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Empatia: da água para o vinho
Esclarecidas situações patológicas, onde a empatia é apenas uma instrumentalização ou um disfarce para ações que não contemplam o Sofrimento do Outro podemos afirmar situações em que ela realmente é eficaz e pode modificar a situação praticamente como um milagre, não só no sentido extraordinário como também com alta probabilidade.
Já dissemos que fora dos condicionantes ideológicos, culturais e sociais a natureza humana destina a viver em situação coletiva tende a empatia para bom convívio social, basta observar as crianças quando ainda não estão contaminadas por ambientes agressivos ou tóxicos, para usar um termo bem atual.
Também situações sociais: ambientes de trabalho, vizinhança, pequenas comunidades há sempre uma tendência onde reina a empatia (ou o Amor num sentido hoje esquecido) a tendência maior é que a frônese (no sentido que hoje chamam de inteligência emocional) e a empatia, e isto não é novo, apenas é necessária uma atualização.
Muitos ambientes podem mudar da água para o vinho se forem totalmente enriquecidos e purificados pela empatia, há sempre uma tendência maior a solidariedade e a tolerância do que ao conflito e ao egoísmo pessoal ou de grupo, em ambientes que ela não é enriquecida por uma espiritualidade também se enfraquece e tende a não prosperar, porque há uma pressão social vinda de fora aonde o ambiente é de conflito e polarização.
O sofrimento pandêmico foi uma grande oportunidade para reconhecer o Sofrimento alheio, a dor do Outro, ou apenas a face do Outro e suas inclinações e conceitos, o que se observa contextualmente é que recrudesceram os conflitos e a oportunidade não foi devidamente agarrada, mas não invalidade esforços conjuntos em regiões e situações.
Há exemplos destes esforços em muitos locais, agora mesmo a situação de enchentes na Bahia é nova oportunidade em que muitas comunidades se uniram ao flagelo da região, doações e socorros vieram de vários locais do Brasil, embora as autoridades centrais tenham tido certa negligência.
São opções que fazemos de ações, hábitos e que se tornam um “caráter social” se mudamos da água para o vinho, é possível, como naquela passagem bíblica onde na festa ia faltar o vinho, e Jesus estando presente recebe o pedido da mãe para que intervenha e seu primeiro milagre publico acontece apenas para dar vinho e melhorar a alegria daquela festa, manda encher três toneis de 100 litros cada de vinho e então pede que levem ao mestre da festa para provar (Jo 2,7), e ele diz o vinho melhor ficou para o fim.
Assim não é o fim que estamos vivendo, mas o início de uma nova realidade, mesmo a empatia não tendo chegado após tanto sofrimento ela virá e uma nova clareira se abrirá, como aquela da passagem do paralitico pelo teto que chega até Jesus para curá-lo, antes Ele o cura dos pecados (Mc 1,5) para que tenha uma alma mais “empática”.
Empatia e espiritualidade
Conforme apontamos no post anterior frônese não é uma virtude moral, mas intelectual na teoria de Aristóteles, então a empatia pode ser conforme elaborado ali, um componente de sentimento da frônese, o melhor exemplo para explicar isto é o da acrácia (em grego akrasia, ἀκρασία), ou do sentimento e frônese de um psicopata.
Embora acrásia possa ser traduzida ao pé da letra por “não ter comando sobre si mesmo”, está descrito no discurso de Platão em Protágoras, na verdade é uma situação de psicopatia onde o mesmo tem conhecimento de determinada ação, mas não tem exatamente o mesmo sentimento de uma pessoa normal perante algum sofrimento.
O que está errado neste contra-argumento para explicar a frônese é que o desejo de aliviar a dor do outro perante algum sofrimento deve estar de alguma maneira bloqueada, no entanto não impede que o psicopata cultive algum sentimento da situação da outra pessoa e o faz de tal modo sofisticado no que define a respeito de como e porque a pessoa em questão tem tal Sofrimento, e não se trata só de atitudes morais, no caso de um psicopata o que torna seus sentimentos e ações moralmente defeituosos podem ter raízes em seus hábitos (já dissemos que isto vem dos pensamentos tornados ações), se incluirmos as pessoas que tem compaixão ou misericórdia pelo Sofrimento alheio, então pode-se explicar.
Não é, portanto, apenas uma atitude moral ou ética, embora o seja também, mas alguma virtude espiritual praticada com insistência de tornar-se um hábito que o Sofrimento do outro, o exercício desta compaixão onde a ação torna-se hábito guiado para a disposição de agir de uma maneira boa que pode ser fornecida pelas outras atitudes morais que fornecem os meios para discernir sobre o sofrimento junto com a Empatia, assim tem-se que necessariamente expandir a lista das atitudes morais fornecidas por Aristóteles.
A frônese não pode ser exercida sem virtudes morais básicas e assim não pode ser iniciada sem a empatia, pode-se admitir que um psicopata tenha até mesmo empatia, muitos são carismáticos e podem influir muitas pessoas, mas lhe faltará uma virtude moral básica que complemente a sua ação, e isto é impossível sem alguma um exercício para tornar-se hábito a atitude empática completa de sentir o Sofrimento alheio, este exercício que torna-se um hábito é chamado aqui de Espiritualidade.
