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Linguagem, ser e reconciliação
Desde a filosofia antiga a linguagem é considerada ontologicamente ligada ao Ser, o Mundo das ideias de Platão (eidos) não é outra coisa senão isto, para Aristóteles linguagem é uma “ferramenta” do pensamento que permite representar a realidade.
Porém a modernidade, sob pretensa objetividade realista, ignorou esta realidade simples onde qualquer ação se inicia antes pelo pensamento e se transforma em linguagem, no dizer do pensador contemporâneo Heidegger a linguagem é “morada do ser”.
A “linguagem das máquinas” ou a codificação do pensamento já expresso numa “mensagem” humana e transformado em códigos, não é exatamente o que deve ser pensado em ontologia, todos os textos de Heidegger e também do filósofo Byung-Chul Han reclamam sobre esta visão técnica da linguagem, porém o século XX começou com a chamada virada linguística.
Assim a linguagem pensada por Alan Turing e Claude Shannon estão circunscritas ao universo das máquinas, enquanto a linguagem pensada ontologicamente é a “abertura do ser” e a busca de um universo de realização e reconciliação, diz Rainer Rilke (1875-1926): “Nós, violentos, nós duramos mais. Mas quando, em qual das vidas, seremos enfim abertos e acolhedores?”.
Byung-Chul Han lembra que o poema épico Ilíada se inicia com a frase: “Aira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades”, já fizemos diversos posts sobre o mito de Hades, deus do submundo para onde vão as almas, enfim a violência ainda marca nosso processo civilizatório.
A linguagem como expressão de nosso pensamento e nossa interioridade não pode ser separada da vida ativa (Hannah Arendt e Byun-Chul Han), Heidegger que teve forte influências sobre ambos, ela é ponte que vincula o dentro e o fora do homem, de tal forma que o falar é pensado como uma atividade que acontece por meio do homem e assim é ato ontológico (foto – Um mural em Teotihuacan, México, c. século II).
Esta visão da linguagem “por meio do homem” é assim anterior a sua difusão pelos meios (mídias) e não pode ser pensada como meros emissores e receptores uma vez que seja qual for o meio ele é precedido pela pensamento e linguagem humana e nela o ser se “abre”.
Pode-se dizer então que a violência é um aspecto da falta de abertura do ser motivada pelo pensamento e este é construído por metodologias e modos de entender a realidade como tendo um único caminho da violência onde a reconciliação pode parecer impossível.
O homem e a própria realidade não são binários: Ser e Não-Ser, afirmativo e negativo, no homem porque possui estágio interiores sensíveis e cognitivos onde se ativam os motores do pensamento capazes de sínteses, e na realidade pelas descobertas da física quântica e do universo complexo que a astronomia atual revelou.
Reconciliar, ativar mecanismos de diálogos, de entendimento são possíveis ontologicamente.
Pensadores de barriga-cheia
A sociedade moderna se caracteriza por uma ausência de pensamento desenvolvido sério, o que se chama de “pensamento crítico” nada mais é do que a rejeição de algum pensador que tente pensar fora da bolha ideológica, ou das narrativas vulgares e superficiais.
Desconhecem as grandes obras clássicas, mesmo aquelas que professam seja Kant, Hegel ou Marx, literatura profunda de Zolá, Vitor Hugo, Proust, Balzac, Camus ou mais atuais como George Orwell, James Joyce, Gabriel Garcia Marques ou Jorge Luís Borges, eurocêntricos por seu conhecimento raso, preferem a crítica sem conteúdo dos pensadores que contestam todo o pensamento atual como fragmentário: Heidegger, Gadamer, Peter Sloterdijk e Byung-Chul Han.
Estão de barriga cheia de uma comida que enche o estomago, mas está longe de ser um alimento consiste que elabore uma crítica profunda e fundamentada do pensamento atual: o sociologismo decadente, a pouca meditação (leia-se Hannah Arent ou Byung-Chul Han sobre a Vita Contemplativa) e pouco conhecimento até mesmo do iluminismo tardio que professam.
