Arquivo para maio 31st, 2024
A narrativa e seu ocaso
O pensamento moderno carece de um modelo para o Todo, diria que carece até mesmo de um pensamento sistemática, Peter Sloterdijk chega a afirmar que não é um tempo próprio para o pensar, é um tempo de trendings ditadas por hashtags, Stories, blogs e reels (mecanismos de difusão em massa com uso da mídia social).
Byung-Chul Han afirma que apesar do “uso inflacionário de narrativas revela uma crise da narrativa”, paradoxal, porém “há um vácuo narrativa que se manifesta como um vazio de sentido e como desorientação” (Han, pg. 9), antes as narrações nos ancoravam: “nos atribuíam um lugar e transformavam o ser-no-mundo em um estar-em-casa, dando à vida significado, apoio e orientação, isto é a própria vida era um narrar …” (idem, pg. 9), é ao mesmo tempo a desterritorialização e o desenraizamento.
Porém o próprio Byung-Chul deixa escapar, através da leitura de O narrador de Walter Benjamin (falecido em 1940) que isto é anterior as novas mídias, cita-o como “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre os acontecimentos próximos” (Han, p. 17 citando-o), o leitor pula de uma notícia a outra, não se demora ali, “o olhar longo, lento e demorado se perdeu. “(pg. 17).
Ainda citando Walter Benjamin, diferencia a informação mais claramente o que é conhecimento: “a informação só tem valor no instante em que é nova. Ela só vive nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele e, sem perda de tempo, tem que se explicar nele” (Han, pg. 18), curiosamente um pensamento anterior a década de 40.
Vai adentrar ao conceito de informação, tão caro em certas áreas como a Ciência da Informação, dizendo que ela [hoje] é “o meio do repórter, que vasculha o mundo em busca de novidades” (pg. 19), não há a necessária distância do fato que o digere e o torna conhecimento, “as informações retidas, isto é, as explicações evitadas, aumentam a tensão narrativa” (pg. 19).
A crise da narrativa, assim não se deve as novas mídias que as potencializaram, mas ao fato “de que o mundo está inundado de informações. O espírito da narração está sendo sufocado pela enxurrada de informações” (pg. 20), mas o que é então a narração ? Han citando Walter Benjamin invoca Heródoto, narrando a derrota do rei egípcio Psamenit ao rei persa Cambises, após sua derrota.
O rei persa humilha-o fazendo ver a filha tornando-se criada e o filho sendo executado, mas o rei Egípcio permaneceu imóvel olhando para o chão, porém quando viu seus escravos como prisioneiros, “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22), pois ao se lamentar pelos servos “destroem a tensão narrativa” (pg. 22).
Cita que para Benjamin, o primeiro sinal do declínio da narração é o surgimento do romance no início da época moderna (pg. 23), com sua condição de experiência e sabedoria a narração sabe aconselhar “sobre a vida” (pg. 24), a comunidade narrativa é uma “comunidade de ouvintes atentos” (pg. 25), há nela uma escuta cuidadosa.
As narrativas políticas e ideológicas modernas estão atrás de fatos curiosos, pitorescos e picantes, não há nela nada de sabedoria, move o público pelo impacto e pela pressa da informação “quente” e resumida, não há narração, não há escuta atenta e quando há é pelo êxtase ou pelo espetáculo promovido, é retirada do contexto de uma narração.
Aqueles que ainda existem em legalismos e moralismo, contraditoriamente com o cotidiano que vivem, presente na narrativa religiosa moderna, deveriam lembrar de fatos como o não julgamento da mulher adultera (que devia ser apedrejada pelo costume judaico da época) e Jesus “não a julga” (João 8,3), o testemunho do pecador que senta-se ao fundo enquanto o fariseu senta-se a frente e se sente orgulhoso porque “porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros” (Lucas 18,11-13), e ainda o desafio de Jesus ao curar um homem da mão seca em dia de sábado (Mc 2,4): “E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram”, a narrativa bíblica sempre faz deste distanciamento um modo de pensar e repensar valores, não é o maniqueísmo e o moralismo moderno.
Também são narrações as históricas de piratas e as histórias impressionantes dos Vikings, anteriores ao período das navegações e do mercantilismo e ainda dos paraísos fiscais em ilhas espalhadas por todo o globo, com a complacência de “estados legais e morais”, onde se depositam o dinheiro público roubado das nações e dos próprios povos por políticos.
Han, Byung-Chul. A crise da narração, trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.