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Experiência, narrativas e visão de futuro

05 jun

No capítulo que Byung-Chul Han trata da pobreza da experiência da modernidade, lembrando que não se trata apenas da vida digital pois é anterior a ela, ele conta a fábula de um homem no leito de morte que conta aos seus filhos que há um tesouro escondido em seu vinhedo (pg. 31), e depois de cavarem muito finalmente entendem que as vinhas daquelas terras produziam que qualquer outra (Han, 2023, pg. 31),  em um detalhe importante explica que “é característico da experiência que ela possa ser narrada de uma geração para a outra” e isto é o que se perdeu na narrativa do storytelling.

A narração pressupõe tradição e continuidade (Han, pg. 34) e é ela que “cria um contínuo histórico” enquanto a pobreza de experiência é “animado pelo páthos do novo” que “generaliza a nova barbárie e a transforma no princípio do novo: A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza – penso, logo existo – e dela partiu” (pags. 34 e 35).

Lembra Paul Scheerbart que em seu ensaio Arquitetura de vidro “fala da beleza que surgiria na Terra se o vidro fosse usado em todos os lugares” (pg. 38) e curiosamente a arquitetura moderna está cheia desta “metáfora” (lembro aqui também a arquitetura do plástico de Jeff Koon com seu ballon Vênus de plástico do livro de Han A salvação do belo), agora o vidro: “um mundo cheio de edifícios de vidros brilhantes, coloridos e suspensos, [onde] as pessoas seriam mais felizes” (pg. 38), e elas conferem uma aura especial como um meio para o futuro, porém conforme explica Han: “o futuro é uma aparição de algo longínquo” (pag. 39) que só o presente não pode conferir, isto é um ‘sentimento de iniciante”, que não fica na superfície e que concebe uma “forma de vida diferente”.

A exausta modernidade tardia é alheia ao “sentimento de iniciante” (pag. 40), “não professamos nada”, estamos “confortáveis” à conveniência e ao like (idem), “as informações fragmentam o tempo … reduzido a uma faixa estreita das coisas atuais”, acrescentaria que não temos leitura, conhecimento e reflexão sobre as coisas anteriores e que fizeram a história da cultura e do próprio conhecimento, não este reduzido a fração cartesiana da razão.

Estamos numa cultura de “solução de problemas … na forma de um tempo compactado” (pag. 41), porém o autor não deixa escapar uma visão de futuro: “ a vida é mais do que a solução de problemas … aqueles que só solucionam problemas já não possuem futuro … a narração desvela o futuro, somente ela nos dá esperança” (pag. 41).

A narração está presente no fundo de diversas culturas das religiosas às sociais e políticas, os povos as construíram mais que seus governantes e imperadores que a elas sucumbiram, Napoleão não deixou uma França imperial, mas resignada, Bismark e Hitler não deixaram uma Alemanha soberba, mas sábia onde a filosofia encontrou raízes, a submissão colonial das Américas e da África, do Oriente onde ainda há lapsos de colonialismo, deixaram povos mais resilientes e em busca de sua própria narração, há vida debaixo do pó que ditadores e colonizadores nos quiseram reduzir, também lembro as culturas orientais e ocidentais de narração religiosa, não são menos importantes, as sustentam.

Claro há neste meio também storytelling, falsos profetas e “pastores” que buscam a escravização religiosa, porém o ensinamento bíblico e oriental é diferente e sendo uma narração não pode ser confundido com leitura estereotipadas e segmentadas, também elas sofreram com o cartesianismo e idealismo, quando estes “religiosos falsos” que exigem uma “narrativa moderna” e que dê conta do storytelling atual.

Já naquele tempo indagavam Jesus sobre a existência da vida eterna, Ele lembra a passagem da sarça ardente em que Moisés falara diretamente com Deus (Mc 1,26): “Quanto ao fato da ressurreição dos mortos, não lestes, no livro de Moisés, na passagem da sarça ardente, como Deus lhe falou: ‘Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’?” e ao contrário de negar a narração antiga reafirma que ela é parte da tradição e que ali já se escrevia uma nova realidade.

HAN, B.C. A crise da narração, trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023. 

 

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