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A trégua necessária
As dificuldades internas de uma guerra não são diferentes das externas: morte, destruição e falta de um mínimo de miseri-cordis (coração humilde capaz de sentir a dor do Outro), entre as diversas guerras do planeta, duas apontam para este “esgotamento” das forças internas.
A Rússia segue destruindo alvos militares e civis, estações de energia e alvos civis não são poupados numa guerra sem tréguas (a da Páscoa fracassou), também no oriente médio a destruição de alvos militares não poupa alvos civis, uma verdadeira crise humanitária.
A ameaça entre Irã e Israel é cada vez mais crescente, porém há uma negociação com o grupo Hamas de um período de trégua de 5 anos e isto pode viabilizar um retorno a serenidade naquela região, também a guerra no leste europeu segue um caminho parecido, graves ameaças e ao mesmo tempo possibilidades de tréguas no campo diplomático.
Zelensky, Trump, Macron e Starmer (Reino Unido) (foto) se encontraram no Vaticano durante a cerimonia de enterro do papa Francisco e depois Zelensky e Trump falaram pessoalmente.
As consequências já são visíveis no campo militar: um crescente armamento e uma ameaça a estabilidade mundial tanto no campo estrutural (econômico e humanitário) como no campo político, as armas usadas para a luta política já não são mais propostas e discursos, ultrapassam o campo da legalidade, da justiça e do bom senso.
Uma trégua pode recuperar a seriedade e serenidade das lideranças políticas, é preciso estar disponível ao diálogo sincero, ao próprio de propostas justas e razoáveis, eliminar o “inimigo” a força é o caminho de mais perdas humanitárias e autorização para regimes autoritários.
Os potenciais imperiais desfilam seus feitos tecnológicos e militares: aviões e navios de guerra cada vez mais poderosos, ameaçadores e com poder de destruição maior, uma insanidade.
Há no meio a tantas ameaças vozes capazes de fazer apelos para a paz, os diplomatas entram em campo e tentam negociações, uma trégua que se avista no horizonte ajudaria a esfriar um pouco os ânimos belicistas, ninguém ganha uma guerra hoje, a humanidade perderá como um todo e a morte de civis inocentes será inevitável.
A guerra econômica também não ajuda, não é um caminho para nada, grandes acordos sobre o comércio e a troca de bens entre nações fazem parte de um mundo globalizado, onde as relações apenas nacionais não são mais possíveis, nem na economia nem na política.
Resta acenar para uma trégua, ainda que sobre enormes suspeitas, ela ajuda acalmar os espíritos e dar um alento para a paz.
A virada linguística e a retomada do Ser
Completando o percurso introdutório das ideias da modernidade, que conforme postamos vem das questões dos universais x particulares (querela medieval), depois nominalismo x realismo (filosofia do final da idade média) e finalmente a questão da razão moderna.
O realismo filosófico da modernidade se viu independente da ontologia da realidade em relação aos esquemas conceituais, de crenças ou mesmo de pontos de vista, tipicamente a verdade é uma questão de correspondência entre nossas crenças e a realidade.
Porém o final do século XIX e início do século XX, tanto através da fenomenologia e da hermenêutica estes conceitos voltam a entrar em xeque, e tanto o ressurgimento da ontologia quanto a viragem linguística (que é possível fazer uma conexão com o nominalismo) são dois fenômenos novos na filosofia onde se questiona a “ilusão do sentido” e a “tarefa interpretativa” pressuposto pela “virada linguística” e pela fenomenologia.
Filósofos como M. Heidegger (1889-1976) e L. Wittgenstein (1889-1951) levando esta virada linguística a últimas consequências questionam temas como o de sujeito (a questão do Ser), verdade (além da lógica formal) e racionalidade através da epoché fenomenologia (colocar entre parêntesis) e da redução eidética, a busca da essência como estrutura invariável de um fenômeno.
Por isto, todo o percurso do pensamento foi necessário, e também sua desestruturação com o idealismo moderno (eidos gregos com visão racionalista), a retomada do Ser o reintegra.
Filósofos como Duns Scotto (1266-1308) são recuperados (realismo moderado) e é possível traçar sua influência desde René Descartes e Leibniz até M. Heidegger, para ele “o ser humano perdeu a intuição direta da essência dos entes” e isto torna sua filosofia bastante atual, vendo presente no ente a intuição direta essência.
