônica e aristotélica, a chamada henologia (a doutrina da unidade divina), sua obra Consolações Filosóficas traz parte do questionamento sobre conceitos particulares e universais, que será tema polêmico entre os nominalistas e realistas da baixa idade média.

Período caracterizado pelo feudalismo e pelas rotas comerciais preparou o renascimento.

SANTO AGOSTINHO, De Trinitate / Trindade, Covilhã, PT: Paulinas Editora, Prior Velho, 2007 (pdf IX-XIII)

 

Princípios da história do Ser e eternidade

22 abr

Na filosofia não há como referir-se ao Ser sem abordar o ente e a essência, dita de diferentes formas pelos filósofos durante o processo civilizatório e de construção do conhecimento, há pontos que podem ser traçados nesta trajetória.

Para os gregos, a partir de Sócrates, o ser (visto como o que constitui ser humano) reside na alma ou razão, que não são separadas, e a consciência é a fonte tanto intelectual como moral e o homem é capaz de transcender o mundo material e buscar a verdade e a virtude, para ele a alma é essência e não está separado do corpo (ente ou forma) é obstáculo para as virtudes.

Platão elabora o “ente” (o ser) é aquilo que existe, enquanto “essência” (a forma) é a natureza fundamental e imutável que define esse ser, enquanto Aristóteles a essência de um ser é a sua natureza fundamental, o que o define e o torna o que é, ela é a forma que se une à matéria para formar uma substância, que é o ser individual.

Assim o transcender de Sócrates some, Platão então elabora o Sumo Bem como a essência do que é bom, justo e verdadeiro,  enquanto Aristóteles o define como busca da felicidade, o bem mais alto que o ser humano busca, também cria a ideia do motor imóvel, causa primeira de tudo que existe e do universo, Platão defende a imortalidade da alma, já Aristóteles está preso a ideia da finitude humana onde tudo é mortal.

O neoplatônico Plotino (204-270 d.C.), vê a alma concebida como uma ponte entre o mundo inteligível (o Uno e o Intelecto) e o mundo sensível, é a imagem do Intelecto e da força vital que impulsiona a vida e o motivo, em seu livro Enéada VI:

“E nós, o que somos nós? Somos aquele ou somos o que se associou e existe no tempo? Na verdade, antes de acontecer o nascimento, estávamos lá [no inteligível], sendo outros homens e, alguns, também deuses: almas puras e intelectos unidos à totalidade da essência, partes do inteligível, sem separação, sem divisão, mas sendo do todo (e nem mesmo agora estamos separados). Mas agora, daquele homem se aproximou outro homem, querendo ser. E nos encontrando, pois não estávamos separados do todo, ele se revestiu de nós e acrescentou a si mesmo aquele homem, o que cada um de nós era então” (Plotino, VI, 4, 14, 16-25).

Plotino vê a Alma em vários “estágios”, é ela que conecta Espírito e Corpo, a natureza superior e sua materialidade),  é uma criatura de Deus, criada à sua imagem e semelhança, composta por corpo e alma imortal, Agostinho de Hipona reelabora isto como o Ser é uma criatura de Deus, criada à sua imagem e semelhança, composta por corpo e alma imortal, a vê assim fora de sua finitude corporal.

Já o corpo em santo agostinho possui uma natureza dupla, a primeira física e material, como o seu corpo em que ele viveu e a segunda refere-se à igreja como metáfora de corpo de Cristo.

Penso nesta metáfora no sentido da cosmovisão, também o teólogo do século XX Teilhard de Chardin via assim, todo universo é corpo de Cristo, ou seja, não a igreja itinerante, mas aquela eterna e viva na imensidão do universo, assim o seu corpo é eterno, e este é o significado maior da ressureição, Jesus teve uma vivência temporal, uma ex-sistência, mas Ele é eterno.  

 

A paz e a morte do papa

21 abr

As conversações de tréguas entre Rússia e Ucrânia, entre Israel e o Hamas e a guerra só tarifaço de Trump põe o mundo sob alerta de uma grave período de instabilidade civilizatória.

A morte do papa Francisco nesta madrugada da Brasil e manhã da Itália significa também a perda de um defensor incansável da paz e repercute no mundo todo. 

