Arquivo para outubro, 2024
A ausência de equilíbrio e do Ser
Uma análise da cultura ocidental não pode ficar sem a compreensão da Ira, diversos autores analisaram a questão, Byung-Chul Han lembra que uma das primeiras palavras na Ilíada de Homero que começa assim: “Aira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades”, mas não é só.
Aristóteles define raiva como: ““um desejo, acompanhado de dor, de vingança percebida, em razão de uma desconsideração percebida em relação a um indivíduo ou seu próximo, vinda de pessoas das quais não se espera uma desconsideração” (2.2.1378a31-33) escreveu sobre Retórica, porém Peter em seu ensaio Ira e Tempo ressignifica esta visão psicanalítica que reduz o sentimento a uma mera válvula de escape para desejos não realizados e a redescobre como um conceito político do século XXI (imagem parte da capa).
Diz o autor “Enquanto a ligação entre espírito e ressentimento era estável – a exigência por justiça para o mundo – seja para além da vida terrena, seja na história que acontece – pôde se refugiar em ficções que foram aqui minuciosamente tratadas: na teologia da ira de Deus e na economia timótica mundial do comunismo” (Sloterdijk, 2021), que toma um tema polêmico.
O certo é que há ira dos dois lados, e não nelas não reside o “já” mas “não ainda” que tratou-se no post anterior, porque ambos pensamentos se acham filiados ao idealismo moderno, e esta é a critica central a Kant e ao idealismo alemão de Hegel, não apontam para uma justiça.
Nela há uma ausência da dor, que antecede a com-paixão, mais que ato de misericórdia (miseri cordis, do coração), é um ato de adesão e justificação das periferias existenciais, onde a dor da justiça reside, mas como existencial também reside nos corações desiludidos e cansados.
A contemplação e o já e não ainda, que atinge tanto a esfera terrena como a divina, exige uma vita activa que é aquele do equilíbrio psicológico, familiar e social que não exclui o outro, não raramente aqueles que defendem a justiça apenas terrena ou apenas divina, não tem uma ação pró-ativa que leve ao encontro da dor, amplamente analisado na “Sociedade paliativa” de Byung-Chul Han, eliminados a dor pela transferência ao “paraíso” terreno ou divino, sem nossa com-paixão.
O equilíbrio do Ser, que se já se realiza, mas não ainda (completamente), tem algo a dizer do justo, do bem comum e da paz.
SLOTERDIJK, P. Ira e tempo. Trad. Marco Casanova. São Paulo: Estação Liberdade, 2021.
Ontologia, idealismo e a verdade
O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser” (questão central de Heidegger), ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).
Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, pg 336).
A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).
Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.
Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).
“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).
“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).
Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Noética, Ontologia e a guerra
Para Platão noésis é superior à dianóia, que é discursiva e aparentemente lógica, enquanto a primeira é uma elevada atividade mental possível, habitando a esfera do Bem e da Harmonia.
É uma possibilidade de acesso ao mundo “divino” (o sumo bem de Platão que está no eidos), é transcendente, absoluto, além do raciocínio humano comum, os filósofos a perseguem sem ao menos tocar na questão da crença de um Deus superior onde a noésis “habita”, não é Ser, mas atitude mental.
Já a dianóia enquanto habita um raciocínio lógico, matemático e técnico fica preso ao que a mente consegue captar do mundo terreno, mesmo admitindo equívocos, verdades não absolutas e as vezes confusas, elas habitam o cotidiano do humano, também desligado do Ser.
Há uma linha fundacional que vai da fenomenologia à antropotécnica de Peter Sloterdijk e Byung-Chul Han, envolvendo essencialmente a questão do Ser, a ligação entre a noesis e o noema, fragilizada pelo bombardeio de narrativas que o universo digital proporcionou, mas o esquecimento do ser, a ausência de interioridade levaram àquilo que Chul-Han chama de “desauritização” e a “pura facticidade” dita assim:
“O desencantamento do mundo se expressa como desauritização. A aura é o brilho que eleva o mundo para além de sua pura facticidade, o véu misterioso que envolve as coisas” (Han, 2023, p. 80).
Não se trata de negar a facticidade, mas de não permitir sua noesis, isto é a compreensão inicial na mente em toda sua aura, ela faz uma “seleção narrativa”, no dizer de Byung-Chul (falando sobre a fotografia): “Ela estende ou encurta a distância temporal. Ela pula anos ou década. A narratividade se opõe à facticidade cronológica” (Han, 2023, p. 81).]
