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Desencantamento, narração e dor

07 jun

Chul Han lembra de um hábito muito conhecido em muitas sociedades que é o fato de contar histórias para as crianças dormirem, lembro que é antigo, pois são famosas As fábulas de Esopo (Grécia antiga), os contos dos Irmãos Grimm, as histórias organizadas por Charles Perrault e muitos outros, Han vai escolher uma história pouco conhecida (pelo menos aqui no Brasil) de Paul Maar do jovem Konrad que não sabia narrar e sua irmã Susanne que pede que ele conte uma história para ela dormir.

Os pais por outro lado gostavam de narrar, eram “quase viciados nisto” e quando o pai termina de contar uma história a mãe escreve R de Roland no papel e quando a mãe termina de contar história o pai escreve um O de Olivia, mas os pais percebem que Konrad não consegue narrar história e o mandam para um certa senhorita Muhse, ele chega a uma casa pequena e a senhorita que sabe que ele veio aprender a contar histórias pede que ele suba uma escada e leve um pacotinho para a irmã, mas a escada parece infinita até que encontra uma parede que se abre como uma porta.

Lá dentro está tudo escuro e vê uma coruja com voz e conversas estranhas e percebe que não tem piso e cai num longo encontrando ao final a senhorita Muhse que lhe dá outro pacote e pede que leve ao irmão dela no térreo pois não entregou o primeiro, Konrad fica confuso pois pensava ter caído para o térreo, e ele novamente cai nas “estranhas escuras” da casa e novamente chega a senhorita Muhse, que agora fuma um charuto fino, sabe que ele não entregou o pacote e lhe dá outro novamente, ele diz “não estou aqui para entregar pacotinhos, estou aqui para aprender a narrar”, ela vê que é um caso perdido, abre uma porta na parede e diz: “Boa triagem e tudo de pão” (ela sempre muda os ditados) e desta vez está de volta a casa dos pais (páginas 74 a 77).

Os pais e irmãzinha estão tomando café da manhã e ele diz animado: “tenho que contar para vocês. Vocês não vão acreditar no que vivi …”, o mundo de Konrad agora é outro e agora os pais escrevem K (de Konrad) no papel que eles anotavam suas narrações.

O desencantamento do mundo é quando tudo é reduzido a causalidade, a facticidade (as narrativas de hoje dizem os fatos não mentem, mas sob uma interpretação parcial), Walter Benjamin diz que “as crianças são os últimos habitantes do mundo encantado” (pg. 79), diria não há mais no mundo “adulto”: leveza, empatia e imaginação.

“As crianças de hoje caçam informações como ovos de Páscoa digitais” (pg. 80), hoje a “falta de interioridade narrativa distingue as fotografias das imagens de recordação … as fotografias retratam o dado sem internalizá-lo … não querem dizer nada … “  e é por isto que concluo que dados podem não ser, e quase sempre não são, informações.

Mais difícil ainda é entender o que é conhecimento como vivência: “a narrativa se opõe a facticidade cronológica” (pg. 81), lembra Han lendo Marcel Proust e também Benjamin que a aura é justamente a “distância do olhar que desperta no objeto observado” (pg. 82) e lembrará também Karl Kraus citado em Benjamin: “quanto mais de perto se olha para uma palavra, mais distante ela parece estar” (pg. 83).

A memória desnarrativizada é como uma “loja de sucatas” aqui o autor lembra Paul Virilio (Informação e Apocalipse) sendo o “depósito abarrotado de todo tipo de imagens completamente desordenadas, mal preservadas e de símbolos desgastados” (pg. 84), onde se torna “amontoado de dados ou informações [que] não tem uma história. Ele não é narrativo, mas cumulativo” (pg. 84).

Termina este capítulo de forma muito agradável e sensível, depois de citar trechos das obras de Susan Sontag, Adorno e Gershom Scholem, parafraseando este último escreve: “O fogo mítico na floresta foi esquecido. Não sabemos mais fazer orações. Também não somos capazes de meditações secretas” (pg. 89) e diria aproveitando o tópico Dor do livro “Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade” (veja posts anteriores) não sabemos mais o significado da dor, do afeto e perdemos qualquer noção do “todo”.

Han, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023. 

 

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