
Arquivo para a ‘Antropotécnica’ Categoria
Vita Activa e disposição
A preguiça foi tratada como defeito por séculos (as vezes injustamente, como acusar desempregados de “vadiagem”), hoje ela se chama procrastinação, no seu limite ela é levada à Síndrome de Burnout ou síndrome do pânico (são diferentes), porém ambas são fruto de uma exagerada dose de pressão, de stress ou de trabalho.
Associações internacionais já reconhecem como um fenômeno que afeta a saúde, o número é muito maior que os registrados pois há medo de perda do emprego, da credibilidade e isolamento.
Assim é preciso caracterizar aquilo que a fenomenologia chama de intencionalidade, usando uma categoria que foi introduzida por Heidegger como disposição, como “um estado de espírito que precede a qualquer intencionalidade dirigida a um objeto”, citando Heidegger: “A disposição já abriu porém, o ser-no-mundo como um todo, e torna primeiramente possível um dirigir-se a [algo]” (Han, 2023, p. 66).
Assim a disposição é necessária, diz Han: “não podemos dispor da disposição”, “a disposição constitui então o quadro pré-reflexivo para atividades e ações”, assim, ela “pode facilitar ou impedir ações de-finidas” (p. 67).
Este quadro do pensamento “não é pura atividade e espontaneidade” … “a dimensão contemplativa habita … o transforma em um corresponder” (idem), isto está delineado no pensamento de Han no início desta página como uma “passividade ontológica originária”.
Não a atividade, “mas o estar lançado” [Geworfenheit] define este originário ontológico, como ser-no-mundo originário, para este ser corresponder significa àquilo que “se dirige a nós como voz [Stimme] do ser” (p. 67), assim ouvir e escutar atentamente precede a ação e dá à disposição.
O “corresponder ouve a voz do chamado […] é sempre necessário … não apenas por acaso e ás vezes, um disposto [gestimmtes]”, “o falar do corresponder recebe sua precisão” … “antes, ela concebe ao pensado uma de-finição” (Han, 2023, p. 68).
Assim a ação exige pela ordem de precedência, um chamado (uma voz), uma disposição e uma intenção e a elas correspondem um pensado de-finido.
Não agindo sobre o pensar, somos impulsionados contra nossa inércia anterior, nossa inatividade não é posta em ação, não há disposição para ela e cria um conflito em nosso ser.
Han a compara a inatividade da máquina, que nunca precede a contemplação, não surge nada quando está parada, é uma inatividade sem qualquer ação é sua ausência.
Se somos impulsionados como máquinas, sem disposição, enfrentamos um desgaste em nosso ser-no-mundo, o “pensar está sempre recepcionando” daí sua in-disposição, seu transtorno.
Sem ouvir a voz do nosso Ser, sem contemplar, a ação é maquinal, muitas vezes difícil e cansativa, se pensada e pausada ela é segura, decidida e alcança propósitos verdadeiros.
HAN, B.-C. Vita Contemplativa Ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ, 2023.
Liberdade, memória e eternidade
O tema pode parecer apenas teológico, mas não é, tanto Hannah Arendt como Byung-Chul Han trataram este tema, claro além de autores de alcance teológico como Agostinho de Hipona e Thomas de Aquino, também por autores atuais como Kierkegaard, Heidegger e Ricoeur que delinearam algumas questões na problemática entre tempo e eterno.
O esquema epistêmico de Hannah Arendt é bem mais profundo porque apresenta também o aspecto político: a memória, que tem referências a história, a narração, que tem a ver com a possibilidade ([hermenêutica] de resgatar os eventos, e a imortalidade, que coloca a ação do mundo concreto, tornando homens seres capazes de continuidade no tempo, visto assim:
“o sentido da Política é a liberdade” (ARENDT, 2002, p. 9).
Mneumônicos são inseridos em processos para preservar a narração, ou seja, sua memória.
Por outro lado, a imortalidade é aquilo que está sendo perpetuado pela memória e narração, porém a autora não se negou a ver uma diferença entre imortalidade e eternidade, apontamos no post anterior aquilo que é também a elaboração da autora, a ligação entre estas categorias.