Em nota oficial, na tarde de hoje (21/04) o Vaticano esclareceu que a morte do Papa Francisco aconteceu as 7h35 (hora da Itália), portanto 2h35 do Brasil), causada por:

– AVC Cerebral

– COMA

– COLAPSO CARDIOCIRCULATÓRIO IRREVERSÍVEL  

Deixo um vídeo pessoal onde faço uma reflexão sobre o verdadeiro pensamento do Papa sobre questões polêmicas expressa no capítulo 3 de sua encíclica Fratelli Tutti (todos irmãos), segue:

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A dor, o Ser e a Páscoa

18 abr

Este é um tempo que tentou abolir a dor e exaltar o prazer e a euforia a qualquer preço, porém é tempo de depressão, pânico, intolerâncias e sem vida empática, escreveu Byung-Chul Han: “Justo na sociedade paliativa hostil à dor, multiplicam-se dores silenciosas, apinhadas nas margens, que persistem na ausência de sentido, fala e imagem” (Han, 2021, p. 57).

Nada mais paradoxal neste tempo que mostra que a dor é parte essencial da existência, quem pode aceitar isto senão aqueles que ultrapassaram o desejo de imortalidade e perseguem o desejo da eternidade, Han que tem tendência budista e Hannah Arendt que tem origem judaica escreveram isto.

Walter Benjamin que tinha raízes fortes raízes na Escola de Frankfurt escreveu: “A dor apenas, entre todos os sentimentos corporais, é, para o ser humano, um fluxo navegável, com águas que nunca se esgotam e que o conduz ao mar”.

A ausência de entendimento deste sentimento próprio do Ser, levam a dificuldades de lidar com a frustração, as perdas e as reviravoltas da existência, torna-nos mais fracos e menos resilientes a qualquer contradição, muitas vezes incapazes de lidar com elas.

Entender a dor também nos ajuda a compreender a finitude humana, a morte não como um fim em si mesma, que torna a vida limitada e pequena, mas acreditar que existe algo além dela, que há uma “passagem” para a eternidade, e que sem ela a vida parece efêmera.

Vivemos do consumo, do “disponível”, onde “o mundo que consiste do disponível só pode ser consumido. O mundo, porém, é mais do que a soma do disponível. O mundo disponível perde a aura, sim, o aroma. Ele não permite nenhum se demorar” (Han, 2021, p. 94).

É também um mundo sem a “alteridade”, assim descrita por Han: “Ela o protege de degradar- se em um objeto de consumo. Sem a distância originária, o outro não é nenhum tu. Ele é coisificado no Isso. Ele Não é convocado em sua outridade, mas sim apropriado” (idem, p. 94), aqui Han está lembrando de um texto de outro pensador e educador que é Martin Buber.

Somente pode entender a dor, e a dor extrema como aquela morte de cruz de Jesus aqueles que já passaram da finitude do mundo, do consumo imediato e da vida passageira, para um desejo verdade de eternidade, já aqui, mas como enfatizada Han, logo depois volta ao mundo circundante, que é realidade, porém não anula o desejo e o alcance do além do Ser finito.

HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021.

 

Sobre o paliativo e a dor

17 abr

Byung-Chul Han escreveu “Sociedade Paliativa: a dor hoje”, em plena pandemia (o livro original é de 2020), o que era praticamente um desafio a um mundo assustado com milhares de mortes, isolamento e uma corrida a medicamentos sem os devidos testes de contraindicações, mas o livro é sobre a modernidade onde “a dor é vista como um sinal de fraqueza” (Han, 2021, p. 13).

Entre várias análises os pensamentos de E. Jünger (sobre a dor) e M. Heidegger (Acerca de Ernst Jünger), escreveu o primeiro “Me diga a sua relação com a dor e eu te direi quem és!” em replica “pretensamente irônica de Heidegger”, Han cita Heidegger que “observa: “Me diga a sua relação como ser, caso você sequer tenha alguma ideia a esse respeito, e te direi como você se se você se ´ocupará´ com a ´dor´ou se pode refletir sobre ela” (Han, 2021, p. 84-85).

Heidegger tem em mente, pontua Han, “antes, uma ontologia da dor” … “ele quer penetrar, por meio do ser, na “essência da dor” (idem, p. 85) … “Nós, porém, somos sem dor, não nos apropriamos [vereigen] a essência da dor” (citação de Han das Conferências de Bremen e Freiburg).