São estas as mentiras das guerras, são de todas as guerras porque escondem seus reais motivos, mas particularmente das guerras atuais porque usam narrativas para mudar o que é evidente se lido na facticidade cronológica, em exemplo bem atual, o bombardeio na semana passada de um hospital de idosos na Ucrânia (foto) e o bombardeio de bases da ONU no Líbano, isto tem correlação com a crueldade e a ausência de qualquer narração que as justifique.
A paz está nos corações e autoridades que mantem a aura da esperança, o espírito solidário.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Heidegger e a tonalidade afetiva
A intencionalidade é inerente ao Ser, é uma manifestação da interioridade.
Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista ou substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva holística daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.
Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.
Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.
A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.
Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).
Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.
Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).
Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.
Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Verdade, noética e o Mal
Nos prolegômenos do primeiro volume de Investigações lógicas, Husserl que havia recebido forte influência de Franz Brentano, pai da psicologia social, vê como problema o relativismo e suas bases na visão de mundo turbada, assim à relatividade da existência de um mundo não é objetiva nem subjetiva, mas “a unidade objetiva completa que corresponde ao sistema ideal de todas as verdades de fato, e dele é inseparável” (HUSSERL, 2005, p. 136).
Isto porque cada tipo de objeto tem desdobramentos próprios possíveis, por assim dizer, tem um método próprio prescritos a priori por leis de essência determinadas pelo eidos da objetividade em questão (Husserl, 2006, 309), isto quer dizer que é a essência da objetividade que pré-determina o tipo de desenvolvimento concordante que se tem da experiência dele.
Pode haver a vivência da evidência nesta experiência do objeto, e isto colabora com seu status de ente enquanto um “ser verdadeiro” (Husserl, 2006, p. 309), aquilo que Husserl chamava de “Lebenswelt”, uma lógica da vida, neste caso da vivência experimentada com o objeto.
Assim um objeto que é o “puro X” se mantém estável em meio à multiplicidade de caracteres noemáticos, que se perfilam no decorrer de uma experiência, o objeto visado no pensamento pela consciência humana, ele precede a primeira ideia intuitiva que é a noesis (pensar X).
Essa visão noética é uma síntese de identidade, conceito central para o estabelecimento do objeto “efetivo”, “verdadeiro”, a objetividade apreendida em doação evidente, numa síntese de identidade concordante, é efetivamente, escreveu Husserl:
A todo objeto “verdadeiramente existente” correspondente por princípio (no a priori da generalidade eidética incondicionada) a ideia de uma consciência possível, na qual o próprio objeto é apreensível originariamente e, além disso, em perfeita adequação. Inversamente, se essa possibilidade e garantida, objeto é o ipso verdadeiramente existente” (HUSSERL, 2006, p. 316).
As sínteses envolvidas no pensamento fenomenológica, para o estabelecimento do “ser” ou do “não-ser” dos objetos correlatos noemáticos são “intencionalidades de ordem superior”, é aquilo que Husserl retirou do pensamento neotomista de Franz Brentano, livra-se do psicologismo, do eidos que temos do bem e do mal ainda escolástica do pai da psicologia social.
A intencionalidade de doação evidente dos aspectos ainda não presentes do objeto formam um horizonte intencional, na visão de Husserl, traz por sua vez, suas potencialidades já pré-determinadas, assim são falsas as visões fáticas de guerra e paz, de demônio e do mal.
São as intencionalidades mal-formadas (no sentido que não tem uma verdade noética), a verdade enquanto “ser”, enquanto “o verdadeiro” nas leituras fáticas e idealistas, são para Husserl uma “efetividade” (Wirklichkeit) já que guarda coerência em seu núcleo.
Assim o pensamento tradicional pensa ser ortodoxo ao se referir ao outro como “mal” ou como “demônio”, quanto na verdade esconde a intencionalidade noética de seu interior.
Husserl, E. Investigações lógicas. Primeiro volume: Prolegômenos à lógica pura. Tradução de D. Ferrer. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
Husserl, E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006
Interioridade, verdade e conflitos
O abandono de concepções que levam a humanidade elaborar-se interiormente elevando os pensamentos e espiritualidades é apontado em inúmeras leituras contemporâneas, temos aqui postado aqui Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Peter Sloterdijk, Edgan Morin e Byung-Chul Han, entre outros, é claro.