Isso não nega e sim evidencia a concepção de imortalidade, que se impõe como aquilo que está sendo perpetuado no tempo pela memória, pela narração e também se desenvolve como uma Vita Activa, isto é o que compõe a tradição e a atualização de uma narrativa e neste ponto se confunde com a teologia, ou seja, ultrapassa o temporal e se desvela no eterno.
A tradição porém, foi gradativamente perdendo essa noção do público e do privado, a ponto desta fronteira entre os dois desaparecer, é fácil perceber isto na atualidade ao ver a exposição do privado até mesmo daquilo que é mais sagrado, e na concepção de Arendt, isto é um prejuízo vital, em vista da ação, categoria central para a constituição do mundo público, ela deixa de ser considerada em favor do respeito aos membros da sociedade.
Byung-Chul Han, no livro o Enxame sentencia: “o respeito é o alicerce da esfera pública. Onde ele desaparece, ela desmorona. A decadência da esfera pública e a recente ausência de respeito se condicionam reciprocamente.” (B.-C. Han, No exame, 2018, p. 12).
Arendt ressalta a ausência de empatia: “A morte da empatia humana é um dos primeiros e mais reveladores sinais de uma cultura à beira da barbárie”.
As religiões chamaram isto de aliança, porque todas elas têm um caráter simbólico, como a Arca da Aliança para o antigo testamento e a Paixão de Jesus para o novo testamento, este significado é o transcender a morte (eternidade), ultrapassá-la com todos seus valores: ódios, guerras, divisões e todo tipo de desumanidades praticamos pela finitude humana (Pillars of Creation, imagem do telescópio James Webb).
ARENDT, A. O que é Política. Tradução Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Entre a finitude e a eternidade
Os deuses e mitos gregos eram imortais, porém sua mistura com a natureza os tornava quase tão humanos como os homens, tinham vícios tanto que tinha uma deusa própria para eles, a deusa Cacia ou Kakía (Kακία), personificava o vício e a imoralidade, era oposta ao areté (virtude).
Já postamos sobre as diferenças de conceitos de imortalidade e eternidade em Hannah Arendt e na leitura dela por Byung-Chul Han (veja o post), a pergunta que fica é o quanto é possível no espaço-tempo que vivemos, poder estar conscientes e passíveis de vivenciar este desejo do eterno.
Há aqueles que esperam um grande milagre da ciência, congelam seus corpos a espera deste futuro (criogenia), o polêmico Raymond Kurzweil escreveu em 2005: The Singularity is Near: when humans transcend biology, e ficou por anos preparando seu corpo para imortalidade, porém agora aos 77 anos já reduziu a carga de remédios que tomava para isto, ele fez um software para computadores aos 15 anos e é um dos conselheiros de Bill Gates.
Porém o delírio humano não vai ceder a ideia mais plausível e generosa da eternidade, o universo está aí, agora com as fantásticas descobertas do megatelescópio James Webb já há a teoria que sempre esteve aí, e outra mais plausível ainda que o tempo é uma ilusão.
Uma citação de Byung-Chul sobre Heidegger (em seus Cadernos negros) é interessante: “O que aconteceria se o pressentimento do poder silencioso da reflexão inativa desvanecesse?” (Han, 2023, p. 63), claro a pergunta é filosófica, no entanto remete ao ser: “o pressentimento não saber deficiente, ele nos abre o ser, o aí, que se furta ao saber proposicional” (idem).
É um “degrau preliminar na escada do saber” escreve citando Heidegger, vai estabelecer uma pré-categoria do consciente como Ser-Disposto [Gestimmt-Sein], explica: “não é um estado subjetivo que colore o mundo objetivo. Ela é o mundo … é mais objetiva que o objeto, sem, porém, ser ela própria um objeto” (pag. 66).
Assim nós “não podemos dispor da disposição. Ela nos toma” (pag. 67), não a atividade, mas o estar-lançado [Geworfenheit] como passividade ontológica originária define nosso ser-no-mundo originário” (idem, pg. 67), assim é preciso negá-la pois o mundo “se revela em sua indisponibilidade” (idem), a disposição precede toda atividade, e conclui, é de-finidora.