Enquanto não é hábito pode ser um exercício de ascese, uma simulação ou simplesmente um disfarce que em algum momento será desvelado.
É bom ressaltar que pode haver ascese (elevação do espírito parcialmente) sem uma verdadeira espiritualidade, chamo-a usando um termo de Peter Sloterdijk de “ascese desespiritualizada”, ou seja, sem uma raiz profunda que leve ao conhecimento amplo do que é a dor do Outro, se quisermos dar um nome uma frônese empatizada.
A espiritualidade é, portanto, um exercício que leva a uma ascese, porém o que é ascese não depende só da crença de cada um, mas aquilo que durante a vida torna-se hábito e caráter, quem não o tem pode praticá-lo por alguns dias, ou até mesmo alguns anos, mas sem raiz profunda logo a abandonará, como emagrecer, fazer dietas e outras tentativas de hábitos que nem sempre se mantém, para torna-los vida eles devem integrar o nosso caráter, a nossa personalidade.
Desempatia ou destreino
Claro o termo não existe, criei para dizer que não é nem antipatia nem desamor, é um sentimento tão grande quanto a empatia que domina os pensamentos, a cultura e os hábitos de um determinado tempo, oposto a empatia, para desenvolver o tema tomo uma frase de Margareth Thatcher citado no filme A Dama de Ferro (direção Phyllida Lloyd, 2011).
No filme Margareth Thatcher, interpretada por Meryl Streep (Oscar merecido de melhor atriz) afirma: “Cuidado com seus pensamentos eles tornam-se palavras. Cuidado com as elas podem se tornar ações, pois elas se tornam hábitos. Cuidados com os hábitos porque eles se tornam seu caráter”, isto para entender como é possível destreinar os neurônios para que eles não sejam empáticos e tornem-se antipáticos e destrutivos, infelizmente estamos treinando o lado oposto ao nosso lado natural empático.
Assim como dissemos no post anterior é possível treinar a empatia, é possível destreiná-la (outro neologismo, algo natural que se corrompe por um hábito oposto ao instintivo) e induzir um sentimento de repulsa e ódio, mesmo que dissimulado ou velado e até mesmo disfarçado em uma forma de “amor” que corrige o outro, devemos corrigir tudo aquilo que não é ágape ou empatia, isto sim, os outros são hábitos ou cultura.
Vamos seguir o percurso proposto por Thatcher segundo o filme que pretende uma biografia (não é, isso foi a principal crítica), então as coisas começam com o pensamento, algo já deve ser corrigido de cara nas teorias e ideologias contemporâneas que dizem que tudo começaria pelo “meio”, lembre-se o discurso dos contratualistas, Thomas Hobbes do Leviatã (1651) indica que o homem é lobo o homem, ou seja é anti-empático, já John Locke (Ensaio sobre o entendimento humano, 1690) defendeu que o individuo deve renunciar ao estado da natureza e fazer um contrato (que o Estado regula) e assim defende sua liberdade, é famosa sua frase: “onde não há lei, não há liberdade” pai do liberalismo e de certa forma do empirismo (penso que nasceu embrionariamente antes com a visão de Francis Bacon).
Somente Rousseau abandonou em parte estes conceitos criando o “bom selvagem”, o homem é bom a sociedade o corrompe, é um princípio do destreino, mas também ele foi favorável ao contrato, assim faz parecer que entregar a liberdade nas mãos do Estado é condição “natural”.
Assim não apenas pelo contratualismo, mas por todo percurso histórico nosso pensamento está vinculado as suas raízes contemporâneas e é claro ao que está dentro de cada cultura, religião ou grupo ideológico, somente através da leitura pode-se desvincular do pensamento corrente, e o exercício de interiorizar leva a segunda etapa: as palavras.
As palavras assim são discursos ou como se diz atualmente narrativas, que em grande parte são permeadas na cultura contemporânea, somente os que leem não ficam vinculados ao sabor desta cultura em sua atual polarização, lembremos que o primeiro ato mental é o da imitação (a neurociência fala do neurônio-espelho), e ele pode ser destreinado, isso é, pode tanto ser levado de volta ao seu curso natural da empatia ou ao oposto que chamei de desempatia.
São a partir delas que desencadeamos nossas ações, muito já se falou da reflexão ou da vitta activa como a chamou Hannah Arendt, e foi retomada por Byung Chull Han em seu livro A sociedade do cansaço, ali defende que devemos ter também uma vida interior, reflexiva e assim podemos retornar ao nosso curso inicial da empatia (conclusão minha).
Por fim as ações transformam-se em hábitos, boa parte da linguística e semiótica começa a análise a partir daí, sim é fato que fala também da secundidade (algo que existe) e terceiridade (aquilo que é), categorias de Pierce, mas o tema é longe e requer uma maior profundidade que humildemente digo não possuir.