Esta essência é interpretada no contexto em que a obra foi escrita e não no contexto que é lida, assim assinalou Paul Ricoeur (2010, p. 24), é a identificação de como o que “outrora foi”, o re-efetuar o que é um des-distanciamento, e não o distanciamento puro supondo-o neutro.
Assim o interprete deve ser visto no seu contexto como um Outro, junto a sua essência.
Somente esvaziando o ego racionalista, recuperando nossa miseri-cordis (humildade de coração) pode o fazer o homem moderno sair da oposição dualista e falsa do realismo moderno, devolvendo-lhe a dignidade de sua cultura e do seu ser, fora da visão idealista.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo/Sein und Zeit. Petrópolis: Vozes. 2012.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Sobre o ente e a essência: a ontologia escolástica
Anselmo da Cantuária (1033-1109) é anterior a Tomás de Aquino (1223-1274) e influenciado por Boécio (480-534), já traçados em posts anteriores o caminho de Plotino até Boécio, passando por Porfírio (234-304 dC), e o seu nome verdadeiro seria Malco ou Telec, ele traduziu Enéada.
A influência de Aristóteles e Platão é grande, porém a tentativa de síntese de Aristóteles e Platão já em Isagoge de Porfírio, que foi traduzida para o latim por Boécio, sendo atribuída a Tomás de Aquino e por consequência a igreja católica é um equívoco, foi Anselmo da Cantuária o fundador de fato, da filosofia escolástica, com sua onto-teológica e seu “argumento ontológico” de Deus.
Deve-se a Boécio a “querela dos universais”, se eles existem ou são apenas nomes, o que dividiu o nominalismo e realismo, da Baixa Idade Média e inicio da Renascença.
Na adolescência Anselmo não teve aprovação do pai para ser monge, após uma doença, ele sai de casa e vai para a Normandia, lá seu conterrâneo Lanfranco o recebe como noviço na Abadia de Le Bec em 1059, e em 1063 se torna prior, quando escreve as obras Monológio e Proslógio.
Le Bec é por este período um centro de estudos, mas inicialmente protegido de Guilherme II, recebe terras que depois serão tomadas, é deste período as primeiras investigadas dos reis sobre as nomeações de bispos e até de papa (é uma história a parte), porém nomeado bispo da Cantuária (Canterbury, é até hoje é sede do bispado anglicano) (foto).
Ele se submete ao papa Urbano II (na mesma época havia Clemente III, considerado antipapa), foi o primeiro inclusive a falar contra o tráfico de escravos em 1102, num concílio em Westminster (revendo os fatos), não se submeteu à monarquia inglesa, e teve 2 exílios.
Em Proslógio, a existência de Deus é um “a priori”, ou seja, através da razão, sem recorrer à experiência, parte do conceito que “um ser do qual não se pode pensar nada maior” (Deus) e argumenta que*, para ser o ser mais perfeito, Deus deve existe tanto na mente como na realidade.
Tomás de Aquino sofreu influência de Santo Anselmo, e em sua obra de juventude “O ente e a essência” ele descreve a questão do ser e da realidade, distinguindo ente (aquilo que é, o ser) de essência (o que algo é), nela esclarece como o intelecto percebe inicialmente o ente e sua essência, explorando a relação entre substâncias simples e compostas.
Para Duns Scotus (1265/1266-1308), um realista moderado para alguns, um nominalista na minha visão, os universais existem como entidades “in rebus” (nas coisas), mas não são separados deles como as ideias platonistas, e sim como uma “ratio” (razão) do intelecto.
Sua principal tese descrita em Ordinatio I, parte 1, qq. 1-2) é que “se há entre os entes um ente infinito atualmente existente”, para ele os universais “bondade” e “verdade” serão reais, isto está expresso biblicamente: “caminho, verdade e vida” (Jo, 14-6) e “só um é o bom” (Lc 18,19).
ANSELMO, St. Proslógio. Trad.: Ângelo Ricci, Ruy Afonso da Costa Nunes. São Paulo, SP; Nova Cutlural ed., 1988. (Coleção os Pensadores, Anselmo/Abelardo). (4ª. edição) (pdf)
AQUINO, S. T. O Ente e a Essência, R.J.: Mosteiro de São Bento, Editorial Presença, 1981.
