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A dor, a Alma e o Ser
Numa das passagens mais marcantes, ao menos para os que imaginam um mundo além do corporal, Byung Chul Han introduz a narrativa como parte da cura: “A dor sem sentido é possível apenas numa vida nua esvaziada de sentido que não narra mais” (HAN, 2021, p. 46).
Reivindica e inclui até [Walter] Benjamim em “Imagens do Pensamento” que fala de mãos incomuns que transmitem a impressão que seria como “se narrassem uma história” (idem).
Também cita mães que com a “força curativa” sentam ao lado da criança e lhe contam uma história, e após explicar o fluxo narrativo com uma barragem para a dor, conclui: “é a dor que põe primeiramente em [seu] caminho”. (HAN, 20221, p. 47).
Vivemos hoje um tempo pós-narrativa, diz o autor, não é a narrativa mas a contagem que determina a vida, “a narrativa é a capacidade do espírito superar a contingência do corpo” (Han, 2021, p. 48), um corpo sem espírito é um corpo que ignora a própria alma.
Nela “o corpo disciplinado que tem que repelir muitas dores que vem de fora, é pobre de sensibilidade” (pag. 49), uma intencionalidade totalmente diferente o caracteriza, ela não se ocupa consigo mesmo, mas com algo que vem de fora, e é essa “algofobia” que nos domina.
“Essa introspecção narcisista, hipocondríaca, é certamente, corresponsável por nossa hipersensibilidade (à dor), chama isto de “síndrome-da-princesa-da-ervilha” lembrando um conto de Andersen onde a presença de uma ervilha sobre o colchão da futura princesa provoca tanta dor que ela não consegue dormir a noite, e é este tipo de doença que acontece com muitas pessoas.
Este tipo de paradoxo da pós-modernidade é sentir cada vez mais dor, com cada vez menos, ao ponto que a dor não é compreensível, não tem lugar na vida e parece não fazer parte da existência e isto é uma forma de positividade do Ser, onde não há nenhuma negatividade, e torna o Ser não compreensível, ou menos sem qualquer sentido.
Assim diz o autor, “se a ervilha dolorosa some, então as pessoas começam a sofrer com os colchões moles” e conclui: “É justamente, a própria e persistente ausência de sentido da vida que dói” (HAN, 2021, p. 51).
O que pensar então de dores atrozes da guerra, de vítimas inocentes, de crescentes ódios políticos e ideológicos, tudo parece ruir num universo sem sentido, quando a dor compreendida e com lucidez sentida e vivida nos retornaria o equilíbrio do Ser, e a plenitude de nossa nossa existência, distante hoje, mas possível num futuro próximo.
HAN, Byung-Chul. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
Interioridade e a relação social
Se a sociedade atual “isola” o indivíduo, e a pandemia o fez com maior profundidade, isto não significa que não seja necessário em uma vida urbana cada vez mais agitada, algum isolamento.
O drama cultural de nosso tempo é quando se “pressupõe exatamente a não satisfação (pela opressão, repressão ou algum outro meio) de instintos poderosos”, explicou Freud (ver o post sobre o Mal estar da civilização), ele expõe isto como uma “frustração cultural” que domina o campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos, mas Byung Chul Hang vai mais a fundo ao analisar o que é a dor.
O novo livro de Byung-Chul Han “A sociedade paliativa” vai descrever diante da dor a sociedade medieval como a sociedade do martírio, e a atual como Sociedade da Sobrevivência, e por causa da tentativa de viver na ausência da dor uma Sociedade Paliativa, tantos remédios antidepressivos, ansiolíticos e “analgésicos, prescritos em massa, ocultam relações que levam a dor” (Han, 2021, p.29).
Em uma análise curiosa para um budista, mas talvez pela consciência de que a Páscoa significa uma “passagem” pela dor para a vida eterna, o autor descreve: “em vista da pandemia, a sociedade da sobrevivência proíbe mesmo a missa de Páscoa. Também sacerdotes praticam o “social distancing” e usam máscaras de proteção. Eles sacrificam a fé inteiramente à sobrevivência … A virologia desposa a teologia.” (Han, 2021, p. 35).
Todos escutam os virologistas, diz o autor, a bela narrativa da ressurreição “dá lugar inteiramente à ideologia da saúde e da sobrevivência” (Han, 2021, p. 35), não se trata da vida e sim: “A morte esvazia a vida em sobrevivência”.
Utilizando Hegel o autor explica o verdadeiro sentido da dor: “A dor é o motor da formação dialética do espírito” (pg. 75), o percurso formativo é “uma via dolorosa: O outro, o negativo, a contradição, a cisão pertencem, portanto, à Natureza do espírito” (pg. 76) e assim a interioridade.
Explica o autor: “nisso ela distingue da vivência [Erlebnis], que não leva a nenhuma mudança de estado. Apenas a dor surte uma transformação [Veränderung] radical. Na sociedade paliativa, o igual se perpetua.” (pg. 77).
Jesus sempre após algum momento intenso de pregação ou de participação em algum evento social, retirava-se com os discípulos, era o momento da interioridade, porém muitas vezes as situações obrigavam a deixar o descanso de lado e voltar a ver o povo (Mc 6, 31-34):
“Ele lhes disse: “Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco” … Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” e Jesus voltou e foi ensinar outras coisas a eles.
Ele também teve momentos de dor anteriores a Páscoa, ao qual bebeu o cálice, e pouco descanso como na passagem acima.
HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: a dor hoje. trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ: Ed.Vozes, 2021.