Defini até mesmo o nosso pensar, que significa “abrir nossos ouvidos”, escutar e corresponder e cita novamente Heidegger: “Philosophia é o corresponder verdadeiramente consumado que fala enquanto atenta ao chamado do ser do ente” (pg. 68).
E faz uma reflexão sobre a Inteligência Artificial, ela “não pode pensar, pois ela não é capaz do pathos. Padecer e sofrer são estados que não podem ser alcançados por nenhuma máquina” (pg. 69), o homem pode chegar a renúncia pensou Heidegger: “A renúncia é uma paixão pelo indisponível … a renúncia doa” (pg. 71), o ser: “doa a si mesmo na renúncia. Assim, a renúncia se converte em um ´agradecimento´” (pg. 72) novamente citando Heidegger.
É certo que Heidegger este perto deste sentimento de eternidade, e Byung-Chul Han está bem próximo disto, escreveu: “a salvação da Terra depende dessa ética da inatividade” e citando Heidegger: “salvar significa, na verdade: deixar algo livre em sua própria essência” (pg. 73).
O agir segundo a Vita Activa
Conforme exposto anteriormente a Vita Activa não é separada da Vita Contemplativa, isto já estava elaborado em Hannah Arendt e será amplamente tratado em Vita Contemplativa de Byung Chul Han.
Para estabelecer paralelos é preciso entender que Arendt retoma Aristóteles que via três modos dignos da vida do homem, os povos submetidos a escravidão pela guerra permaneciam ligados aos senhores apenas para suprir as necessidades de manterem-se vivos, e o filósofo grego via de modo similar a vida dos artesãos e mercados.
Para ele o homem “político” era realmente livre e podia se dedicar ao contemplativo, assim a dignidade estava ligada a contemplação, mas vista como a vida da fortuna (a Eutychia) que personificava o destino, boa sorte, prosperidade e abundância.
Isto porque o homem ainda que aspirasse a imortalidade, é a vida sem a morte nesta terra, é uma vida “imanente” neste mundo, Arendt vai diferenciar da eternidade, que aspira um além do cosmos, ou o próprio cosmos pensado com criação da eternidade transcendente.
Já a imortalidade é continuidade no tempo, é vida sem morte nesta terra, é vida “imanente” a este mundo, a vida dos deuses do Olimpo era assim do modo como os gregos entendiam a natureza e sua “imortalidade” junto ao cosmos, sendo a mortalidade dos homens o que o distinguia no cosmo.
Byung-Chul descreve que “poucos antes do Vita activa ou sobre a vida ativa de Arendt, Heidegger proferiu uma palestra com o título Ciência e reflexão [Besinnung]. Em oposição à ação que impulsiona adiante, a reflexão nos traz de volta para onde sempre já estamos” (Han, 2023, p. 62), assim “uma dimensão da inatividade é inerente à reflexão” (idem).
Para Hannah Arendt, labor e trabalho são dois elementos que compõem a atividade humana, juntamente com a ação, enquanto labor corresponde a atividade biológica do ser humano para sua sobrevivência como espécie, já o trabalho permite a criação de objetos e a transformação da natureza.
A sociedade da performance, do midiático e da impulsividade desloca o ser para uma ação que não é nem boa nem má, é pura reatividade e assim é incapaz do agir consciente, a ação do Ser.
É ainda fácil perceber aqueles que agem com sabedoria pelos resultados de suas ações, não a simples resposta a algum discurso ou ação, mas uma reflexão em ato, ainda que seja o silêncio.
HAN, B.-C. Vita contemplativa: ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Brazil, Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Narrativa, linguagens e oralidade
Retomando uma de Byung-Chul Han: “A narrativa é a capacidade do espírito de superar a contingência do corpo”, esta capacidade de superar a contingência do corpo, está ligada não apenas a lembrança da linguagem poética e conativa, porém aos sentidos e valores espirituais que a modernidade abandonou, sob o pretexto de criar uma visão “objetiva” (“A crise da narração”, Byung-Chul Han, 2023).