No máximo conhecem o pensamento líquido e eurocêntrico de Bauman, a biopolítica de Foucault ou o revisionismo de Jean Jaurès, desconhecem a transdisciplinaridade de Edgar Morin (chama esta intelectualidade parcial de inteligência cega), a terceiro-incluído de Barsarab Nicolescu e a revolução da física quântica (não é mais um dualismo binário), o pensamento é datado na modernidade, e desconhecem sua origem na Grécia antiga.
É preciso negar autores que propõe paradigmas novos para que sua narrativa fixada em autores do século passado seja coerente, quando muito falam de culturas originárias sem conhecer os grandes sociólogos africanos e latinos modernos como: Achille Mbembe, Franz Fanon e Anibal Quijano.
A barriga está cheia de uma cultura já superada, até mesmo sem a necessária atualização e sem uma leitura completa das obras sobre as quais as posições se assentam, a psicopolítica de Byung-Chul Han, a esferologia de Peter Sloterdijk (Esferas I: bolhas) e a transdisciplinaridade de Morin não podem ser compreendidas, é um revisionismo raso e incompleto pela fragilidade das leituras.
A crítica fácil e a consequente narrativa se baseiam no caótico cenário social e cultural que enfrentamos, sem uma análise completa e radical, que escape das bolhas as quais estamos presos, que se compreenda e atualize o pensamento para além do dualismo idealista.
De fato, precisamos de poucas palavras e pensamentos, mas profundos que estão esquecidos ou adormecidos: que tipo de esperança temos para a sociedade de hoje? Que tipo de crença temos que não envolvem poder e dominação? Que é ciência é aquela que trata do homem todo para poder tratar também de todo homem? Qual nossa relação com o Outro? (Lévinas, Ricoeur, Buber e outros).
Sem ler Tomas de Aquino continuarão leitor de um livro só, sem ler Santo Agostinho não sairão do maniqueísmo, porque o mal é a ausência de Amor e Perdão.
HAN, Byung-Chul. O que é poder? Trad. Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. 5.ed. Porto Alegre: Sulina, 2015. 120 p.
Além da dor: optar pela vida
Não a guerra, ao ódio e a indiferença significa ir além da dor, muitas vezes é difícil passar por diferenças de opinião, conflitos de cultura e até de ideologias, porém isto é exatamente o que supõe a dor como uma contingência normal da vida.
Byung-Chul Han ao analisar os analgésicos, a anestesia permanente como aquela que limita não só os sentimentos: “A dor é detida antes que ela possa colocar uma narrativa em movimento” (p. 72), e ainda: “O inferno é igual uma zona de bem-estar paliativa” (p. 73).
“Hoje, não estamos dispostos a nos expor à dor. A dor, entretanto, é uma parteira do novo, uma parteira do inteiramente outro” (p. 73), assim leva ao encontro e à vida, “ela permite apenas a prosa do bem-estar, a saber, a escrita à luz do sol” (idem).
Na incapacidade de compreender a dor como um processo de mudança, muitas vezes ela é substituída pela resiliência, que pode fazer sentido com grandes obstáculos ou um grande esforço para superar determinada circunstância de dor, porém em muitos casos é apenas uma teimosia com situações que levam a verdadeira felicidade, aquilo que Sloterdijk chama de uma “sociedade de exercícios”, esforços que não levam a uma superação.
Os gregos tinham o mito de Sísifo (já postamos sobre isto, veja a imagem), um rei astuto que desafiou enfrentar a Morte e Hades, resultando em sua condenação de empurrar eternamente uma pedra até o topo da colina, Albert Camus tem um livro que fala disto e atualiza o tema.
A verdadeira resiliência entende que existe um caminho novo, uma dor “parteira do novo”.
Quando o povo reclamava na passagem do Egito para a terra prometida, dizendo que tinha saudades das cebolas e dos restos que comiam como escravos do faraó, Moisés os repreende e diz (Deuteronômio 30, 19): “Tomo hoje o céu e a terra como testemunhas contra vós de que vos propus a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e teus descendentes, …”, indicando o caminho da liberdade e da construção de sua nação.