SCOTUS, John Duns. Seleção de Textos. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
* ”Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não existe porque “o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe”?4 Porém, o insipiente, quando eu digo: “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, ouve o que digo e o compreende.” (4 Salmo 13, 1). Texto na Coleção Pensadores.
Princípios da história do Ser e eternidade
Na filosofia não há como referir-se ao Ser sem abordar o ente e a essência, dita de diferentes formas pelos filósofos durante o processo civilizatório e de construção do conhecimento, há pontos que podem ser traçados nesta trajetória.
Para os gregos, a partir de Sócrates, o ser (visto como o que constitui ser humano) reside na alma ou razão, que não são separadas, e a consciência é a fonte tanto intelectual como moral e o homem é capaz de transcender o mundo material e buscar a verdade e a virtude, para ele a alma é essência e não está separado do corpo (ente ou forma) é obstáculo para as virtudes.
Platão elabora o “ente” (o ser) é aquilo que existe, enquanto “essência” (a forma) é a natureza fundamental e imutável que define esse ser, enquanto Aristóteles a essência de um ser é a sua natureza fundamental, o que o define e o torna o que é, ela é a forma que se une à matéria para formar uma substância, que é o ser individual.
Assim o transcender de Sócrates some, Platão então elabora o Sumo Bem como a essência do que é bom, justo e verdadeiro, enquanto Aristóteles o define como busca da felicidade, o bem mais alto que o ser humano busca, também cria a ideia do motor imóvel, causa primeira de tudo que existe e do universo, Platão defende a imortalidade da alma, já Aristóteles está preso a ideia da finitude humana onde tudo é mortal.
O neoplatônico Plotino (204-270 d.C.), vê a alma concebida como uma ponte entre o mundo inteligível (o Uno e o Intelecto) e o mundo sensível, é a imagem do Intelecto e da força vital que impulsiona a vida e o motivo, em seu livro Enéada VI:
“E nós, o que somos nós? Somos aquele ou somos o que se associou e existe no tempo? Na verdade, antes de acontecer o nascimento, estávamos lá [no inteligível], sendo outros homens e, alguns, também deuses: almas puras e intelectos unidos à totalidade da essência, partes do inteligível, sem separação, sem divisão, mas sendo do todo (e nem mesmo agora estamos separados). Mas agora, daquele homem se aproximou outro homem, querendo ser. E nos encontrando, pois não estávamos separados do todo, ele se revestiu de nós e acrescentou a si mesmo aquele homem, o que cada um de nós era então” (Plotino, VI, 4, 14, 16-25).
Plotino vê a Alma em vários “estágios”, é ela que conecta Espírito e Corpo, a natureza superior e sua materialidade), é uma criatura de Deus, criada à sua imagem e semelhança, composta por corpo e alma imortal, Agostinho de Hipona reelabora isto como o Ser é uma criatura de Deus, criada à sua imagem e semelhança, composta por corpo e alma imortal, a vê assim fora de sua finitude corporal.
Já o corpo em santo agostinho possui uma natureza dupla, a primeira física e material, como o seu corpo em que ele viveu e a segunda refere-se à igreja como metáfora de corpo de Cristo.
Penso nesta metáfora no sentido da cosmovisão, também o teólogo do século XX Teilhard de Chardin via assim, todo universo é corpo de Cristo, ou seja, não a igreja itinerante, mas aquela eterna e viva na imensidão do universo, assim o seu corpo é eterno, e este é o significado maior da ressureição, Jesus teve uma vivência temporal, uma ex-sistência, mas Ele é eterno.
Heidegger como leitor de Duns Scotus
Pouco se sabe sobre a origem do pensamento de Heidegger tendo como influencia Duns Scotus, a primeira observação é que sua tese de habilitação (mestrado) foi sobre a doutrina das categorias e da significação de Duns Scotus (Die Kategorien und Bedeutungslehre des Duns Scotus, 1916) que só isto vale uma profunda influência.
Claro a influencia direta foi de seu professor e mestre (de fenomenologia) Edmundo Husserl, porém o próprio Husserl teria estranhado ao ler seu trabalho sobre Ser e tempo, assim é preciso retornar ao Heidegger primeiro, que também sofria influência do idealismo de Kant e que fez o trabalho sobre Duns Scotus.