A contação das histórias dos povos, de suas culturas e religiões assim são fatores primordiais para a superação de um momento tão dramático da história da comunicação.
As linguagens desenvolvidas para as máquinas são capazes de produzir narrações com um conjunto de palavras que fazem parte de seu vocabulário, mas sem o imaginário daquelas vozes que realizam a contação, em especial de culturas orais, onde a escrita é secundária.
O texto dramático é também um gênero onde se apresentam atos, cenas, rubricas e falas, por isto é parte de uma forma teatral ou de a-presentação, no sentido que a presentação é ao mesmo tempo uma contação de uma história e sua negação, uma vez que envolve a ficção, canta história contagem tem sempre um aspecto presente, este é o sentido.
A disputa entre nominalistas e realistas na baixa idade média (séculos XI a XIV), terminou por negligenciar a importância da linguagem, porém a viragem linguística do final do século XIX fez retornar sua importância em estudos como a gramática, a semiótica, a etimologia e de modo mais amplo a linguística.
O início da modernidade é marcado pela ruptura entre a função metafísica da linguagem e o uso da objetividade como modo de expressão, porém esta é apenas uma das funções da linguagem, o linguista russo Roman Jacobson lembra das funções: fática, poética, conativa e metalinguística, na qual se inserem por exemplos os códigos modernos: morse, digital e quântico, onde “o “código explica o próprio código, ou seja, a linguagem explica a própria linguagem”, e este deve ser o único contexto onde se aplicam os conceitos de emissor/receptor.
A viragem linguística, ocorre em meio à crise do pensamento idealista e positivista na modernidade: Husserl, Heidegger, Hanna Arendt são fundamentais embora sejam mais lembrados: Noam Chomsky, Mikhail Bakhtin, Michel Foucault e Ferdinand de Saussure.
Noam Chomsky escreveu na década de 50 variações para esses estilos linguístico que são mais técnicos, envolvem uma gramática restrita e assim foi chamada de linguagem regular um tipo de linguagem formal que pode ser expressa por meio de expressões regulares. É utilizada na ciência da computação e na teoria formal de linguagem.
Ao proclamar textos numa cultura oral, por exemplo a bíblica, é preciso ter significação, e, em especial fazer uma hermenêutica de sua presentação (repete-a ao contar).
Linguagem, verdade e o eterno
Leibniz (1646-1716) teorizou que a verdade está relacionada a razão: “Entendo por razão, não a faculdade de raciocinar, que pode ser bem ou mal utilizada, mas o encadeamento das verdades que só pode produzir verdades, e uma verdade não pode ser contrária a outra”, assim de uma meia-verdade não pode surgir uma verdade, eis o problema das narrativas contemporâneas e a verdade está ligada ao Ser por meio da linguagem.
O projeto filosófico de Leibniz incluía uma “linguagem simbólica” que seria a própria da filosofia, chamou-a de “characterística universalis” através da qual poderíamos expressar a verdade, porém em seu tempo a divisão realismo x nominalismo determinou uma vitória do realismo iluminista, e Leibniz e seu discípulo Cristian Wolff (1679-1754) foram rechaçados (figura).
Para seu projeto Leibniz pensava em 3 princípios: Identificar e estruturar hierarquicamente as ideias simples, estipular um sistema adequado de signos e estabelecer regras lógicas para compor ideias complexas.
Christian Wolf chega a elaborar um sistema de conceitos, diferente da árvore do conhecimento de Porfírio, mas também baseado no pensamento Aristotélico (Isagoge), é de Porfírio (232-304) que Boécio tira a famosa querela dos universais: se os universais seriam as coisas ou apenas palavras (categorias de Aristóteles) que atribuímos como nomes às coisas.
