Matris in gremio, a relação de sangue e a aórgica
Para entender a digressão 10 de Sloterdijk é preciso entender sua relação com a tragédia, e um texto que certamente é do conhecimento do filósofo é a interpretação que Hörderlin faz da tragédia grega Édipo Rei de Sófocles, onde usa o termo aórgico para a busca de Épico para saber quem é, quando mais busca a consciência menos consciente torna-se em direção a tragédia.
A tragédia é que o pai Laio, havia ouvido do oráculo de Delfos, que o filho o mataria e se casaria com a mãe Jocasta, o rei o entrega a um pastor pobre para mata-lo, mas o pastor o cria e depois ele vai parar nas mãos de Políbio, rei de Corinto que o cria como filho, mas a tragédia se cumpre e depois Édipo mata o rei Laio que era seu verdadeiro pai e desposa Jocasta ao tomar consciência da verdade cega-se, a tragédia tem mais detalhes, aqui é só para entender o aórgico.
Porém Sloterdijk inverte esta história e retoma a mariologia cristã, em sua digressão 10 Matris in gremio (colo ou regaço da mãe), onde após analisar o texto De humanitae conditionis in miseria de Lotário de Segni (1160-1216) que viria a tornar-se o papa Inocencio III, que afirma que o líquido que se alimentaria a criança é o mesmo da menstruação que seria interrompida com a gravidez.
Sloterdijk, mesmo não acreditando que existam religiões (assim ele não tem esta questão), vai dizer “não há dúvida que Jesus, mesmo in gremio, deve ter sido provido de um diferente plano alimentar” (Sloterdijk, 2016, p. 557), e vai usar a Questio 31 do terceiro livro da Summa Teológica de Tomás de Aquino.
O argumento de Tomás de Aquino é que “nem mesmo um sangue melhor teria bastado para gerar o corpo de Cristo, porque, pela mistura com o sêmen humano, ele se torna geralmente impuro” (idem), e “ … a comunhão de Jesus com a mãe deveria realizar-se, ao contrário, por meio de um sangue que merecesse ser classificado como particularmente casto e puro”, e cita Tomás:
“… pois, pela ação do Espírito Santo, esse sangue é recolhido do regaço da Virgem e conformado em feto. E por isso se diz que o corpo de Cristo foi formado pelo sangue mais casto e puro da virgem” (Aquino, Suma Teológica III, 31, 5, 3, SP: Loyola, 2001-2002).
Antes de Tomás de Aquino, João Damasceno que já falamos da pericorese trinitária, vai levar ao extremo esta relação de sangue entre Maria e seu feto, citada assim por Sloterdijk: “Dado que a pericorese sempre implica a primazia da relação sobre o lugar exterior, ou justamente porque a própria relação funda o lugar em que se encontraram os que se interpenetram, o corpo de Maria não pode ser sepultado, após a morte de uma maneira usual” (SLOTERDIJK, 2016, pag. 558).
E assim nasceu a ideai de Maria ter sido levada ao céu, mas também é o nascimento 11 séculos antes de ser aceito, o dogma de sua Imaculada Concepção (que por uso popular tornou-se Conceição), assim “é a própria matriz de Deus que ofereceu miraculosamente ao escultor o material de sua escultura, e a Deus o material para tornar-se homem …” (Damasceno apud Sloterdijk, 2016, p. 558), que assim pré-nuncia a ação aórgica de Maria com Jesus e Deus-Pai, como uma pericorese in extremis (na foto, também usada por Sloterdijk, Virgem com Abertura, final do século XIV, Museu de Cluny em Paris).
SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.