Ascese e ascensão social
Está ligada a ideia de ascensão o crescimento na escala social, porém este tipo de ascensão não se refere a ascese, aquela que moral e virtualmente (de virtude) alguém se eleva.
A ideia de acesso aos bens sociais e a visibilidade pública, também não está ligada a ascese, vivemos em tempo que a notoriedade social através dos modernos recursos de mídias digitais, a propaganda e a indústria cultural existem desde o início do século passado, não indica uma ascese espiritual e moral, sendo muitas vezes exatamente o oposto.
Os tempos da educação para a sociabilidade, a empatia e o bem-comum ficaram distantes, agora está em um cenário confuso onde se mistura visibilidade pública com sociabilidade, empatia com mitologia moderna, não há um espaço para profundidade do pensar, ou para espantar-se diante de fatos sombrios, tudo parece tornar-se meme e motivo de má política e má práticas de sociabilizada de polarização muitas vezes justificada apenas para o “nós contra eles”.
É quase impossível falar em ascese num universo tão estranho e exótico, para não dizer algo mais grave, não se trata de voltar a histórias infantis com lições de moral ou estórias fantasiosas de bondade e inocência de um mundo difícil e competitivo, isto também é inócuo, porém se não nos elevamos espiritualmente nos tornamos cada dia piores e menos humanizados, uma ascese que nos leve a um nível mais elevado civilizatória não é apenas desejável como é tornar o processo civilizatório possível e mais frutuoso para todos.
Ao falar de uma ascese desespiritualizada, Peter Sloterdijk ressalva a “sociedade de exercícios” que está mais destinada a tensão e a competição do que ao lazer e ao progresso humano e social para todos, também Edgar Morin quando fala de resistência do espírito, fala sobre uma postura de esperança contrária a policrise social que vivemos.
A leitura que estamos fazendo do Heidegger lido por Byung-Chul Han, penetra neste espírito: “O homem moderno”, o consumidor do ente, cambaleia por causa de sua “embriaguez de vivências” (pg. 243) de uma coisa inusual para outra, falta-lhe o olhar ascético do “espanto” (pg. 244), ou seja, não adquirir qualquer inusual como fato.
Este olhar de espanto que vem desde a filosofia de Aristóteles, capaz de prender nossa atenção no “espaço não pisado do entre” (pg. 246) que é capaz de rever o “meio” (na foto Filósofo em Meditação de Rembrandt, 1632).
Existe nisto um “sofrer” que é um aprisionamento do “não saber como entrar ou sair” (pg. 247) e em tal sofrimento há correspondência com o que deve ser captado, o que deve ser aprendido onde “o pensar é um captar que sofre” trabalhado por Heidegger para permitir ao homem um pensar no entre dos entes, aquilo que leva a tonalidade afetiva.
Ao criticar também o espanto da criança, que chama de primeiro começo, enfatiza que ele não está nesta casa primeira: “a respiração sustida pode significar o a priori trans- epocal do pensar”, (pg. 249).
Byung-Chul lembra que Lévinas dedica sua “obra principal” (assim a considera): autrement qu´etre ou au-delà de essence (além do ser ou além da essência) ao espanto, que liberta o aprisionamento do eu ao em-si (categoria cara a Hegel), que põe o eu em “uma passividade que é mais passiva que a passividade da matéria” (pg. 250, citando Lévinas).
Embora reconheça que há este espanto no pós-modernismo, lembra Lyotard (Das inhumane, pg. 163) citando Boileau em “O sublime e a vanguarda”, o “sublime é, estritamente falando, nada que possa ser provado ou mostrado, mas algo maravilhoso que agarra, que sacode e que mexe com a sensibilidade”.
Finaliza este capítulo, que chamou de “A respiração sustida”, que “o espanto impõe silêncio ao sujeito e ao seu trabalho de síntese”, e conclui: “É um sopro de pensamento que persevera antes da síntese, sem parar de pensar” (pg. 252).
Han, B. C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.