A ontologia moderna (fenomenológica), em especial em Hannah Arendt e seu interprete Byung-Chul Han cria novos conceitos que ligam este dualismo no pensamento sobre a Vita Activa e a Vita Contemplativa: “a busca pela imortalidade, pela glória imortal, é, segundo Arendt, “a fonte e o centro da vita activa” (Han, 2023, p. 145), mas “ele precisa retornar ao seu mundo circundante” (idem).
Vive-se assim num paradoxo entre o eterno e o temporal: “tão longo, porém, um pensador abandona a experiência do eterno e começa a escrever, ele se entrega a vita activa, cuja finalidade última é a imortalidade” (pgs. 145-146).
Arendt “admira-se com o Sócrates que não escreve, que renuncia voluntariamente à imortalidade” (Han, 2023, p. 146), mesmo podendo a escrita “ser uma contemplação nada tem a ver com a busca pela imortalidade” (Han, 2023, p. 146), pode-se pensar também na experiência de Jesus que nada escreve, deve-se então seguir sua palavra e seu exemplo e não sua escrita, assim a oralidade tem “vita activa” enquanto a escrita busca a potência.
Arendt lembra também de Platão, mas Han julga isto “destorcido” da alegoria de Platão, “ela é o relato de um filósofo que se liberta das correntes que o prendem e seus companheiros” (pgs. 147-148), ele age quando retorna a caverna “com suas sombras, a um regime de verdade”.
Colocar as palavras na “vita activa” é, portanto, imitá-las, não sendo nem as proclamar sequer as citá-las, diz Han: “A vita activa sem a vita contemplativa é cega” (Han, 2023, p. 149).
Han, B.-C. Vita Contemplativa: ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado, Petrópolis, RJ: Vozes: 2023.
A linguagem, o ser e o infinito
A linguagem e o ser são ontologicamente ligados, quer dizer, a linguagem é um modo do ser (ou sua morada) que Heidegger chama de Dasein e se apresenta na constituição fundamental do ser-no-mundo.
Porém os limites da linguagem não são limites para o ser, ela é a expressão da comunicação de nossa ligação com o outro e com o mundo, a marca característica da linguagem é o sinal (ou o signo como conceitua a semiótica) porque é ele que vai identificar o saber, ela o mostra o objeto e concede a ele uma “re-presentação” (aqui para lembrar o conceito de “presentar).
Já a eticidade como objetividade (este conceito é hegeliano que Heidegger usa) do representante (por isto usa o re-) dá a ele uma vigência presente do objeto, então é a palavra que produz o conhecimento concede uma verdade de correção de representação, então ela tem uma verdade lógica e assim outras correções serão necessárias, porém todas finitas no tempo.
Os limites da representação estão na escuta atenta e silenciosa ao outro do si-impessoal que todos trazemos em nossas relações, bem como é a escuta apropriada ao outro coexistente que o ser-aí dá a compreender o que realmente importa na relação consigo e com o outro.
Em seu trabalho “o caminho para a linguagem” (2003), escrito nos anos 50 (assim em sua maturidade, Heidegger falece em 1976), afirma que falar não é o mesmo que dizer, pois se pode falar muito sem nada dizer; por outro lado, ao calar-se e silenciar, alguém pode dizer muito, isto significa que falar pode ser apenas mostrar, aparecer, ver e deixar de ouvir.
Nada mais importante que em períodos midiáticos que desejamos ouvir parlatórios públicos e não ouvimos o outro em nosso silêncio interior, os gregos e a fenomenologia chamam de epoché, é tão importante que nenhuma filosofia ou religião realmente verdadeiras podem se abster deste recurso, assim temos uma filosofia vazia, pensadores de barriga cheia e vaidosos.
O passo para ir além, para estender o nosso conhecimento além da representação mundana é desvelar o mundo, já que sua re-velação é apenas um novo velamento, o desvelar nos faz ir além alcançar aquilo que para a objetividade presente parece impossível, não se trata nem de riqueza, nem de bens utilitários, nem de visibilidade pública, mas um encontro com o Ser.