O enfrentamento de dificuldades, dores e até mesmo aflições em tempos difíceis, é certo exige resiliência, mas ela não pode ser confundida com o erro, a pura teimosia ou “exercícios” que a nada levam e não favorecem o encontro da felicidade.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
A dor e as cinzas
O período da quaresma são os 40 dias após o carnaval até a Páscoa, como já era parte da igreja primitiva, vinda da Páscoa dos judeus, é anterior ao carnaval, lembra a Páscoa judaica (Pessach), que tem o significado de passagem ou libertação, lembrando o período que eram escravos no Egito.
A Páscoa cristã é uma renovação, lembra a morte e ressurreição de Jesus, estamos lendo e lembrando o livro de Byung-Chul Han (que não é cristão) onde fala sobre o sentido ontológico da dor e seu apagamento atual, esclarecendo: “vivemos numa sociedade com crescente solidão e isolamento” (Han, 2021, p. 59).
O autor cita Viktor von Weizsäcker em seu ensaio “As dores”, onde caracteriza a dor com uma “verdade que se tornou carne”, como um “tornar-se carne da verdade” (pg. 61), e ainda “Tudo que é verdade é doloroso” (idem).
A sociedade sem verdades, afirma o autor na passagem seguinte, é “um inferno sem igual”, e a “dor só pode surgir lá onde um verdadeiro pertencimento é ameaçado. Sem dor somos, então cegos, incapazes da verdade e do conhecimento” (p. 62).
Assim no cristianismo e no judaísmo, as cinzas e a Páscoa como um caminho de 40 dias, surgem para lembrar o pó que somos e o caminho de salvação e pertencimento que devemos trilhar: “dor é distinção [Unterschied]. Ela articula a vida” (pg. 63), “ela marca limites”.
“Dor é realidade. Ela tem um efeito de realidade. Percebemos primeiramente a realidade na resistência que dói. A anestesia permanente da sociedade paliativa desrrealiza [entwirklicht] o mundo” (p. 64) e “a realidade retorna na forma de um contra-corpo viral” (p. 65) escreveu o autor por tratar-se do período da pandemia.
Assim as cinzas e o período da quaresma para os cristãos é renovar o período da paixão de Jesus como seu ápice na semana santa, onde há o ápice da dor da cruxificação e o ápice da renovação que é sua ressurreição, cristãos ou não, esta é a lógica verdadeira e real da vida.
Sem entendermos isto, paralisamos na dor do ódio, das guerras, da indiferença, dos vários tipos de injustiça, da exclusão do Outro enfim, da não vida que toda esta ausência de sentido da dor provoca e assim é necessário lembrar do pó das cinzas, de tudo que passa e que só faz sentido se entendemos a dor não como um fim, mas como uma passagem para a vida.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
O mal-estar civilizatório
A Sociedade do Cansaço é também uma sociedade que levou adultos, jovens e adolescentes aos psiquiatras ou a métodos alternativos, àqueles que tem pouco recursos levou a grupos fechados e de consciência social as vezes duvidosa.
O numero de doenças mentais em crianças e adolescentes devia atentar para esta situação.
Não por acaso Freud escreveu no início do século passado sobre este “Mal estar da civilização” (Freud, 1930) o autor não vai discutir a questão psíquica em si, mas a distante entre os impulsos pulsionais e a civilização, ou seja a cultura contemporânea que leva o homem ao seu oposto tanto quanto a natureza quanto ao seu bem estar.
A intolerância aos erros, equivoco até mesmo científico, a exigência de eficácia em todos os campos, a falta de empatia e amor na vida cotidiana e em especial, de valores que são naturais e levam a uma verdadeira ascese humana, leva aos conflitos emocionais e sociais a limites perigosos.