Chegamos do hábito ao caráter, da etimologia da palavra deriva do grego “charaktér, éros”, ou do latim “character, eris”, com o sentido de “gravado”, portanto é aquilo que vai sendo esculpido, e é possível tornar-se uma desempatia, isto é, o rompimento com o caráter original empático, no discurso corrente ausência de Subjetividade (próprio do sujeito), individualismo (não olhar o Outro) e uma série de subcategorias que são rupturas com a empatia.
Empatia: o que realmente é
Em minha modesta opinião, porque não vi nenhuma nas leituras que fiz algum autor afirmar isto, a palavra empatia está em ascensão porque a palavra Amor, no seu significado amplo: eros (no sentido que Byung Chul Han usa em “A agonia do eros”), filia (no sentido da decadência de relações familiares e amizades) e principalmente no sentido do ágape já que toda a instrumentalização feita pelo amor romântico moderno, leia-se A comédia humana de Balzac, transformou-se em utilitário, proselitista ou de puro interesse.
Empatia em uma simplificação didática é a capacidade de entender o Outro como ele sente, assim é inseparável do conceito de alteridade no sentido mais lato da palavra.
Empatia escapou destas armadilhas, da psicologia a filosofia, Husserl a estudou e Edith Stein a aprofundou, a neurociência passou a utilizá-la, em seu artigo da Revista The Atlantic, intitulado “Uma curta história da empatia”, Susan Lanzoni afirma que a palavra existe (no sentido atual é claro, ela tem origem grega) há apenas um século.
Na psicologia a Empatia foi definida como tendo 3 tipos: a cognitiva é a mais intuitiva refere-se a compreender como o outro é e sente, a emocional e a compassiva, não é preciso dizer que a emocional é também explorada como inteligência emocional, a compassiva mais difícil de intuir é aquela que vai além de compreender e sentir as sensações da outra pessoa, passando a mobilizar-se para ajudá-la, mas cuidado, também a ajuda tem que ser empática, ou seja, aquela que realmente o outro precisa e não suposições quaisquer.
O comportamento empático é conhecido como natural não apenas em humanos, mas em muitos mamíferos e algumas aves também, e isto de fato é mais próximo do natural.
Mais próximo porque há um natural totalmente induzido, o consumo, diversos tipos de filosofias, teorias ou mesmo religiões que pouco ou nada tem com a natureza humana, e por extensão, como a natureza como um todo, somos um ser cósmico, mais amplo do que pensamos, ainda que sejamos uma centelha num universo tão amplo e misterioso.
Toda crença contemporânea, que ver das ideias da modernidade é que a empatia é uma nova utopia, as realidades que vem do pensamento moderno induziram a ideia que é preciso um estado autoritário, mesmo os que o negam sonham com ele e dizem será “de outro tipo”, essencialmente a imposição de um modelo de pensamento é uma afirmação do ego, é a inexistência da empatia, é a antipatia colocada em movimento, basta ver a polarização este conceito fica claro.
A neurociência e a própria ciência mostra que desde o nascimento a relação materna e paterna como o bebe tem uma relação empática, para viver em sociedade é preciso uma relação empática, para nos defender da pandemia é preciso uma relação empática, sem ela há um negacionismo “estrutural”, isto é, o outro pode morrer eu não.
A teoria da simulação da neurociência, através da descoberta de neurônios-espelho (Rizzolatti e Graighero, 2004), um tipo de neurônio que dispara quando um animal age quando outro animal observa e realiza a mesma ação observada, assim este neurônio “espelha” o comportamento do outro, como se o próprio observador estivesse agindo, isto é observado também em alguns primatas e pássaros, lembro-me de quando era permitido fumar em sala de aula que ao acender um cigarro vários alunos acenderam também.
Esta teoria não só fez avançar a neurociência como tem ajudado o estudo de alguns fenômenos da natureza e alguns tipos de autismo (Distein, Behrmann, 2008).
Além de ser inata, a empatia pode ser treinada, isto pela característica mais fantástica do nosso cérebro que é sua plasticidade, por isto estamos sujeitos a auto-sugestão mas também a alter-sugestão, assim poder-se-ia revolucionar toda teoria da autoajuda para uma alter-ajuda numa sociedade voltada a empatia, foi preciso vários séculos de treinos (eu diria destreino) para que o ódio, a vingança e a ideia que só a guerra resolve destruísse (em parte) a nossa capacidade empática, já que amor-ágape está em descredito quer seja por excesso de rotulação sem conteúdo, quer seja, pela formulação de palavras sem ação correspondente.
Rizzolatti, Giacomo; Craighero, Laila (2004). “The mirror-neuron system” (PDF). Annual Review of Neuroscience. 27 (1): 169–192.O comportamento empático é conhecido como natural não somente nos seres humanos, mas em outros mamíferos e em algumas aves também.
Dinstein I, Thomas C, Behrmann M, Heeger DJ (2008). “A mirror up to nature”. Curr Biol. 18 (1): R13–8.