Porém queremos aqui partir da questão do método e retornar a fenomenologia de Husserl, um dos primeiros a questionar “A crise das ciências Europeias e a fenomenologia transcendental – uma Introdução a Filosofia Fenomenológica” (edição brasileira da Forense Universitária, de 2012) que aponta esta questão e que na terceira parte esclarece a questão transcendental e os equívocos da ciência contemporânea.
Assim aponta seus questionamentos dos conceitos de “experiência exterior” e “interior”: “O absurdo principial de querer considerar seriamente homens e animais como realidades duplas, como vínculo entre duas realidades de espécie diversas, equiparáveis quanto ao sentido de realidade, e querer, assim, pesquisar também as mentes pelo método científico-corpóreo, ou seja, de modo natural-causal existindo espaço-temporalmente como corpos – resultou na pretensa obviedade de um método a configurar de modo análogo ao da ciência da natureza” (Husserl, 2012, pgs. 177-178).
Neste sentido vai questionar tanto o dualismo cartesiano como o fundamento de uma ciência que cria um “paralelismo” onde: “a natureza físico-matemática é a natureza objetivamente verdadeira; essa natureza deve ser a que se anuncia nas aparições meramente subjetiva” (pg. 179), e sua questão levantada é porque “não é a natureza do mundo da vida, este mero elemento subjetivo da experiência exterior, mas esta é contraposta à experiência exterior ?
A interioridade na filosofia é um aspecto fundante desde que observemos a questão ontológica do Ser, já presentes em Platão e Aristóteles, e que em Santo Agostinho vai ter um papel central na sua visão de mundo, onde busca um sentido profundo de “beatitude” da alma.
Esta interioridade reduzida a interior e visões imediatas de mundo, separam o homem do mundo, dos outros e passa a se projetar excessivamente sobre os objetos, “as coisas” até o ápice do mundo digital, chamado por Byung-Chul Han de “não coisas”, para falar de algo em alta atualmente, diz o autor: “inteligência artificial não pensa”.
Assim nos movemos mecanicamente para interesses para conflitos externo e que nos levam a posicionamentos cada vez mais litigiosos sobre valores e não-valores que justificam a violência.
O problema que aponta Husserl, é que tudo isto parte de um “método” ou seja o modo particular como olhamos o exterior e exercemos nossa interioridade, contrapostos nas origens por Brentano e Dilthey: “como em geral no século XIX, no tempo dos esforços apaixonados para produzir uma psicologia rigorosamente científica, apresentável ao lado da ciência da natureza” (pg. 180), mas este psicologismo é superado pela crítica de Husserl a Brentano e depois por Hans-Georg Gadamer a Dilthey, como o vê como um historicismo romântico.
O que é o homem interiormente, porque esvaziou-se na modernidade, qual o retorno a vida ?
HUSSERL, E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Trad. Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2012.
A verdade e o Ser
Para Sócrates a verdade não estava com os homens, mas entre os homens, com isto se opunha a Protágoras que dizia o “homem é a medida de todas as coisas”, o relativismo dos sofistas.
Heidegger atualiza o conceito de verdade do ser (alétheia) e esclarece o mal entendido que o ser como presentar-se ao ser do homem, o equívoco trata-se que poderia ocorrer que seria tomar a abertura do ser (geschlosenheit) como elemento determinantes para a compreensão da verdade do ser (alétheia), a verdade não é do homem, mas do ser.
Esta relação dinâmica própria da re-velação do ser (re velar, ou seja, outros véus) não se trata da “função de sujeito transcendental” que tem poder das chaves para abrir o verdadeiro e o não verdadeiro, que fica no campo da lógica binária, mas sim o poder de desvelar o ser.
A ambivalência do jogo de tensões entre o Ser e Aparência fica no campo da re-velação, onde a verdade é também ambivalente, porém se pensada como Ser, ambas podem conduzir a uma nova re-velação diz, Heidegger: “o ser, como aparência, não é menos poderoso do que o ser, como re-velação e descobrimento (unverbogenheit)” (Heidegger, 1984, p. 254).
De certo modo, tanto para Descartes como para Kant, Heidegger os vê como olhando o mundo como algo simplesmente dado, como o mundo físico e material, visto que a ontologia tradicional se estrutura deste modo, o ser vive uma relação entre a coisa e o intelecto.
Já Tomás de Aquino via assim, e o que muda a partir de Franz Brentano é uma sub-categoria tomista da consciência, que é consciência de algo, e depois Husserl estende para uma volta a “coisa em si” (a natureza para Kant e Descartes) como intencionalidade e redução (aidética, nome que vem de ideia, mas para os gregos) que para ele é criar um objeto mental.