Na Carta sobre o Humanismo (1949), no qual analisa seu período de viragem ao longo dos anos 30 e início dos anos 40, ele afirma que seu pensamento se dirigiu a relação do ser para a essência do homem, porém será este Heidegger que Peter Sloterdijk questiona porque somente viu uma face do processo, o esquecimento do ser, e deixou impensado o seu caráter propriamente domesticador, em seu livro: “Regras para o parque humano” em que questiona a bioengenharia, a tecnologia que recolocam a questão humanitária em crise novamente.
Alcançar o além dos limites humanos tem sido um desafio para o processo civilizatório e isto é divino.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.
Cosmovisão, filosofia e religião
A cosmovisão está mais estreitamente relacionada a filosofia e a cosmologia, mas na literatura ela não deixa de estar ligada a ciência e a religião, o geocentricismo (a terra como centro do universo) e a revolução copernicana que declarou o sol como centro do universo, correspondem a visões científicas e religiosas e ambas eram cosmovisões limitadas, no centro da nossa galáxia temos um buraco negro, por isto é correto pensar também nos “cosmos”.
Na visão ontológica de Heidegger, ele atualiza o termo Weltanschauung que aparece a primeira vez com Kant, que compreendia esta ideia de cosmovisão apenas através da experiência com o mundo sensível, para Heidegger são valores, impressões, sentimentos e concepções de natureza intuitiva, anteriores à reflexão, e assim corresponde a uma “visão de mundo”.
A conexão com a cosmologia é importante, já salientamos a revolução copernicana, e hoje a influência das descobertas do observatório espacial James Webb tem contribuído até mesmo para uma visão mais ampla da criação do universo, e se não foi criado, e existiu “sempre” isto favorece ainda mais a cosmovisão do eterno e do infinito.
O universo também nos informa de fatos científicos e religiosos, a visão do paradoxo da informação teorizada por Stephen Hawking sobre pequenas radiações que “escapam” do buraco negro amplia a visão cosmológica e científica, enquanto a estrela guia que indicou o local do nascimento de Jesus poderia muito bem ser uma nova ou uma supernova, uma estrela que nasce ou que morre.
Os cientistas e observadores do cosmos aguardam para os próximos dias o nascimento de uma estrela “nova”, nome dado a conjuntos binários de uma estrela anã e uma gigante vermelha que explodem e dão um brilho mais intenso de uma estrela nascente.
O assunto tomou conta da fantasia dos astrônomos porque desde setembro de 2024 a TCrB (T Coronae Borealis) o sistema binário próximo a constelação da Coroa está para explodir.
Os astrônomos preveem que está explosão está próxima podendo ocorrer na madrugada do próximo dia 27 de março, a TCrB (agora já chamada de Blaze Star ou Estrela Flamejante) está a 3 mil anos luz de distância e a constelação da Coroa está próximo a da serpente (Serpens Caput) e da Bota (Bootes) (figura acima).
Enquanto observamos eclipses, cometas e meteoros, nossa visão ainda era geocêntrica, olhar para um universo mais amplo corresponde a uma visão de mundo mais ampla, saímos de nossa bolha terrestre para admitir realidades celestes e mais universais que nosso pálido ponto azul.
Esta expressão surgiu de quando a sonda Voyager 1, no dia 14 de fevereiro de 1990, estava a uma distância de seis bilhões de quilômetros da Terra (passando o planeta Saturno), e havendo cumprido sua missão, por sugestão de Carl Sagan, vira-se para a Terra e olha para trás tirando uma foto.
A linguagem e os frutos
Hermenêutica é a arte ou técnica de interpretar e explicar textos, originaria do grego, ela também se aplica hoje à ontologia e a filosofia da linguagem, e serve para interpretação não só de textos e filosofias tradicionais, como os textos sagrados e jurídicos.
O problema grave da linguagem nos dias atuais é sua perspectiva de uma análise fragmentária e distorcida dos textos, enquanto a hermenêutica serve para uma verdadeira interpretação (aspetos etimológicos, de tradução e de significação), o uso da linguagem para justificativa do poder era mais próprio dos sofistas na modernidade antiga.
