A esfera primordial
O surpreendente livro Esfera I de Peter Sloterdijk entre muitos conceitos novos, traz no capítulo 7, intitulado “O Estágio das sereias: Sobre a primeira aliança sonosférica”, da página 433 até a 470, mas as digressões são igualmente interessantes, um tratado sobre a relação original com a vida, com o Outro e com a psicologia em torno da questão.
Faz de cara uma analogia fundamental com as ciência sociais: “a psicologia pode cultivar sua pesquisa sobre os gêmeos, e as ciências sociais a perseguir sua quimera, o homo sociologicus; mas, para a ciência do homem filosoficamente reformulada, é a pesquisa dos pares e a teoria do espaço dual que são fundamentais. Até mesmo o que os filósofos recentes denominaram de existir humano não deve mais ser entendido como a saída do indivíduo solitário para um espaço aberta indeterminado, tampouco como a estadia privada do mortal no nada” (página 433-434), e aqui sua relação com a morte que tematiza-se esta semana.
Antes de falar da reciprocidade e da tensão dual entre indivíduos, faz uma pergunta essencial sobre a ressonância para desenvolver sua “aliança sonosférica”, cita Sócrates para falar da ressonância interior graças á qual “Sócrates ouve teu demônio intervir dissuasivamente em suas conversas consigo mesmo ?” (pag. 435), mas também vai falar da reciprocidade “atenciosa, dita imaculada, que permite ao Anjo da Anunciação – que na maioria das vezes aparece do lado esquerdo – dizer o impossível aos ouvidos de Maria sem que sua resignação se transforme em recusa?” (pag. 435), e mais abaixo dirá “a escuta interior sempre se liga a uma mudança de atitude, passando de uma audição unidimensional atenta ao alarme e à distância, para uma audição do sobrevoo, apreendida de maneira polimorfa” (idem).
Passa ao largo os textos de Ulisses da Odisséia (já fizemos num post a comparação histórica com o Ulisses de James Joyce), vai varrer as falas e músicas, passando por ícones, livros sagrados, textos de patriarcas, hinos e clássicos” nos quais “reconhecemos potenciais culturais que sobreviveram” (pag. 436), certamente de onde retirou também o seu “estágio de sereias” do título do capítulo, fará uma justa e longa análise da Odisseia como “ressonância” desenvolvendo alguns dos seus Cantos.
O ponto central, é o ponto que considera crucial para o fundamento “da reciprocidade dos indivíduos às mensagens de seus semelhantes, alcançamos agora a região dos mais sutis jogos de ressonância” (pag. 462), para dizer que ali reside o que é sua ressonância original, e afirma que o que “denominamos de alma é, em seu núcleo mais sensível, um sistema de ressonância exercitado durante a comunicação audiovocal da esfera pré-natal mãe-criança” (pag. 462), ali se desenvolve a relação primordial com o Outro.
“Quando a futura mãe fala para o interior, ela adentra a cena primitiva da comunicação livre com o Outro interior” (idem), onde “o brilho da voz da mãe, bem antes que reapareça em seus olhos, prepara a criança para sua recepção no mundo; é somente escutando a saudação mais íntima que ela pode concordar com a insuperável vantagem de ser ela própria” (idem), é esta intimidade “em seu primeiro exercício, é uma relação de transferência” (idem), e “seu modelo não é o aprendido pela aliança simétrica dos gêmeos, os indivíduos de opiniões idênticas … mas pela comunhão inexoravelmente assimétrica entre a voz materna e o ouvido fetal” (pag. 463). (na imagem de Anita Flatzer, Ulcherrima, de Human Time Anatomy. fotografado do Museu Federal de Anatomia Patológica, Viena) (no livro página 467).
Assim a busca do gêmeo, das opiniões simétricas ou mesmo idênticas não é uma relação nem como o mundo íntimo que já envolve a relação com o Outro, nem com o mundo externo diferente, assimétrico e até mesmo hostil, é uma relação “desde sempre fora-de-si-em-si: a voz que saúde, ao se dirigir para esse co-ouvinte íntimo” (pag. 463), mesmo sendo Sloteridjk um pensador para o qual as religiões sequer existem, diria que é um texto de alta espiritualidade.
Afirma, neste ponto que considero praticamente central sobre o “ouvir o outro”, que ao falar da relação fetal primordial, a vê como aquela onde “não há, nesta relação nenhum traço de narcisismo, nenhum gozo ilegítimo de si próprio por um enganoso curto-circuito na relação consigo mesmo. O que distingue essa relação é uma entrega quase ilimitada de um ao outro, bem como o fato de que as duas fontes de estímulo se cruzam quase sem nenhuma fissura” (pag. 463).
A relação de guerra, da quase exclusão do Outro, são os reflexos de um individualismo extremado, do gozo a custa do Outro, e até mesmo de sua vida, o que a pandemia poderia levar a todos a uma defesa intransigente da vida parece estar colocada em outro extremo, a eliminação do Outro, do diferente e do frágil.
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: bolhas (José Oscar de Almeida Marques, Trad.). São Paulo: Estação Liberdade, 2016.