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A dor e as cinzas

05 mar

O período da quaresma são os 40 dias após o carnaval até a Páscoa, como já era parte da igreja primitiva, vinda da Páscoa dos judeus, é anterior ao carnaval, lembra a Páscoa judaica (Pessach), que tem o significado de passagem ou libertação, lembrando o período que eram escravos no Egito.

A Páscoa cristã é uma renovação, lembra a morte e ressurreição de Jesus, estamos lendo e lembrando o livro de Byung-Chul Han (que não é cristão) onde fala sobre o sentido ontológico da dor e seu apagamento atual, esclarecendo: “vivemos numa sociedade com crescente solidão e isolamento” (Han, 2021, p. 59).

O autor cita Viktor von Weizsäcker em seu ensaio “As dores”, onde caracteriza a dor com uma “verdade que se tornou carne”, como um “tornar-se carne da verdade” (pg. 61), e ainda “Tudo que é verdade é doloroso” (idem).

A sociedade sem verdades, afirma o autor na passagem seguinte, é “um inferno sem igual”, e a “dor só pode surgir lá onde um verdadeiro pertencimento é ameaçado. Sem dor somos, então cegos, incapazes da verdade e do conhecimento” (p. 62).

Assim no cristianismo e no judaísmo, as cinzas e a Páscoa como um caminho de 40 dias, surgem para lembrar o pó que somos e o caminho de salvação e pertencimento que devemos trilhar: “dor é distinção [Unterschied]. Ela articula a vida” (pg. 63), “ela marca limites”.

“Dor é realidade. Ela tem um efeito de realidade. Percebemos primeiramente a realidade na resistência que dói. A anestesia permanente da sociedade paliativa desrrealiza [entwirklicht] o mundo” (p. 64) e “a realidade retorna na forma de um contra-corpo viral” (p. 65) escreveu o autor por tratar-se do período da pandemia.

Assim as cinzas e o período da quaresma para os cristãos é renovar o período da paixão de Jesus como seu ápice na semana santa, onde há o ápice da dor da cruxificação e o ápice da renovação que é sua ressurreição, cristãos ou não, esta é a lógica verdadeira e real da vida.

Sem entendermos isto, paralisamos na dor do ódio, das guerras, da indiferença, dos vários tipos de injustiça, da exclusão do Outro enfim, da não vida que toda esta ausência de sentido da dor provoca e assim é necessário lembrar do pó das cinzas, de tudo que passa e que só faz sentido se entendemos a dor não como um fim, mas como uma passagem para a vida.

HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.

 

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