Cita mais a diante: “o pensamento é a dor, a paixão pelo segredo que ´se furta oscila oscila na retirada´”(citando outro texto de Heidegger A caminho da linguagem, p. 87), ela desvela o ser, ela é “santuário do ser”, ela chega até a vida” e este “santuário do nada, daquilo, a saber, que em todos os sentidos nunca é meramente um ente, mas que ao mesmo tempo, direciona, até mesmo como um segredo” (p. 89, citando novo texto Conferências e preleções).

E conclui, por raciocínio filosófico, que “a morte significa que o ser humana está em relação com o indisponível, com o inteiramente outro que não vem dele” (idem, p. 89), poderia ser muito bem também um desenvolvimento teológico, aquele que Heidegger, Arendt e Han diferenciam quando falam da imortalidade humano e da eternidade como o puro Ser.

Em “Vita Contemplativa” Han refletindo sobre Hannah Arendt escreve: “contudo, nenhum ser humano consegue, prossegue Arendt, demorar-se na experiência do eterno. Ele precisa retornar ao mundo circundante. Tão logo, porém, um pensador abandona a experiência do eterno e começa a escrever, ele se entrega a vita activa, cuja finalidade última é a imortalidade” (Han, 2023, p. 145).

Arendt se admira com o Sócrates que não escreve, disse Han, com isto renunciou a imortalidade, pode-se acrescentar que Jesus também não escreveu, e no seu caso sofre a “paixão” com dores sobre requintes de tortura pública, até sua morte pública ao lado de dois ladrões, com isto “viveu o inteiramente outro” como pensou Han, e pode experimentar a passagem (Páscoa) da vida para a morte e da morte para a vida, eis a razão também para Ele.

HAN, B.-C. Vita Contemplativa. Petrópolis, Vozes, 2023.

HAN, B.C.  A sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis, Vozes, 2021.

 

Além do ser-no-mundo, sua superação

16 abr

Byung-Chul Han interpreta que Heidegger vai realizar a sua virada na passagem do “agir para o ser” e é daí que surge a sua obra maior: Ser e Tempo (primeira publicação de 1927 nos Anais de Filosofia e Pesquisa Fenomenológica editados por Edmund Husserl).

Escreve Han: “em oposição ao medo, que meramente se relaciona com algo no mundo, o “de que” da angústia é o mundo como tal: “aquilo de que a angústia se angustia é o próprio ser-no-mundo. O ente dentro do mundo […] afunda na angústia. O ´mundo´ não consegue fornecer mais nada, tampouco o ser-aí-com os outros” (Heidegger, 2005, p. 179).

E Han acrescenta que esse mundo que escapa da angústia não é o mundo geral, mas “o mundo familiar, cotidiano, no qual vivemos sem questionar” (Han, 2023, p. 76), e acrescentar o “impessoal”.

O impessoal como “ninguém” retira do “ser-aí o fardo da decisão e da responsabilidade ao livrá-lo da ação em sentido restrito.  O impessoal deixa à disposição do ser-aí um mundo pré-parado no qual tudo já foi interpretado e decidido”, não sei se no alemão tem esta conotação, mas no português este “parar”, esta pausa na vida da ação é aquilo que a modernidade busca.

É este impessoal, explica Han, que repele toda perspectiva autônoma do mundo, e que Heidegger considerava a “inautenticidade” ou “decadência” e que impede a realização do Ser.

Em contraste com a visão idealista, Han descreve que “o tédio não é, para Heidegger, nenhum pássaro onírico que choca o ovo da experiência. Ele é interpretado, igualmente, como um apelo á ação” (p. 78), o apelo que hoje é tão desastradamente impelido pelas mídias sociais.

O que Heidegger reivindica através da recusa deste apelo, é “justamente a possibilidade da sua ação [do ser-aí] e inação” (Han, p. 78 citando Heidegger).

Heidegger e Han chegam até mesmo a comparar isto a uma “morte” (claro não exatamente no sentido físico, mas da afirmação do eu), e “essa morte me liberta para o outro. Em vista da morte, desperta uma serenidade, uma amabilidade com o mundo” (Han, 79 citando sua obra Morte e Alteridade).

É esta abertura que permite superar medos, incertezas, frustrações, inseguranças e tantas angustias cotidianas, delas renascem um novo ânimo, criatividade e alegria para seguir em frente, para superar barreiras e entender a possibilidade um novo horizonte.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis, Vozes, 2005.