Heidegger desvela esta verdade do ser, ao perceber que há uma ser ek-sistente de um ser que se agita de um objeto para outro na vida cotidiana, desviando-se do mistério do Dasein.
Não há em Heidegger uma pura contemplação do Ser e sim uma relação entre o Ser e o Ente, entre aparência e essência, porém, a nosso ver, ainda permanece um velamento de sua finitude, de ainda permanecer um ser-do-ente, ou seja, uma coisa ainda que tenha relação ontológica, a transcendência permanece no objeto, o que somos além do ente?
Retorna-se a pergunta parcialmente respondida de Heidegger: “O que preserva o deixar-se nesta relação com a dissimulação?”, não quero forçar uma hipótese teológica, mas deixo no ar: o puro Ser pode entrar no Ente, sem perder sua essência, o que retornará desta finitude?
Heidegger, M. A tese de Kant sobre o ser. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1984.
As guerras e as narrativas
Ésquilo escritos da Grécia antiga é o autor da frase: “a verdade é a primeira vítima da guerra”, o general russo aposentado Andrey Gurulyov, falou no canal Russia-1 apontando quais seriam os alvos da Rússia, que se preparava para uma grande guerra, a Jihad islâmica é um grupo de forte influência no Irã e que prega o fim de Israel, seu discurso é teocêntrico e não geopolítico.
São apenas algumas meias-verdades sobre a guerra, claro não escapam Israel e a Ucrânia que são aliados do ocidente na luta geopolítica econômica de preservar direitos de empresas e grandes capitais, por isso os dois lados tem dificuldades de entender a paz “civilizatória”.
No diálogo de Platão Teeteto, apontado com um dos primeiros na história sobre o relativismo, aparecem conjugadas as ideias de aparência, verdade e alma; a primeira exigência de Sócrates para iniciar o diálogo é que Teeteto abandone suas ideias iniciais, e ao perguntar sobre o que é conhecimento e obtendo a resposta sobre a Geometria e demais artes, Sócrates responde com ironia: “És nobre e generoso, amigo, pois te pedem algo simples e tu ofereces múltiplas e diversas coisas”.
A segunda questão é como chegar ao conhecimento, e a resposta de Teeteto é a “sensação” (ou percepção) que Sócrates indica que devemos abandonar a “familiaridade” que temos das coisas, diz no diálogo: “Parece-me que aquele que conhece algo percebe aquilo que conhece, e para dizer a coisa tal como agora ela se manifesta, o conhecimento nada mais é do que sensação.”
Assim são dois passos primários e essenciais para a verdade, a segunda resposta é um avanço sobre a primeira, pois assim os gregos as considerava: “Sobre isto todos os sábios, um atrás do outro, exceto Parmênides, devem concordar: Protágoras, Heráclito, Empédocles e, dentre os poetas, os que estão no topo de cada uma das composições, Epicarmo, na comédia, e Homero, na tragédia…”, citando os gregos até aquele período, os chamados pré-socráticos.
Assim até então, a verdade estava circunscrita a sensação, ao iniciar o diálogo sobre Protágoras chega a ideia do primeiro equivoco da verdade relativa: “O homem medida de todas as coisas não seria, ao fim e ao cabo, um homem confinado ao círculo restrito de sua experiência mais imediata e do que apenas a ele parece verdadeiro” e isto remete a aparência.
Usando esta ideia de “familiaridade” com as coisas, Platão abre uma crise na ideia dos gregos sobre conhecimento, e assim abrir um caminho novo ontológico sobre a alma, partindo de Homero “coração da alma” (194c), dificilmente haveria ocasião para erro, pois esta (a alma) prontamente faria a identificação correta da impressão atual, rompendo preconceitos.
PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
O perigo cresce de uma guerra total
A resposta do Irã a morte do líder do Hezbollah com ataques de quase 200 mísseis na terça-feira passada (01/10) pode ampliar a escalada entre as duas potências do Oriente Médio, em meio a ataques feitos durante a semana às bases do grupo terrorista no sul do Líbano.
A França tomou uma posição dura contra a resposta de Israel, que especula-se poderia até mesmo atacar as bases nucleares do Irã, que não tem a bomba (acredita-se), mas tem uma usina e laboratórios onde poderiam estar preparando a bomba.
