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Posts Tagged ‘Direito’

Contratualismo e inocência

30 mar

A grande discussão dos contratualistas era sobre a não inocência da pessoa, todos eles são defensores dos poderes do estado e em última análise do in dubio pro societate (na dúvida, a favor da sociedade e não do réu), Hobbes via o homem como mau e o estado devia policia-lo, Locke via como limitava os poderes do estado e dava direito ao povo de rebelião e Rousseau via o homem como bom, a sociedade é que o corrompia.

Nenhum deles nega a necessidade e a prioridade dos poderes do estado, assim foram pilares de todas as modernas constituições dos países, e sua atualização está em John Rawls e seu sucessor Michael Sandel.

Ambos foram idealistas kantianos e utilitaristas, porém há uma pequena diferença que Sandel criticava o voluntarismo de Rawls, segundo o qual princípios políticos e morais se legitimam partir do exercício da vontade individual através da escolha ou do consentimento.

Reivindicava para isto o empirismo de Locke: “somos todos, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém pode ser excluído dessa situação e submetido ao poder político de outros sem que tenha dado seu consentimento” (1988, seção 95).

Para entender a posição de Sandel é necessário ler ao menos a obra que indicamos ou entender claramente seus exemplos, os quais procura tornar práticos e claros seus conceitos, em relação ao pertencimento de grupos, como garantia de interesses coletivos (ele rejeita o termo comunitarismo) cita dois casos: o de um piloto da resistência francesa que durante a Segunda Guerra Mundial se recusou a bombardear a sua cidade natal, mesmo sabendo que isso contribuiria para a libertação da França (2012, p. 279), o pertencimento a sua cidade natal.

O segundo exemplo é o de uma operação de resgate organizada pelo governo de Israel para salvar judeus etíopes de campos de refugiados no Sudão (2012, p. 280), o pertencimento ao povo judeu.

Porém em uma de suas famosas palestras na qual dá outros exemplos, e faz vários diálogos com a plateia, é pego em contradição ao dar o exemplo de 6 pacientes chegam a um pronto socorro e 1 está em estado grave enquanto os 5 pacientes que precisam de doação de diferentes órgãos para sobreviverem e o paciente em estado grave exige muito tempo de cuidados, faz a pergunta se o deixaria morrer para ajudar os outros.

A maioria das pessoas concordaram em deixá-lo morrer, mas um jovem (na foto) disse que tinha outra solução, dos 5 que estavam para morrer, o que morresse primeiro doaria os órgãos para os outros, o que deixou Sandel constrangido e chegou a admitir: “é uma boa ideia, exceto pelo fato que destruiu o ponto de vista filosófico” (vejam o vídeo abaixo).

Há relações interpessoais e ontológicas que ultrapassam a mera subjetividade é algo entre seres e não apenas dos seres e suas culturas ou pertencimentos, está numa espécie de alma coletiva, numa noosfera onde tudo é mais do que lógico, é onto-lógico.(155) Justiça com Michael Sandel O Lado Moral do Assassinato – YouTube

 

LOCKE, J. (1690). “Second Treatise of Governement”. In: Two Treatises of Government Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

SANDEL, M. “Justiça – o que é fazer a coisa certa”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

 

Inocência e direito

28 mar

Em outra postagem já traçamos diferenças entre inocência, ingenuidade e ignorância, a primeira que é algo que desconhecemos, entretanto percebemos o mal (ou bem) que há no ato, a ingenuidade é quando desconhecemos o efeito de um ato que pode provocar e a ignorância é quando desconhecemos que existe um mal em um ato praticado.

Tratamos em um post feito a algum tempo esta situação, e no post anterior sobre a guerra atual.

A violência é o mal praticado com intencionalidade, e neste caso vai além de um dolo e em geral é vitima de algum ódio, vingança ou mero destempero, há na violência sempre algo de ignorância.

Alguns autores trataram isto filosoficamente e aí há quem veja na inocência um “perigo” no qual seria possível alguma adesão a algum mal praticado, Nietzsche via desta forma, porém para autores atuais isto é visto a partir da ideia jurídica de presunção da inocência, in dubio pro reo (na  dúvida, em favor ao réu).

