Arquivo para novembro, 2024
Além das dores, outra alegria
Não há só cancelamentos de identidades e etnias, há também cancelamentos voltados às políticas que eliminam a fraternidade, a solidariedade e o amor.
Edgar Morin para falar da “salvação” escreveu: “A vida, a consciência, o amor, a verdade, a beleza são efémeros. Essas emergências maravilhosas supõem organizações de organizações, oportunidades inusitadas, e elas correm a todo instante riscos mortais. Para nós, elas são fundamentais, mas elas não têm fundamento” (Morin, 2003, p. 164).
Este tipo de cancelamento não é só o mais perigoso, é ele próprio um cancelamento da possibilidade de uma boa-nova: “O amor e a consciência morrerão. Nada escapará à morte. Não há salvação no sentido das religiões de salvação que prometem a imortalidade pessoal. Não há salvação terrestre, como prometeu a religião comunista, ou seja, uma solução social em que a vida de cada um e de todos se veria livre da infelicidade, do acaso, da tragédia. É preciso renunciar radical e definitivamente a essa salvação” (Morin, 2003, p. 164).
Morin cita outro autor fundamental para sua argumentação: “Como diz Gadamer, é preciso “deixar de pensar a finitude como a limitação na qual nosso querer-ser infinito fracassa, (mas) conhecer a finitude positivamente como a verdadeira lei fundamental do dasein”. O verdadeiro infinito está além da razão, da inteligibilidade, dos poderes do homem” (Morin, 2003, p. 164).
Como é este além da finitude pode ser escrito conforme o autor: “O evangelho dos homens perdidos e da Terra-Pátria nos diz: sejamos irmãos, não porque seremos salvos, mas porque estamos perdidos*. Sejamos irmãos, para viver autenticamente nossa comunidade de destino de vida e morte terrestres. Sejamos irmãos, porque somos solidários uns com outros na aventura desconhecida” (Morin, 2003, p. 166), e explica em nota de rodapé (*):
*Na verdade, a ideia de salvação nascida da recusa da perdição trazia em si a consciência recalcada da perdição. Toda religião de vida após a morte trazia em si, recalcada, a consciência da irreparabilidade da morte.
Cita Albert Cohen para explicar: “Que esta espantosa aventura dos humanos que chegam, riem, se mexem, depois subitamente param de se mexer, que esta catástrofe que os espera não nos faça ternos e compassivos uns para com os outros, isto é inacreditável” (Cohen, apud Morin, 2003, pgs. 166-167).
Assim fica seu apelo à fraternidade: “O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de “boa vontade” que veiculam essa mensagem” (Morin, 2003, p. 167).
MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.
Além da dor e da agonia
As crises tanto pessoais como as humanitárias devem propiciar um novo alvorecer e uma glória maior do que aquelas que o processo civilizatório permitiu.
Edgar Morin ao analisar a policrise que vivemos faz uma análise de uma certa agonia, diz:
“Se considerarmos globalmente os dois ciclones crísicos e críticos das guerras mundiais do século XX e o ciclone desconhecido em formação, se considerarmos as ameaças mortais à humanida- de vindas da própria humanidade, se considerarmos enfim e sobretudo a situação atual de policrises enredadas e indissociáveis, então a crise planetária de uma humanidade ainda incapaz de se realizar enquanto humanidade pode ser chamada de agonia, ou seja, um estado trágico e incerto em que os sintomas de morte e de nascimento lutam e se confundem” (Morin, 2003, p. 97).
E conclui: “Um passado morto não morre, um futuro nascente não consegue nascer” (idem).
Procura salvar aqui que está além destas dores e dificuldades: “Há avanço mundial das forças cegas, de feedback positivos, de loucura suicida, mas há também mundialização da demanda de paz, de democracia, de liberdade, de tolerância…” (Morin, idem) mantendo a esperança.