Ao detectar este mal, o próprio Freud fundador da psiquiatria não levou a humanidade ao divã, e sinto apontou que há males culturais e estes sim devem ser sanados primeiro, não é o que foi feito, neste sentido Sloterdijk tem razão foi possível a “domesticação” humana (Regras para o parque humano), que causou grande discussão na Alemanha nos meses de setembro e outubro de 1999.
Ainda que as próprias religiões vivam sobre este mal civilizatório, a verdadeira ascese que é subir a montanha da sabedoria tendo sobre os pés valores que sustentam esta ascese é necessário para alcançar um verdadeiro estágio civilizatório, é preciso “amar na ausência” é preciso pretender os verdadeiros valores que levam a plenitude e ao verdadeiro e único conforto, empatia e amor.
Quando retiramos isto da sociedade, ela começa a caminhar para o isolamento, o ódio e os conflitos e o “mal-estar” são apenas as consequências da ausência deste estado “natural”, porém uma planta só evolui se cuidada em suas condições naturais: adubo, água e sol adequados.
A sabedoria, a serenidade e o equilíbrio são remédios possíveis para o espírito bélico atual.
FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 73-171. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)
A demora e o sentido da vida
Assim como qualquer apreciação de arte, qual narração que não seja uma narrativa fragmentada, exige um sentido de apreciação, sensibilidade e empatia e isto significa uma demora no tempo de vista, Byung-Chul Han escreveu: “o mundo está carregado de sentido. Os deuses não são mais do que portadores de sentido” (Han, 2016, p. 25), não estou aqui olhando a vida como um panteísta, mas dialogando com qualquer possibilidade de contemplação.
Os mestres da contemplativa foram mestres na demora e na “apreciação” da vida (leia Vita Contemplativa de Byung-Chul Han), para esta apreciação devemos ir na contracorrente do mundo atual onde “a narrativa ria o mundo do nada” (p. 25).
Han desvela a relação que temos com os sentidos na atualidade: “aqui [e agora] tudo tem sentido é a eterna repetição do mesmo, a reprodução do já sido, da verdade impercível. É assim que o homem pré-histórico vive com um presente que perdura” (Han, 2016, p. 26), um presente que não é uma atualização e sim uma repetição, e por isto há a confusão com o virtual, que no sentido etimológico da palavra é aquilo que já é em potencial, e não o mesmo.
O seu sentido mais profundo desvela também a pós-verdade “o tempo será desfactizado (defaktiziert*) e, ao mesmo tempo, desnaturalizado (entnaturalisier) (Han, 2016, p. 28) e a revolução hoje refere-se a um tempo desfactizado, ou seja, a volta a modelos anteriores que não correspondem aos problemas e realidades atuais, por isso é preciso falsifica-la.
Byung-Chul separa o tempo da oralidade do histórico ao compreender “o mítico que funciona como uma imagem”, e vê a história da galáxia de Gutenberg como aquela que “cede lugar ás informações” (Han, 2016, p. 30), para dar a estas uma definição inédita: “na realidade, a informação apresenta um outro paradigma. No seu interior, habita outra temporalidade muito diferente. É uma manifestação do tempo atomizado, de um tempo de pontos (Punkt-zeit)” (Han, 2016, p. 31), sem que ele tenha lido o “paradoxo da informação” de Stephen Hawking como uma previsão de “energias” que escapam do buraco negro.
É preciso separar esta realidade cosmológica desta informação, o megatelescópio James Webb detectou estas “energias” da realidade da informação atomizada e fragmentada, não há contextualização do pensamento, de sua etimologia e de seu significado contextual, um mundo de “informações” desnaturalizadas como aponta Han.
Tudo isto não é filosofia, é o consumo de informação diária de haters, avesso da cultura dos povos e das nações, por sua fragmentação e de uma narração com sentido, a falta de sentido.
Por isto a ansiedade, o consumo de informação de baixo nível, não é só desinformação, porque os que as proclamam não buscam as raízes etimológicas, sociais dos pensamentos que construíram e que podem dar sentido a elas.
*defatikiziert: poderia ser traduzido por de-fato, porém o tradutor teve o cuidado de mudar.
HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo: um ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora, Lisboa: Relógio d´Água, 2016.
A dor hoje
Este é o subtítulo do livro: “A Sociedade Paliativa: a dor hoje” de Byung-Chul Han, ele traça o novo controle que impera sobre as mentes: “Seja feliz é a nova formula de dominação” (pg. 26).
Não são apenas governantes ou poderes locais que proclamam isto, as igrejas e os “coaching” também prometem isto, são os novos vendedores de ilusão, os pais querem impedir os filhos de frustração e dificuldades: “meu filho não vai passar pelo que passei”, “quero dar a eles toda assistência e conforto”, mas a vida é composta de frustrações, obstáculos e revezes.
A psicologia positiva quer evitar qualquer mudança: “não revolucionários, mas treinadores de motivação tomam o palco, e cuidam para que não surja nenhum descontentamento [Unmut], sim nenhuma raiva [Mut]” e Byung-Chul Han lembra um fato histórico relevante: “Na véspera da crise econômica mundial na década de 1920, com as suas extremas oposições sociais, houve muitos representantes de trabalhadores e ativistas radicais que denunciaram o excesso dos ricos e a miséria dos pobres” (pg. 28), lembro que a palavra “mut” em alemão é também coragem, para não se confundir esta tradução de raiva como um ódio.
Lembra que também “as mídias sociais e jogos de computador atuam como anestésicos” (pg. 29), perguntando a um jovem porque tanto computador ele respondeu “relaxo”, mas isto é o contraponto de uma sociedade de ansiosos, imediatistas, depressivos e egocêntricos.
A essência deste tipo de “felicidade” é a coisificação: comprar um móvel novo, um carro novo, trocar de casa, ter um celular avançado e para os mais pobres um tênis de marca ou uma camisa de grife, na impossibilidade, vai escolher ídolos que personifiquem a “coisificação”.
Enquanto “a verdadeira felicidade só é possível rompida [gebrochen]. É justamente a dor que protege a felicidade da coisificação. A dor carrega a felicidade. A felicidade dolorosa não é um oximoro. Toda intensidade é dolorosa. A paixão liga a dor a felicidade” (Han, 2021, p. 31).
E não há maior dor do que dar-se aos outros, George Bernanos escreveu: “Saber encontrar a alegria na alegria dos outros é o segredo da felicidade, escritor e jornalista francês do início do século XX, foi soldado da resistência francesa na Segunda Guerra Mundial e escreveu “A França contra robôs” e “Diálogos das carmelitas” que é uma espécie de “mística inversa”.
Para os gregos, a boa vida não era um estado, mas uma busca contínua, que eles a definiam como felicidade, mas não abandonavam a contemplação, a sabedoria e a razão para viver bem.
“A sociedade da sobrevivência perde inteiramente o sentido para a boa vida. Também o desfrute [Genuss] é sacrificado à saúde elevada a um fim em si mesma” (pg. 34), assim o que ela conduz de fato é uma vida dolorosa de busca pela sobrevivência, ao menos para a pessoa comum, claro que há exploradores, milionários e poderosos que também ansiosamente buscam o lucro e a sobrevivência mais “feliz”, mas precisam de complementos de psicólogos, narcóticos ou remédios.
HAN, B.-C. A Sociedade Paliativa: a dor hoje. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021.
A salvação do belo
A harmonia e a paz têm uma profunda relação, basta ver como são os países antes e depois das guerras, basta ver cidades e até mesmo rios e florestas numa região de guerra.
Não se trata de fechar a chave regiões do planeta, através do clima e da alteração do meio ambiente o reflexo em toda criação é imediata, pois mesmo que queiramos viver numa bolha o contato com o ar, a água e as riquezas é impossível de ser notado.
Isto se transporta também para a cultura e para a política, tudo parece um reflexo do maltrato e da falta de sensibilidade ao que é realmente belo e está em harmonia, muito do desastre cultural de nosso tempo vem desta relação.