O interesse pelas Categorias remonta aos estudos de Porfírio e seu tradutor Boécio, a quem devemos a famosa “querela dos universais”, porém Heidegger a retoma a partir de Franz-Brentano.
Sua leitura da Tese de Franz Brentano (1862): “Os múltiplos significados do ente segundo Aristóteles” vem do clássico texto de Aristóteles “As Categorias”, a doutrina da significação que será retomada por Husserl, discípulo de Franz Brentano é assim denotada por Heidegger: “à medida que a doutrina das significações salienta as diferentes formações categoriais a partir de ‘significação em geral’ e põe o fundamento para toda a ulterior elaboração dos problemas lógicos de sentido e de validade” (HEIDEGGER 1978, p. 203).
É importante ressaltar que Heidegger esclareceu mais tarde que seus estudos da “Grammatica Speculativa” de Duns Scotus* era na verdade um texto ampliado de Tomás de Erfurt, Heidegger expõe a teoria do modus significandie sua relação com o modus intelligendie o modus essendi.
Husserl, a luz de suas Investigações Lógicas (publicadas em 1900/1901) e, elaborado no volume I das Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (publicada em 1913), o que Scotus chamava de ens rationis (ente de razão), Husserl chama de sentido noemático, e o que Husserl chama de Noesis é para Scotus a intuição direta.
Retomando Porfírio (já abordamos em posts anteriores), Scotus escreve: “À primeira questão, deve-se dizer que o universal está numa coisa como num sujeito, porque a designa, não o intelecto. Mas o ininteligível está no efetuador e o conhecido no conhecedor.” (Scotus 1998, p. 826), em tradução direta do latim, onde é relacionado o modo objetivo com o subjetivo.
Para Scotus assim o ens rationis não é subjetivo no intelecto, não é algo que existe como uma “afecção da alma”, é algo que está de modo objetivo, como algo representado pelo intelecto, referente a um conteúdo pensado, isto se deve em parte, a ser chamado realista moderado.
Mas sua gramática é bem desenvolvida e não pode ser separada de uma raiz linguística, conforme explica Heidegger uma coisa é a forma linguística de uma expressão, que os medievais chamavam de “vozes” (Heidegger, 1978, p. 290-291) outra coisa o conteúdo da pressão, sua significação e entrelaçamento de juízos.
* Duns Scotus era um monge franciscano, embora professor viveu na pobreza colocando seus bens em comum.
ARISTÓTELES. Da Interpretação (Ed. Bilíngue). São Paulo: UNESP, 2013.
HEIDEGGER, M. Frühe Schriften -Gesammtausgabe (Primeiros Escritos – Edição Completa) Vol. I. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1978.
HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. SP, Aparecida: Ideias & Letras, 2006.
SCOTUS, D. Opera Omnia -editio minor I: Opera Philosophica (a cura di Giovanni Lauriola). Bari: Alberobello, 1998.
Sobre o paliativo e a dor
Byung-Chul Han escreveu “Sociedade Paliativa: a dor hoje”, em plena pandemia (o livro original é de 2020), o que era praticamente um desafio a um mundo assustado com milhares de mortes, isolamento e uma corrida a medicamentos sem os devidos testes de contraindicações, mas o livro é sobre a modernidade onde “a dor é vista como um sinal de fraqueza” (Han, 2021, p. 13).
Entre várias análises os pensamentos de E. Jünger (sobre a dor) e M. Heidegger (Acerca de Ernst Jünger), escreveu o primeiro “Me diga a sua relação com a dor e eu te direi quem és!” em replica “pretensamente irônica de Heidegger”, Han cita Heidegger que “observa: “Me diga a sua relação como ser, caso você sequer tenha alguma ideia a esse respeito, e te direi como você se se você se ´ocupará´ com a ´dor´ou se pode refletir sobre ela” (Han, 2021, p. 84-85).
Heidegger tem em mente, pontua Han, “antes, uma ontologia da dor” … “ele quer penetrar, por meio do ser, na “essência da dor” (idem, p. 85) … “Nós, porém, somos sem dor, não nos apropriamos [vereigen] a essência da dor” (citação de Han das Conferências de Bremen e Freiburg).