HAN, B.-C. Vita Contemplativa ou sobre a inatividade. Petrópolis, Vozes, 2023.

 

Escutar aquela voz “interior”

15 abr

Qual a voz do mundo que escutamos? ou temos capacidade de desenvolver e saber escutar uma voz interior, tanto Hannah Arendt quanto Byung-Chul desenvolvem isto claramente, porém é preciso recuperar as raízes alemães, por isso Byung-Chul em suas traduções deixa de propósito os termos dispostos [gestimmtes] e ouvir e se colocar de acordo com a voz [stimme].

Assim ele explica como o ser-no-mundo originário articula o correntes e o estar disposto, “não podemos dispor da disposição, antes somos lançados nela, não a atividade”, mas o “corresponder” significa àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser” (p. 67), assim ouvir e escutar atentamente precede a ação e se dá à disposição.

Assim o “corresponder ouve a voz do chamado […] é sempre necessário … não apenas por acaso e às vezes, um disposto [gestimmtes]”, onde “o falar do corresponder recebe sua precisão” … “antes, ela concebe ao pensado uma De-finição [Be-Stimmheit]” (Han, 2023, p. 68), que vem dos o texto de Heidegger “O que é isto – A filosofia”

Explica Han: “pensar já é sempre disposto; ou seja, exposto a uma disposição que o fundamenta”, e citando novamente o texto de Heidegger: “todo pensar essencial exige que seus pensamentos e proposições sejam extraídos renovadamente, como minério, da disposição fundamental” (Heidegger, citado na p. 69).

Este pensar é no seu amigo, o que os gregos chamavam de pathos e Heidegger recupera, mas lembra na raízes latina o paschein*: “sofrer, aguentar, suportar, entregar, deixar-se carregar, deixar-se de-finir por [algo]” (p. 69), e acrescento aqui, [ou alguém] se pensar novamente na diferença que Arendt e Han fazem entre imortalidade e eternidade, grifo *nosso do hebraico (פַּסחָא), lembrando nosso post anterior sobre a “paixão civilizatória”.

Assim, pode-se reduzir (simplificar é sempre complicado), que podemos ouvir uma voz interior da consciência, mas Heideggeer e Han lembram que a disposição antecede a isto, quer dizer, muitas vezes estamos “escutando” porque temos funções auditivas, mas não temos a disposição e a atenção para de fato ouvir o que a consciência manda.

É claro que ter consciência é muito mais que ter convicções, muitas vezes nossas certezas e convicções atrapalham ouvir esta voz, porque somos humanos e erramos, queremos o eterno, mas nos contentamos como que é passageiro, ouvir exige “meditar”.

Pensar numa verdadeira “pachein”  pode ajudar nos momentos de dificuldades, de contrariedades, enfim tudo o que de certa forma é normal na vida e devemos passar, enfim a paixão boa ou má é passagem para um outro lado.

HAN, B.-C. Vita Contemplativa Ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ, 2023.

 

Vita Activa e disposição

11 abr

A preguiça foi tratada como defeito por séculos (as vezes injustamente, como acusar desempregados de “vadiagem”), hoje ela se chama procrastinação, no seu limite ela é levada à Síndrome de Burnout ou síndrome do pânico (são diferentes), porém ambas são fruto de uma exagerada dose de pressão, de stress ou de trabalho.

Associações internacionais já reconhecem como um fenômeno que afeta a saúde, o número é muito maior que os registrados pois há medo de perda do emprego, da credibilidade e isolamento.

Assim é preciso caracterizar aquilo que a fenomenologia chama de intencionalidade, usando uma categoria que foi introduzida por Heidegger como disposição, como “um estado de espírito que precede a qualquer intencionalidade dirigida a um objeto”, citando Heidegger: “A disposição já abriu porém, o ser-no-mundo como um todo, e torna primeiramente possível um dirigir-se a [algo]” (Han, 2023, p. 66).

Assim a disposição é necessária, diz Han: “não podemos dispor da disposição”, “a disposição constitui então o quadro pré-reflexivo para atividades e ações”, assim, ela “pode facilitar ou impedir ações de-finidas” (p. 67).

Este quadro do pensamento “não é pura atividade e espontaneidade” … “a dimensão contemplativa habita … o transforma em um corresponder” (idem), isto está delineado no pensamento de Han no início desta página como uma “passividade ontológica originária”.