Para Hegel, segundo sua visão de estética e por consequência do Belo, é a ciência que se ocupa do belo artístico e não o belo natural, para ele o belo natural é produto do espírito (Geist), e, sendo seu produto, é partícipe da verdade e de tudo que está na natureza, veja que este espírito chama de “transcendência” o que liga os “objetos” ao que existe na natureza, assim é espírito “holístico”, mas não místico e está fora do homem, sendo alcançado pela ciência.
A escultura é considerada uma arte “nobre”, afirma Hegel: “A escultura introduz o próprio Deus na objetividade do mundo exterior; graças a ela, a individualidade manifesta-se exteriormente pelo seu lado espiritual” (Hegel, 1996, p. 113), novamente o exterior é objetivo, uma escultura e não um Ser, o outro e com ele toda sua subjetividade.
Já o simbolismo foi a que “procura realizar a união entre a significação interna e a forma exterior, que a arte clássica realizou essa união na representação da individualidade substancial que se dirige à nossa sensibilidade, e que a arte romântica, espiritual por essência, a ultrapassou” (Hegel, 1996, p. 340).
Para o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han que escreveu Die Errettung des Schönen (A salvação do Belo) elabora um novo fio condutor para a questão do belo, com aquilo que já chamou em outros livros de “falta de negatividade de nossa era”.
Estamos na era do plástico, do vidro e do liso, a “imperfeição” é parte da criação e assim, não é o belo grego, as novas formas que a cultura contemporânea busca, que encontraremos uma nova cultura e um modo criativo de relação com a natureza.
A subjetividade está confusamente lisa, sem interioridade e dificuldades (A sociedade paliativa de Chul-Han), submete-se a um simplismo que quer tudo aplainar e polir, terapias para superar o medo, a angústia, até o culto religioso é o repetitivo e a pura “doutrinação”, leituras sem nenhuma hermenêutica e cheias de exegese antiga e superada, assim como as palestras deve divertir e não ensinar, meios de comunicação são confundidos com os seus fins (que é para-comunicação).
O contato com o belo da natureza é modificado por sua “dominação”, “exploração” e uma cultura do liso se estabelece, Han dá como exemplo a arte de Jeff Koon (ver foto acima), de figuras plásticas idealizadas.
HAN, B.C. Die Errettung des Schönen (A salvação do Belo), DE: Fischer Verlag, 2015.
HEGEL, George W. Cursos de estética. São Paulo: Edusp, 2001.
O nacionalismo, o medo e a guerra
Não é a primeira vez na história que o medo toma conta da sociedade, aparecem as diversas doenças psíquicas, como a depressão e a síndrome do pânico, e as sociedades parecem se fechar, para surpresa geral, a Alemanha sempre tão a frente, tem o avanço da AfD (Alternativa para a Alemanha) que é a volta da ultradireita.
O problema da imigração agora na Alemanha aparece, sob protesto no bordão “somos o cordão sanitário”, quando ocorreu uma moção anti-fluxo imigratória e uma votação apertada da Lei do Fluxo Migratório, a crítica se dirige ao candidato a chanceler federal alemão Friedrich Merz, da União Democrata Cristã (CDU), e manifestações em todo país aconteceram.
O candidato é o líder das intenções de voto para assumir o governo alemão na eleição de 23 de fevereiro, embora conservador se distancia das pretensões ultraconservadoras da AfD.
O significado destes movimentos, leis e crescimento de posições cada vez mais conservadoras é uma reação à sensação de desmoronamento das raízes civilizatórias das diversas sociedades e um crescente movimento de deterioração moral e político das instituições sociais.
Não se trata de uma zona de conforte e sim uma “zona de segurança” diante de uma ameaça cada vez mais presente de uma crise civilizatória sem precedentes, e sem um elemento de paz e esperança que possa amenizar estes processos de mudanças sem limites dos costumes.
O medo é quando as reservas morais de esperança e fé no futuro se contraem, tanto no nível pessoal quanto no social, os jovens que preferem se fechar e ficar “escondidos” em casa são um reflexo desta “zona de segurança” enquanto que os que saem abandonam qualquer limite.