O pensamento que se opõe a este é o in dubio pro societate, neste caso o promotor de algum ato ilícito deve oferecer denuncia em favor da sociedade, os argumentos contrários estão na decisão dos valores da dignidade e direito a liberdade, e aqui está a presunção da inocência.

Para idealistas como Kant, o indivíduo é dotado de razão e dignidade, assim realizar uma ação por um motivo exterior às suas causas e não por ser o certo a se fazer e isto vai a favor da liberdade.

Por isto Bauman vai discutir a mixofobia, isto é, o desejo de opor-se aos diferentes, estranhos ou as minorias, quanto mais o mundo se torna global e plural isto deve aparecer em doses maiores.

Na visão de Bauman isto estaria aumentando o medo nas cidades, se vivesse estes tempos de pandemia e polarização talvez percebesse com maior clareza que há um problema de base maior, aquele que vem de culturas e ambientes onde é incentivado o desejo de isolar-se do diferente.

Um dos maiores conferenciais neste tema, reúne grandes públicos em suas palestras é Michael Sandel, veremos depois, porém Freud de certa forma antecipou isto no Mal estar da civilização: “Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como método mais tentador de conduzir nossas vidas, isso porem, significa colocar o gozo antes da cautela, arrecadando logo seu próprio castigo.”

Vive-se sobe riscos globais, nela tudo pode transformar-se em situações explosivas e violentas.

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Traduzido do alemão por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986

SANDEL, Michael. Justiça: O que é fazer a coisa certa. 17 ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2015.

 

 

A lei e a justiça

27 ago

Os sistemas humanos estão em crise porque se na retórica, há novas formas de sofismas, o populismo é um complexo de sofismas, e eles sempre apareceram nas crises da polis, a nossa justiça que vem do Império romano, com fortes cores idealistas e positivistas, não conseguem permanecer numa linha de coerência, há sempre dupla interpretação conforme o réu.

Isto se deve além do populismo na conjuntura atual, de um modo mais amplo, na falta de uma visada ética como propõe Paul Ricoeur, nem o sistema deontológico que se arroga de isento de qualquer aspecto metáfisico, nem o te

Esta visada proposta por Ricoeur, conforme já explicado não se restringe ao campo da liberdade pessoal, porque pela própria exigência de universalidade deve ter um “efeito de coerção”, isto é aplicada por uma força da lei, mas também não se limita a ética “institucional”, já que deve existir um conjunto de ações “estimadas boas”, por exemplo, cada pessoa tem uma dignidade intrínseca, a morte e a violência não são recursos justos para coerção, podendo haver casos limítrofes, etc.

Mas uma ação estimada boa, difícil em tempos de polarização é aquela que vem de uma regra de ouro, não faça ao outro aquilo que não gostaria que fosse feito com você, deve haver sempre a possibilidade de discussão do contraditório sempre, mesmo nas ações “estimadas boas” e deve haver uma prevalência do comunitário sobre o individual, sem que haja constrangimento nem excesso de “força de coerção”, culturas diferentes interpretam de modo diferente o que é bom

O ponto limitante e discriminatório inaceitável, além do sofisma que desde a antiguidade tem o recurso da retórica e a força da persuasão, porém a demagogia e a mentira pública, por exemplo, aquela que omite os casos de apropriação do patrimônio público como um caso claro de negação do bem-comum.

A governança sobre bens e recursos naturais que são patrimônios nacionais ou até mesmo planetários, não apenas a natureza, mas também museus, bibliotecas, prédios históricos sejam eles de quais culturas forem, não podem ser vistos como aceitáveis.

Este legalismo deontológico (que se justificariam pelos fins), também está presente na narrativa bíblica cristão, os fariseus e mestres da Lei indagavam Jesus sobre os costumes de lavar as mãos, de seguir a “tradição dos antigos”, como na passagem do evangelista Marcos (7,5-7):

“Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” e o Mestre respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”.

Pois ninguém pode amar a Deus que não vê se não ama o Outro (próximo) que vê (1 João 4:20).

 

O debate atual sobre a justiça

26 ago

Herdeiro de John Rawls, Michael Sandel faz sucesso, vale para ele o que diz para muitos outros que fazem sucesso: “Quem faz sucesso tende a achar que é graças a si mesmo”, certamente se não fosse professor de Harvard, não daria conferências assistidas por milhares de pessoas, e não poderia falar de polarização sem uma definição mais clara de seu próprio posicionamento.