Diferente das outras potências que anunciam ter a bomba para intimidar os inimigos, Israel e Irã preferem esconder, e o Irã sofreu inúmeras sanções por e visitas da ONU para que não tenha a bomba, mas seus aliados, entre eles a China e a Rússia podem tê-la ajudado neste intuito, e um ataque de Israel visaria estes alvos, especula-se.
Na Ucrânia, algumas de suas “fortalezas” no leste do país (próximas a Kharkiv) caíram em mãos russas, o tom de ameaça da Rússia já ultrapassa as fronteiras da guerra, com ameaças abertas a Polônia e outros países que possam ajudar a Polônia.
Ali também o tom de ameaças e crises diplomáticas crescem com alinhamentos e potências mundiais se posicionando, no front econômico a ampliação do BRICS (inicialmente Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, ampliado com Irã, Emirados Árabes, Arábia Saudita, Egito e Etiópia) pode favorecer alianças perigosas para a OTAN e Israel.
Por isso não faltam diálogos que forcem Israel a não revidar ataques ao Irã, seus tradicionais aliados, como a França que se posiciona radicalmente contra, e os Estados Unidos que embora envolvido na proteção de Israel, também não deseja esta escalada perigosa e ameaçadora da paz mundial.
Espera-se um maior empenho pela paz pela gravidade destas ameaças, e que haja uma difícil reversão da escalada que caminha para uma crise civilizatória absurda em que todos sofrerão.
Totalitarismo e vidas inocentes
Na guerra a primeira vítima é a verdade, frase atribuída a Ésquilo da antiga Grécia, porém o trágico é a proporção de vítimas inocentes, almas puras e elevadas que a guerra consome por causa do pavor que líderes totalitários tem da liberdade, de pessoas livres e de humanismo verdadeiro.
São inúmeros os casos, desde hospitais e escolas que são bombardeados até casos de tortura e requintes de crueldade com pessoas que trariam grandes frutos para uma humanidade elevada e é exatamente por isso que mentes doentias as combatem.
Descobri entre estes vários nomes, através de uma aluna, uma judia de nome Etty (Esther) Hillesum, uma holandesa filha de pai holandês Louis Hillesum e mãe russa Rebecca Bernstein (Riva), professor de línguas antigas, de quem provavelmente nasceu o interesse por línguas, mas vai estudar línguas eslavas talvez inspirada na mãe, e depois tira mestrado em Direito.
Seus diários e cartas são escritos durante a ocupação Nazista em Amsterdá, entre seus primeiros livros que tomei contato estão “Une vie bouleversée” (Uma vida virada no avesso) e 15 dias de orações com Etty Hillesum (esta publicação em português pelas Paulinas).
Uma de suas frases “dentro de mim há um poço profundo”, onde dentro dele existe areia e pedras que impedem a chegar a algo mais límpido revela um caminho místico e a busca que há dentro dela de atingir uma interioridade mais profunda, é um refúgio, diria uma resistência espiritual ao nazismo e ao clima que era gerado a sua volta.
A relação com psicoquirologista Julius Spier (que tinha influência da Karl Yung), inicialmente para tratamento e depois há um envolvimento pessoal, desperta sua intelectualidade já que em março de 1941 começa a escrever seu primeiro de 8 diários.
Em junho e julho de 1942 aprofunda seu diálogo místico, escrevendo: “Deus se tornou um interlocutor …” e é neste contexto que se pode falar de seus escritos sobre a oração.
Escrito em “15 dias de oração com Etty Hillesum”: “Ele me tomava pela mão, por assim me dizer, e me falava: “Pronto é assim que se deve viver” sobre o primeiro dia, dirá sobre o segundo: “uma hora de paz, é preciso aprender … vou voltar-me para meu interior .. uma meia hora de ginástica e uma meia oração de meditação”, terceiro dia: “Hineinhorchen: escutar interiormente”, escutar a si mesma, aos outros e a Deus.
Assim vou seguinte o itinerário de Etty: quarto dia: “perdoar meus pais e seus limites”, quinto-dia: “entregue a si mesma e á própria guarda”, enfim de uma alma pura e inocente que indica não apenas um caminho de orações repetitivas e sem sentido, mas um caminho interior.
Uma das milhões de alma inocentes morreram em campos de concentração, ela encontra ainda jovem com 29 anos sua morte no campo de Auschwitz, seus escritos são puros e profundos, lembra a pureza das crianças e das pessoas que vivem uma humanidade humana.
FERRIÈRE, P., MEEÛS-MICHIELS, I. 15 dias de oração com Etty Hillesum. São Paulo: Paulinas, 2016.