Assim os frutos de uma verdadeira expressão linguística, e de uma hermenêutica filosófica foi o de construir um ramo da filosofia que estuda a teoria da interpretação, há vários autores, porém, destaco Hans-Georg Gadamer, e ela é fundamental para uma perspectiva humanística.
Gadamer reconstrói o conceito de pré-conceito, tirando a carga negativa de juízo antecipado que tinha adquirido na ilustração, dando um caráter essencial dentro da hermenêutica, uma vez que permite a fusão de horizontes, dentro do círculo hermenêutico anterior ao diálogo.
Assim rejeita a ideia de um conhecimento do passado por meio da razão pura, sem mediação da própria tradição do intérprete, uma vez que isto impede a fusão de horizontes e o diálogo.
O intérprete não realiza apenas uma atividade “reprodutiva” do texto, senão que o atualiza de acordo às circunstâncias do momento, por isso fala-se do seu labor “produtivo” (Gadamer, 1997), não há referência direta ao conceito de “labor” de Hannah Arendt, mas cabe bem no texto, uma atividade natural e não durável que se esgota ao ser realizada.
Assim é o uso produtivo da linguagem, palavras que são ações que acionam atitudes de ajuda, de socorro, de solidariedade e de diálogo, ainda que de diferentes interpretes, o importante é que uma linguagem humanitária leve a ações a favor da sociedade e de princípios frutíferos.
Não se colhem figos de espinheiros, a árvore boa não pode dar maus frutos, a linguagem que é dirigida a boas iniciativas humanitárias, não terá resultados negativos, assim facilmente ela caminha para um diálogo se realiza a “fusão de horizontes” como ponto de partida na interpretação, a base de um diálogo hermenêutico.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
A psicopolítica e o autoritarismo
A visão de autoridade contemporânea está enraizada na ideia do poder da força, do dinheiro, do autoritarismo da manipulação da justiça e dos órgãos públicos a favor do estado, mas toda esta autoridade é uma autoridade que passa como grandes impérios passaram.
O filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han passando por diversos autores: Nietzsche (Vontade de Poder), Hegel (Princípios de filosofia do direito), Luhmann (a comunicação do poder) e sua influência principal que é Heidegger (Ser e Tempo) estabelece o conceito de psicopolítica.
As modernas técnicas de poder através de narrativas que escondem os reais interesses do poder, usando principalmente as novas mídias, é o que Han chamou de psicopolítica, ela substitui e ultrapassa o conceito de biopolítica de Foucault.
Parte do conceito de Max Weber, citando-o: “poder significa na oportunidade, no interior de uma relação social, de impor a própria vontade também contra uma resistência, não se importando em que tal oportunidade esteja baseada” (Han, 2019, p. 22, citação de Economia e sociedade, de Weber), este autor já via a tendência moderna desta manipulação psicológica.
Este viés substitui elo conceito de “dominação” (já postamos aqui algo sobre isto), que é “obediência a uma ordem, que é sociologicamente “mais preciso” ao conceito de puro jogo de narrativas que mudam esta ordem de acordo com a necessidade temporal e social.
A raiz da ideia de Estado moderno, diferente do grego que era a superação do poder como um sofisma de manipulação, pura retórica, está em Hegel: “no anseio por uma ausência de limites, por uma infinitude que, entretanto, não seria o poder infinito” (pg. 123), e o que lhe retira a ideia do eterno e do transcendente, dizendo dos seus verdadeiros limites não é uma vontade ilimitada por poder: “A religião é fundamentalmente profundamente pacífica. Ela é bondade” (pg. 124), mas há quem a veja também só como um poder, isto é hegelianismo.
A ideia bíblica é oposta a esta prepotência, ainda que “religiosos” a usem, pois “Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos” (Marcos 10,43), “Felizes os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados” (Mateus 5:6), não há numa boa leitura bíblica nenhuma incitação ao ódio, à violência e a segregação de povos ou raças.
Assim é a ideia dos pequenos, das crianças e dos pacíficos que estão ligadas ao Reino divino.
HAN, B.C. O que é poder. Trad. Gabriel Salvi Philipson. RJ: Petrópolis, Vozes, 2019.