Não a atividade, “mas o estar lançado” [Geworfenheit] define este originário ontológico, como ser-no-mundo originário, para este ser corresponder significa àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser” (p. 67), assim ouvir e escutar atentamente precede a ação e dá à disposição.

O “corresponder ouve a voz do chamado […] é sempre necessário … não apenas por acaso e ás vezes, um disposto [gestimmtes]”, “o falar do corresponder recebe sua precisão” … “antes, ela concebe ao pensado uma de-finição” (Han, 2023, p. 68).

Assim a ação exige pela ordem de precedência, um chamado (uma voz), uma disposição e uma intenção e a elas correspondem um pensado de-finido.

Não agindo sobre o pensar, somos impulsionados contra nossa inércia anterior, nossa inatividade não é posta em ação, não há disposição para ela e cria um conflito em nosso ser.

Han a compara a inatividade da máquina, que nunca precede a contemplação, não surge nada quando está parada, é uma inatividade sem qualquer ação é sua ausência.

Se somos impulsionados como máquinas, sem disposição, enfrentamos um desgaste em nosso ser-no-mundo, o  “pensar está sempre recepcionando” daí sua in-disposição, seu transtorno.

Sem ouvir a voz do nosso Ser, sem contemplar, a ação é maquinal, muitas vezes difícil e cansativa, se pensada e pausada ela é segura, decidida e alcança propósitos verdadeiros.

HAN, B.-C. Vita Contemplativa Ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ, 2023.

 

Liberdade, memória e eternidade

10 abr

O tema pode parecer apenas teológico, mas não é, tanto Hannah Arendt como Byung-Chul Han trataram este tema, claro além de autores de alcance teológico como Agostinho de Hipona e Thomas de Aquino, também por autores atuais como Kierkegaard, Heidegger e Ricoeur que delinearam algumas questões na problemática entre tempo e eterno.

O esquema epistêmico de Hannah Arendt é bem mais profundo porque apresenta também o aspecto político: a memória, que tem referências a história, a narração, que tem a ver com a possibilidade ([hermenêutica] de resgatar os eventos, e a imortalidade, que coloca a ação do mundo concreto, tornando homens seres capazes de continuidade no tempo, visto assim:

“o sentido da Política é a liberdade” (ARENDT, 2002, p. 9).

Mneumônicos são inseridos em processos para preservar a narração, ou seja, sua memória.

Por outro lado, a imortalidade é aquilo que está sendo perpetuado pela memória e narração, porém a autora não se negou a ver uma diferença entre imortalidade e eternidade, apontamos no post anterior aquilo que é também a elaboração da autora, a ligação entre estas categorias.

Isso não nega e sim evidencia a concepção de imortalidade, que se impõe como aquilo que está sendo perpetuado no tempo pela memória, pela narração e também se desenvolve como uma Vita Activa, isto é o que compõe a tradição e a atualização de uma narrativa e neste ponto se confunde com a teologia, ou seja, ultrapassa o temporal e se desvela no eterno.

A tradição porém, foi gradativamente perdendo essa noção do público e do privado, a ponto desta fronteira entre os dois desaparecer, é fácil perceber isto na atualidade ao ver a exposição do privado até mesmo daquilo que é mais sagrado, e na concepção de Arendt, isto é um prejuízo vital, em vista da ação, categoria central para a constituição do mundo público, ela deixa de ser considerada em favor do respeito aos membros da sociedade.

Byung-Chul Han, no livro o Enxame sentencia: “o respeito é o alicerce da esfera pública. Onde ele desaparece, ela desmorona. A decadência da esfera pública e a recente ausência de respeito se condicionam reciprocamente.” (B.-C. Han, No exame, 2018, p. 12).

Arendt ressalta a ausência de empatia: “A morte da empatia humana é um dos primeiros e mais reveladores sinais de uma cultura à beira da barbárie”.

As religiões chamaram isto de aliança, porque todas elas têm um caráter simbólico, como a Arca da Aliança para o antigo testamento e a Paixão de Jesus para o novo testamento, este significado é o transcender a morte (eternidade), ultrapassá-la com todos seus valores: ódios, guerras, divisões e todo tipo de desumanidades praticamos pela finitude humana (Pillars of Creation, imagem do telescópio James Webb).

 

ARENDT, A. O que é Política. Tradução Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.