Cita mais a diante: “o pensamento é a dor, a paixão pelo segredo que ´se furta oscila oscila na retirada´”(citando outro texto de Heidegger A caminho da linguagem, p. 87), ela desvela o ser, ela é “santuário do ser”, ela chega até a vida” e este “santuário do nada, daquilo, a saber, que em todos os sentidos nunca é meramente um ente, mas que ao mesmo tempo, direciona, até mesmo como um segredo” (p. 89, citando novo texto Conferências e preleções).
E conclui, por raciocínio filosófico, que “a morte significa que o ser humana está em relação com o indisponível, com o inteiramente outro que não vem dele” (idem, p. 89), poderia ser muito bem também um desenvolvimento teológico, aquele que Heidegger, Arendt e Han diferenciam quando falam da imortalidade humano e da eternidade como o puro Ser.
Em “Vita Contemplativa” Han refletindo sobre Hannah Arendt escreve: “contudo, nenhum ser humano consegue, prossegue Arendt, demorar-se na experiência do eterno. Ele precisa retornar ao mundo circundante. Tão logo, porém, um pensador abandona a experiência do eterno e começa a escrever, ele se entrega a vita activa, cuja finalidade última é a imortalidade” (Han, 2023, p. 145).
Arendt se admira com o Sócrates que não escreve, disse Han, com isto renunciou a imortalidade, pode-se acrescentar que Jesus também não escreveu, e no seu caso sofre a “paixão” com dores sobre requintes de tortura pública, até sua morte pública ao lado de dois ladrões, com isto “viveu o inteiramente outro” como pensou Han, e pode experimentar a passagem (Páscoa) da vida para a morte e da morte para a vida, eis a razão também para Ele.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa. Petrópolis, Vozes, 2023.
HAN, B.C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis, Vozes, 2021.
Além do ser-no-mundo, sua superação
Byung-Chul Han interpreta que Heidegger vai realizar a sua virada na passagem do “agir para o ser” e é daí que surge a sua obra maior: Ser e Tempo (primeira publicação de 1927 nos Anais de Filosofia e Pesquisa Fenomenológica editados por Edmund Husserl).
Escreve Han: “em oposição ao medo, que meramente se relaciona com algo no mundo, o “de que” da angústia é o mundo como tal: “aquilo de que a angústia se angustia é o próprio ser-no-mundo. O ente dentro do mundo […] afunda na angústia. O ´mundo´ não consegue fornecer mais nada, tampouco o ser-aí-com os outros” (Heidegger, 2005, p. 179).
E Han acrescenta que esse mundo que escapa da angústia não é o mundo geral, mas “o mundo familiar, cotidiano, no qual vivemos sem questionar” (Han, 2023, p. 76), e acrescentar o “impessoal”.
O impessoal como “ninguém” retira do “ser-aí o fardo da decisão e da responsabilidade ao livrá-lo da ação em sentido restrito. O impessoal deixa à disposição do ser-aí um mundo pré-parado no qual tudo já foi interpretado e decidido”, não sei se no alemão tem esta conotação, mas no português este “parar”, esta pausa na vida da ação é aquilo que a modernidade busca.
É este impessoal, explica Han, que repele toda perspectiva autônoma do mundo, e que Heidegger considerava a “inautenticidade” ou “decadência” e que impede a realização do Ser.
Em contraste com a visão idealista, Han descreve que “o tédio não é, para Heidegger, nenhum pássaro onírico que choca o ovo da experiência. Ele é interpretado, igualmente, como um apelo á ação” (p. 78), o apelo que hoje é tão desastradamente impelido pelas mídias sociais.
O que Heidegger reivindica através da recusa deste apelo, é “justamente a possibilidade da sua ação [do ser-aí] e inação” (Han, p. 78 citando Heidegger).
Heidegger e Han chegam até mesmo a comparar isto a uma “morte” (claro não exatamente no sentido físico, mas da afirmação do eu), e “essa morte me liberta para o outro. Em vista da morte, desperta uma serenidade, uma amabilidade com o mundo” (Han, 79 citando sua obra Morte e Alteridade).