Mas o cenário já era difícil quando escreveu o livro: “A luta entre as forças de integração e as de desintegração não se situa apenas nas relações entre sociedades, nações, etnias, religiões, situa-se também no interior de cada sociedade, de cada indivíduo” (idem) é uma luta interior.
Estamos condenados a isto, escreve: “Estamos irremediavelmente comprometidos na corrida ao cataclismo generalizado? De que parto esperamos a saída? Ou continuaremos, aos trancos e barrancos, rumo a uma Idade Média planetária nos conflitos regionais, nas crises sucessivas, nas desordens, nas regressões – apenas com algumas ilhotas preservadas?…” (p. 98).
Só temos uma saída para o autor: “A agonia de morte/nascimento é talvez o caminho, com riscos infinitos, para a metamorfose geral… Com a condição de que venha a tomada de consciência, justamente, dessa agonia” (idem, p. 98).
Esta saída é a redescoberta das nossas finalidades terrestres, tema das páginas seguintes e que já abordamos anteriormente, este caminho exige reflexão e retomada de equilíbrio e da paz.
MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.
Um novo meta-desenvolvimento
Encaramos viver como uma vida intensa de ação, prazer e desprezo pela verdadeira alegria de viver, aquele gaudio e paz que só corações solidários podem sentir.
Escreveu Edgar Morin sobre o meta-desenvolvimento:
“O desenvolvimento é uma finalidade, mas deve deixar de ser uma finalidade míope ou uma finalidade-término. A finalidade do desenvolvimento submete-se ela própria a outras finalidades. Quais? Viver verdadeiramente. Viver melhor.
Verdadeiramente e melhor, o que significa isso?
Viver com compreensão, solidariedade, compaixão. Viver sem ser explorado, insultado, desprezado” (Morin, 2003, p. 106).
Isto deve estender a todos povos, religiões e culturas do planeta, não haverá verdadeira processo civilizatório, justiça e liberdade sem estes valores, caras conquistas da humanidade.
Não apenas Edgar Morin sonhou com uma cidadania planetária, todos verdadeiros sonhadores e humanistas sonharam com ela, embora alguns se limitem a olhar os fracassos, a vida plena e a liberdade que não ignora os direitos dos outros é a única capaz de conduzir um novo momento.
Talvez as guerras e todas as mazelas que elas envolvem: lutas econômicas, politicas e até religiosas (uma verdadeira religião jamais contemplaria a menor violência contra a vida) é preciso sobretudo resistir e ter esperança que um futuro novo poderá vir, talvez com os sofrimentos atuais, diria uma “paixão violenta” na vida planetária com ameaças e guerras.
A que tipo de retrocesso, uma verdadeira barbárie estamos caminhando, já percebi o gênio e a sagacidade de Morin, da dupla barbárie: “É verdade que em todos os tempos, em todos os lugares, a humanidade se viu diante da necessidade de resistir à crueldade difusa feita de maldade, desprezo, indiferença. As duas barbáries presentes são formidáveis desenvolvimentos de crueldade: a crueldade odiosa vem da primeira barbárie e se exprime no assassinato, na tortura, nos furo- res individuais e coletivos, a crueldade anónima vem da barbárie tecno-burocrática” (Morin, 2003, p. 100).
Morin percebeu o retrocesso depois da primavera vivida em 1989-1990, onde os muros caíram, agora eles se reerguem é preciso resistir, conforme afirma em seu texto.
MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.
Provocações, ameaças e esperanças
As guerras continuam ameaçando a paz mundial, e as grandes potências estão envolvidas de modo crucial para que isto aconteça, não há discursos pacíficos nem humanitários, as forças envolvidas lançam uma grande sombra sobre toda a humanidade: uma guerra global.
O ex-presidente russo e atual vice-presidente do Conselho de Segurança russo, Dmitri Medvedev, em entrevista a agência de notícia RT declarou: “Os Estados Unidos estão errados ao pensar que a Rússia nunca ultrapassará uma certa linha no que diz respeito ao uso de armas nucleares” e de fato a Rússia tem feito exercícios militares neste sentido, mas em outros discursos o ex-presidente russo sempre reconheça que seria um desastre sem precedentes.
