A transcendência e a realidade
Dos sete capítulos “porque somos assim” do livro de Theodore Dalrymple, comecei pelo segundo no post anterior, porque ao meu ver, diferente da época que foi escrito o livro este tema é mais central que o da liberdade em conexão com a religião, que é para ele o primeiro tópico.
Falando da liberdade inicia discutindo o lema “é proibido proibir” e a ideia que a religião limita a liberdade humana, e que a vida sem transcendência religiosa (afirma que é a maioria dos europeus), é tudo que se tem, porém o fato “é que a maior parte das pessoas não teme somente a perspectiva da morte (o que os filósofos acreditam que não seja inteiramente irracional), mas também a própria vacuidade da morte” (Dalrymple, p. 89), mas num parágrafo anterior faz uma afirmação importante: “Para o bem ou para o mal, Deus está morto na Europa, e não vejo muita chance de um retorno, exceto no despertar de uma calamidade.” (pg. 89), longe de uma narrativa apocalíptica, em processo de crescimento, há sim algo de podre como diz o autor e dissemos na primeira postagem sobre o tema.
A ordem do dia é curtir a vida ao máximo, e isto quebra até mesmo muitas normas da convivência racional entre os humanos, a causa do meio ambiente chama muita atenção, a fome e a miséria um pouco, porém o que se sobressai é aquilo que é próprio deste discurso: o individualismo, porém tema não tocado pelo autor o foco em objetos e não nos sujeitos é consequência do dualismo objetividade x subjetividade.
Ao falar de uma transcendência pagã, aquela que anda em busca de “salvadores da raça humana” (pg 92), da transcendência das pequenas causas; “o nacionalismo, os direitos dos animais ou o feminismo” (pg. 93) cita o reaparecimento do nacionalismo escocês estimulado pelo filme Coração Valente, porém está presente em quase todo o mundo, agora na America Latina e, em especial, no Brasil e, também há a transcendência do antinacionalismo, como o projeto Europeu e quem sabe num futuro próximo, o da América Latina, e faz uma sentença importante, estamos “a necessidade e a imutabilidade dos Estado-nação” (pg. 97).
Faz a análise da artificialidade dos Estados-nação africanos, que desconsideravam os agregados étnicos sob uma única nação (pgs. 100-101), mas sem citar o grave problema do colonialismo.
Embora tenha citado o ditado funerário da Igreja da Inglaterra (já ouvi de ingleses ateus ou de outras religiões), a morte faz parte da vida, mas a sua própria discussão de transcendência está nos limites do kantismo (subjetividade x objetividade): “não me preocupa aqui discutir se essa perspectiva é filosoficamente justificável: se Deus existe, e caso Ele exista, se Ele está interessado em nossas ações e mais preocupado com nosso bem-estar do que Ele estaria com as ações e o bem-estar de uma formiga, por exemplo” (pg. 85), que revela um agnosticismo que acena para a religião, mas sem uma ascese ou ao menos uma sinceridade religiosa.
Embora discuta a secularização como um subitem, apontando a própria Igreja como culpada pelo repúdio que sofre, com os casos de “pedofilia”, “hipocrisia” e tantos outros pecados, que todos sabemos que não é específico de uma categoria religiosa, política ou nacional, está presente em toda a humanidade, e nas mesmas porcentagens, e se de fato boa parte opta pelo obscurantismo e anti-progresso, ele cita o caso da Irlanda, não foi menor a opressão inglesa e colonial nestes países cujas religiões ainda encontram público e alento.
Além da raiz no pensamento ocidental de isolamento entre sujeitos e objetos, que se unem por uma “transcendência” do conhecimento, tornando o próprio ato de conhecer uma transcendência, não admitem aquilo que é hoje discutido por inúmeros filósofos, pensadores e cientistas: há algo além do finalismo científico e humano da vida, já que a vida e o universo continuam ao infinito e independente da vontade humana, mesmo que o homem opte pelo fim de sua raça e civilização, por “sinceras” razões políticas ou sociais, o que é um contrassenso com o desejo de vida plena e felicidade.
Há muitas razões em diversos tipos de religiosidades, porém para os cristãos nada é mais significativo que o que proclamou João depois do batismo de Jesus no rio Jordão (Jo 1,34): “Eu vi e dou testemunho: Este é o Filho de Deus”, e assim não falamos só de um Deus transcendente e distante, mas de sua presença na vida e na história humana, de modo objetivo e histórico, ainda que se deseje negar este fato histórico.
DALRYMPLE, Theodore. A nova síndrome de Vicky: porque os intelectuais europeus se rendem ao barbarismo. Trad. Maurício G. Righi. Brazil, São Paulo: É Realizações, 2016.