É esta abertura que permite superar medos, incertezas, frustrações, inseguranças e tantas angustias cotidianas, delas renascem um novo ânimo, criatividade e alegria para seguir em frente, para superar barreiras e entender a possibilidade um novo horizonte.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis, Vozes, 2005.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa ou sobre a inatividade. Petrópolis, Vozes, 2023.
Escutar aquela voz “interior”
Qual a voz do mundo que escutamos? ou temos capacidade de desenvolver e saber escutar uma voz interior, tanto Hannah Arendt quanto Byung-Chul desenvolvem isto claramente, porém é preciso recuperar as raízes alemães, por isso Byung-Chul em suas traduções deixa de propósito os termos dispostos [gestimmtes] e ouvir e se colocar de acordo com a voz [stimme].
Assim ele explica como o ser-no-mundo originário articula o correntes e o estar disposto, “não podemos dispor da disposição, antes somos lançados nela, não a atividade”, mas o “corresponder” significa àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser” (p. 67), assim ouvir e escutar atentamente precede a ação e se dá à disposição.
Assim o “corresponder ouve a voz do chamado […] é sempre necessário … não apenas por acaso e às vezes, um disposto [gestimmtes]”, onde “o falar do corresponder recebe sua precisão” … “antes, ela concebe ao pensado uma De-finição [Be-Stimmheit]” (Han, 2023, p. 68), que vem dos o texto de Heidegger “O que é isto – A filosofia”
Explica Han: “pensar já é sempre disposto; ou seja, exposto a uma disposição que o fundamenta”, e citando novamente o texto de Heidegger: “todo pensar essencial exige que seus pensamentos e proposições sejam extraídos renovadamente, como minério, da disposição fundamental” (Heidegger, citado na p. 69).
Este pensar é no seu amigo, o que os gregos chamavam de pathos e Heidegger recupera, mas lembra na raízes latina o paschein*: “sofrer, aguentar, suportar, entregar, deixar-se carregar, deixar-se de-finir por [algo]” (p. 69), e acrescento aqui, [ou alguém] se pensar novamente na diferença que Arendt e Han fazem entre imortalidade e eternidade, grifo *nosso do hebraico (פַּסחָא), lembrando nosso post anterior sobre a “paixão civilizatória”.
Assim, pode-se reduzir (simplificar é sempre complicado), que podemos ouvir uma voz interior da consciência, mas Heideggeer e Han lembram que a disposição antecede a isto, quer dizer, muitas vezes estamos “escutando” porque temos funções auditivas, mas não temos a disposição e a atenção para de fato ouvir o que a consciência manda.
É claro que ter consciência é muito mais que ter convicções, muitas vezes nossas certezas e convicções atrapalham ouvir esta voz, porque somos humanos e erramos, queremos o eterno, mas nos contentamos como que é passageiro, ouvir exige “meditar”.
Pensar numa verdadeira “pachein” pode ajudar nos momentos de dificuldades, de contrariedades, enfim tudo o que de certa forma é normal na vida e devemos passar, enfim a paixão boa ou má é passagem para um outro lado.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa Ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ, 2023.
A grande paixão civilizatória
Guerras militares, guerras de mercado, situações endêmicas (a dengue atualmente no Brasil, por exemplo) e uma retórica polarizadora sem fim é uma crise civilizatória, a base não é a situação conjuntural de agora, ela vem desde o início da colonização e se agravou com duas guerras mundiais.
Parecia no final da segunda grande guerra que com a ONU, o estabelecimento de direitos humanos e os acordos nucleares que tínhamos encontrado a saída, porém a base de todo este processo, temos postado aqui, é um pensamento idealista, que a polarização chama de neoliberal e o outro polo de comunista, porém toda guerra é de pilhéria e morte de inocentes.
Reunidos pela OTAN, os ministros da Defesa europeus (foto) salientaram em reunião finalizada no domingo (13/04), que apesar das negociações dos Estados Unidos com a Rússia, que ambos consideram avanços, a Europa desacredita porque as agressões da Rússia continuam, e ameaçam a região.
Não importa a retórica, a base de todo pensamento idealista/iluminista é um estado forte e muitos países não abandonam este pensamento, a crise tarifária agora é a manifestação do lema de Trump: “American first”, americano primeiro enfrentando até mesmo a Europa.
