Entre a morte e a não morte
Recuperado o conceito de uma vida bem vivida, que é aquela que pode ser examinada e deve-se vive-la até o fim, há outra questão que são os hiatos da vida ou o que chamei de intermitentes da morte, em referência ao que Saramago descreveu em “As Intermitência da morte”, veja o post.
Se lá postamos sobre os intermitentes, aqui queremos falar da não morte, para abordar a não vida, o exercício de Saramago é pensar num país ou lugar fictício onde durante alguns dias não se fosse noticiada nenhuma morte, e vai mais além pensando em uma situação na qual as pessoas pudessem saber antecipadamente da morte, depois de algumas reflexões, pensa:
“Em teoria parecia uma boa ideia, mas a prática não tardaria a demonstrar que não o era tanto. Imagine-se uma pessoa, dessas que gozam de uma esplêndida saúde, dessas que nunca tiveram uma dor de cabeça, optimistas por princípio e por claras e objectivas razões, e que, uma manhã, saindo de casa para o trabalho, encontra na rua o prestimoso carteiro da sua área, que lhe diz, Ainda bem que o vejo, senhor fulano, trago aqui uma carta para si, e imediatamente vê aparecer nas mãos dele um sobrescrito de cor violeta a que talvez ainda não desse especial atenção …” (p.123) e recebe uma notícia antecipada de sua morte.
Pensa poderá evitar pisar numa casca de banana, não receber a carta, jogá-la fora, mas alguém a trará de volta educadamente julgando tê-la esquecido, enfim no ápice do conto encontra-a fatal.
Se no post anterior não ficou claro os “intermitentes” aqui a carta é esta personificação, a morte tornada Ser não apenas aponta para um discurso alegórico, mas pode-se vê-la como ela é.
Então escreve: “Morte onde esteve a tua vitória, sabendo, no entanto, que não receberá resposta, porque a morte nunca responde. e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há de dizer diante da maior dor humana” (pgs. 123-124).
O discurso pode parecer estranho, mas só quem o acompanha consegue entender que a sua pura personificação traz a compreensão de que existe algo além da vida e não apenas a finitude, isto é o que incomoda Saramago, porém não cede até chegar ao seu oposto que é aceita-la como fatal.
A carta personificação da morte e a narrativa se fundem, este é um elemento essencial para entender o conto de Saramago, embora não se refira a ela ao dizer no apartamento do violoncelista: “Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-Se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorai não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua.” (p. 152).
Ainda que seja, ao meu modo de ver pelo avesso da vida, Saramago refaz o sensível e o finito.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.