Outro polo de tensão é um confronto direto Irã e Israel, agravado por ataques e revides recentes entre as duas nações, o presidente iraniano Ali Khamenei declarou: “Os inimigos, tanto os EUA quanto o regime sionista [Israel], devem saber que certamente receberão uma resposta devastadora pelo que estão fazendo contra o Irã e a frente de resistência” se referindo aos grupos aliados ao Irã, incluindo Hamas e o Hezbollah.
A China também realiza exercícios militares em torno da ilha Taiwan, no domingo (04/11) 35 drones ultrapassaram a linha divisória entre os dois países no estreito de Taiwan (figura), que manteve apenas a prontidão do seu serviço de defesa, uma vez que não foram efetuados ataques.
Há sempre uma esperança de paz e que os líderes entendam o número de vítimas, de injustiças e de flagelos que as guerras trazem, a paz é uma condição civilizatória para todos.
Querela pacis e a verdadeira vida da paz
Embora um filósofo que possua várias limitações, Erasmo de Rotterdam, há mais de 500 anos escrevia o Querela Pacis, um lamento da Paz, que falava em primeira pessoa sobre a Paz e dizia “a paz precisa sempre de alguém que lhe dê voz”, assim é antes uma atitude do interior do Ser.
Os textos de Byung-Chul Han, destaco três: A sociedade do Cansaço, A crise da narração e Vita Contemplativa, podem parecer alienantes num mundo em pé de guerra, mas é um texto que aponta também este caminho, uma paz interior que dê voz ao mundo da pura exterioridade.
Diz na Crise da Narrativa: “a filosofia como ´poesia´(mythos) é um risco, um belo risco. Ela narra, até mesmo ousa, uma maneira nova de viver e ser” (Han, 2023, p. 106), destaques do autor, aponta até mesmo a concepção do Iluminismo e de Kant sobre a alma, como “ousada”, mas são narrativas e mais a frente lembra que Nietzsche apontará um mundo “transnarrado”.
É a partir deste autor que apontará um mundo onde “uma narrativa do futuro, baseada em uma “esperança”, em uma “fé” no amanhã e no depois de amanhã” (Han, 2023, p. 108) que é aquela mesma que o autor aponta em outro texto como o “já”, mas não “ainda”.
O que aconteceu com a filosofia na atualidade, e isto transbordou para as outras ciências é que “no instante em que a filosofia reivindica ser uma ciência, ser uma ciência exata, seu declínio começa. A filosofia como ciência renega seu caráter narrativo imaginário” (p. 108).
Como diz o autor “se priva de sua linguagem. Emudece” (idem), se esgota na administração da história, e é incapaz de narrar (p. 109), daí todas as modernas narrativas.
Depois o autor apontará a narração como cura, das páginas 111 até 129, para desembocar no capítulo seguinte “a comunidade narrativa”, que recupera a capacidade de narrar e imagina “uma família mundial” (p. 125), para além da nação e da identidade, esta é a paz desejada.
A pax romana e até mesmo a paz eterna (Kant) não saem dos limites das narrativas pessoais ou da identidade restrita a grupos, esta narração do cidadão do mundo, deve partir de vozes que tenham capacidade de ver a humanidade como família, como um todo na diversidade.
Eis o paradigma da complexidade desenvolvido nos posts desta semana: “o indivíduo vive no todo e o todo no indivíduo. É por meio da poesia que se origina a mais alta simpatia e a coatividade, da comunidade mais íntima” (Han, p. 125), lembrando um texto de Schriften Novalis), esta paz vem da voz interior, mas aponta para a coletividade, para a humanidade.
Esta paz beatífica, divina e verdadeira (Pax et Spes) é que pode dar voz a uma paz efetiva e duradoura.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023