O pouco que entendo de economia, entendo que há uma interdependência das nações, um carro produzido em qualquer parte do mundo tem peças produzidas no mundo inteiro, os americanos querem que voltem a ser produzidos lá, com as tarifas o carro americano fica mais caro, enquanto a tática da China tem sido produzir barato e dominar os mercados.
Aliás a pedido das montadoras americanas, no quesito produção de carros Trump recuou, no sábado (12/04) recuou também na taxação de smartphones, computadores e chips.
Haverá mais empregos nos EUA, mas isto não me parecia um problema, muita gente ia para lá porque haviam empregos e bem remunerados, porém neste quesito a deportação de ilegais é também no caminho contrário e a falta de mão de obra poderá representar outro problema.
A guerra no Oriente Médio segue cruel com os Houthis, nos ataques o chefe da inteligência do grupo Abdul Nasser Al-Kamali foi morto, e as ameaças ao Irã prosseguem um caminho perigoso.
Há sempre esperança, há sempre negociadores com desejo sincero da paz, o que faz a crise civilizatória avançar é o pensamento imperialista e belicista aumentar com a eleição cada vez maior de governos autoritários, influenciados pelo pensamento iluminista, que veem os países de outros povos como inimigos e não cedem em qualquer processo de negociação.
É uma semana para os cristãos que envolve a paixão de Jesus, parece estar mais próxima de uma paixão civilizatória da humanidade, é preciso pensar nos inocentes, no futuro da humanidade e na paz tão desejada, mas pouco lembrada na hora de algum conflito, é preciso semear a paz.
Vita Activa e disposição
A preguiça foi tratada como defeito por séculos (as vezes injustamente, como acusar desempregados de “vadiagem”), hoje ela se chama procrastinação, no seu limite ela é levada à Síndrome de Burnout ou síndrome do pânico (são diferentes), porém ambas são fruto de uma exagerada dose de pressão, de stress ou de trabalho.
Associações internacionais já reconhecem como um fenômeno que afeta a saúde, o número é muito maior que os registrados pois há medo de perda do emprego, da credibilidade e isolamento.
Assim é preciso caracterizar aquilo que a fenomenologia chama de intencionalidade, usando uma categoria que foi introduzida por Heidegger como disposição, como “um estado de espírito que precede a qualquer intencionalidade dirigida a um objeto”, citando Heidegger: “A disposição já abriu porém, o ser-no-mundo como um todo, e torna primeiramente possível um dirigir-se a [algo]” (Han, 2023, p. 66).
Assim a disposição é necessária, diz Han: “não podemos dispor da disposição”, “a disposição constitui então o quadro pré-reflexivo para atividades e ações”, assim, ela “pode facilitar ou impedir ações de-finidas” (p. 67).
Este quadro do pensamento “não é pura atividade e espontaneidade” … “a dimensão contemplativa habita … o transforma em um corresponder” (idem), isto está delineado no pensamento de Han no início desta página como uma “passividade ontológica originária”.
Não a atividade, “mas o estar lançado” [Geworfenheit] define este originário ontológico, como ser-no-mundo originário, para este ser corresponder significa àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser” (p. 67), assim ouvir e escutar atentamente precede a ação e dá à disposição.
O “corresponder ouve a voz do chamado […] é sempre necessário … não apenas por acaso e ás vezes, um disposto [gestimmtes]”, “o falar do corresponder recebe sua precisão” … “antes, ela concebe ao pensado uma de-finição” (Han, 2023, p. 68).
Assim a ação exige pela ordem de precedência, um chamado (uma voz), uma disposição e uma intenção e a elas correspondem um pensado de-finido.
Não agindo sobre o pensar, somos impulsionados contra nossa inércia anterior, nossa inatividade não é posta em ação, não há disposição para ela e cria um conflito em nosso ser.
Han a compara a inatividade da máquina, que nunca precede a contemplação, não surge nada quando está parada, é uma inatividade sem qualquer ação é sua ausência.
Se somos impulsionados como máquinas, sem disposição, enfrentamos um desgaste em nosso ser-no-mundo, o “pensar está sempre recepcionando” daí sua in-disposição, seu transtorno.
Sem ouvir a voz do nosso Ser, sem contemplar, a ação é maquinal, muitas vezes difícil e cansativa, se pensada e pausada ela é segura, decidida e alcança propósitos verdadeiros.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa Ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ, 2023.