As forças pacificadoras, além de combaterem os extremismos devem também semear a paz e a esperança e diminuir os ataques frontais aos extremismos que apenas os fortalecem.
Não ter medo é também um importante ingrediente destas “batalhas”, mostrar serenidade e tranquilidade diante de situações adversas ajudam a minimizar os efeitos da intimidação e do assédio que caracterizam as forças extremistas, elas se alimentam do medo e da violência.
Os verdadeiras núcleos de esperanças são inclusivos, não se motivam por provocações ou narrativas que defendam suas posições como únicas verdadeiras, não se trata de relativismo, mas de iluminação e desativação do medo que caracterizam as sociedades mais fechadas.
Somente a paz entre os povos pode garantir a esperança de um mundo mais saudável e fraterno para todos, sem exclusões.
A narrativa, a linguagem e a comunicação
O que é narrativa e já estamos num pós-narrativa, sentencia o filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han: “Vivemos hoje num tempo pós-narrativo. Não a narrativa [Erzählung], mas a contagem [Zählung] determina a nossa vida. (Han, 2023, p. 48).
Para entender melhor esta frase, apenas para didática categorizamos o gênero literário em 3: narrativo ou épico, lírico e dramático, o narrativo está ligado a “contação” (zählung) de uma história e por isto não deve ser confundida com as narrativas atuais (Erzählung, em alemão), veja que elas estão diferenciadas pelo prefixo “Er”, assim a contação devem ter um narrador, uma trama, os personagens no temo e no espaço, isto é, num contexto.
O lírico também é um gênero que se refere a textos com subjetividades e conotações, podem ser em prosa ou verso, porém também são um tipo de contação diferente das narrativas modernas, muitos são os autores que reclamam a falta de poesia, e Heidegger lembrou que esta é uma outra função da linguagem.
O texto dramático é também um gênero onde se apresentam atos, cenas, rubricas e falas, por isto é parte de uma forma teatral ou de a-presentação, no sentido que a presentação é ao mesmo tempo uma contação de uma história e sua negação, uma vez que envolve a ficção.
A disputa entre nominalistas e realistas na baixa idade média (séculos XI a XIV), terminou por negligenciar a importância da linguagem, porém a viragem linguística do final do século XIX fez retornar sua importância em estudos como a gramática, a semiótica, a etimologia e de modo mais amplo a linguística.
O início da modernidade é marcado pela ruptura entre a função metafísica da linguagem e o uso da objetividade como modo de expressão, porém esta é apenas uma das funções da linguagem, o linguista russo Roman Jacobson lembra das funções: fática, poética, conativa e metalinguística, na qual se inserem por exemplos os códigos modernos: morse, digital e quântico, onde “o “código explica o próprio código, ou seja, a linguagem explica a própria linguagem”, e este deve ser o único contexto onde se aplicam os conceitos de emissor/receptor.
A viragem linguística, ocorre em meio a crise do pensamento idealista e positivista na modernidade: Husserl, Heidegger, Hanna Arendt são fundamentais embora sejam mais lembrados: Noam Chomsky, Mikhail Bakhtin, Michel Foucault e Ferdinand de Saussure.
Retomando a citação inicial de Byung-Chul Han: “A narrativa é a capacidade do espírito de superar a contingência do corpo”, esta capacidade de superar a contingência do corpo, está ligada não apenas a lembrança da linguagem poética e conativa, porém aos sentidos e valores espirituais que a modernidade abandonou, sob o pretexto de criar uma visão “objetiva”.
A contação das histórias dos povos, de suas culturas e religiões assim são fatores primordiais para a superação de um momento tão dramático da história da comunicação, onde a própria comunicação fruto de milênios de evolução da cultura humana, parece estar em cheque.
Proclamar as palavras, histórias e crenças é um direito universal, as tentativas de impedir estes direitos não é apenas uma motivação para divisões e ódios, é combustível para as guerras.