O seu livro A tirania do mérito (Editora Civilização Brasileira, lançado setembro de 2020), chamou a atenção de setores progressistas, porém há uma crítica velada a estes próprios setores, para ele acusados “de abraçar, como resposta aos desafios da globalização, uma cultura do mérito que levou a um legítimo ressentimento das classes trabalhadoras, de desastrosas consequências que se puseram de manifesto, inclusive, na gestão desta pandemia” (Jornal El país, setembro de 2020).

Tem o mérito (fazendo um paradoxo) de dizer o que é óbvio, que sem uma política de cotas e de quebras de barreiras das desigualdades (inclusive a cultural, que ele aponta) não há possibilidade de mobilidade das camadas desfavorecidas, porém a linha de pensamento de Sandel tem raízes nas leituras de John Rawls, e sua obra “O liberalismo e os limites da Justiça” (Gulbenkian, 2005) é prova disto, e ambos foram colegas em Harvard.

No início dos anos 1980, o próprio Rawls citava a crítica comunitarista de Sandel como “a mais contundente dentre todas” e embora colocasse em xeque a “deontologia com rosto humano” (vejam no post anterior as raízes deste pensamento), era um pensamento inerente à teoria rawlsiana de um “liberalismo deontológico” combinado com um “empirismo razoável”, os termos podem ser encontrados na obra de Sandel.

A fim de obter uma “política liberal sem constrangimento metafísico”, Sandel interpelava o colega Rawls, em última instância, a abandonar a argumentação deontológica de um “eu desimpedido (unencumbered self), “incapaz de autorrespeito” e de “autoconhecimento, em qualquer sentido moralmente sério”, veja que há um objetivismo dentro daquilo que Hegel chama de eticidade.

O próprio Rawls já havia sido levado a reformular seu liberalismo político, partindo do contexto do pluralismo razoável e afastando-se de uma teoria moral abrangente de justiça.

As conferências de Sandel fazem sucesso nos EUA e agora também no exterior, e também no caso dele não é outra coisa senão o fruto da meritocracia (de Harvard neste caso), porém suas obras devem ser lidas com atenção.

SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. Em port.: O Liberalismo e os Limites da Justiça. Trad. C.P. Amaral. Lisboa: Gulbenkian, 2005.

 

A visada ética de Paul Ricoeur

25 ago

Em seu texto de 1990, Paul Ricoeur já elaborou o que chamava de uma pequena ética, simplificada em três teses:

  • a prioridade da ética sobre a moral, isto é, a prioridade da vida da vida boa (vem do conceito grego de bondade), com e para os outros, em instituições justas, sobre a norma moral;
  • A necessidade, no entanto, que a visada ética (aqui opõe-se a eticidade Hegel/kantiana) pelo crivo da norma moral: essa passagem da ética à moral, com seus imperativos e suas interdições, é por assim dizer exigida pela própria ética, na medida em que o desejo da vida boa encontra a violência sob todas as suas formas; e,
  • a legitimidade de um recurso da normal moral à visada ética, quando a norma conduz a conflitos e para os quais não há outra saída a não ser a de uma sabedoria prática, à criação de decisões novas frente a casos difíceis, como no direito, na vida cotidiana e na medicina.

Ricoeur esclarece que nem na etimologia das palavras, nem na história do uso dos termos, não há uma distinção clara entre moral e ética, porém há um nuance o termo ética “para a visada de uma vida realizada sob o signo das ações estimadas boas”, e o termo moral “para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo tempo por uma exigência de universalidade e por um efeito de coerção” (Ricoeur, 1991a, p. 256).

Neste sentido deve ser entendida sua “visada ética”, nem se restringe ao campo da liberdade pessoal, já que admite “exigência de universalidade e por um efeito de coerção” nem se limita a ética institucional já que ela deve estar “sob o signo das ações estimadas boas”.

Pode-se assim distinguir mais claramente na sua visada ética, a distinção entre duas heranças, a aristotélica “a ética caracterizada pela sua perspectiva teleológica (de telos, que significa fins), e a herança kantiana deontológica (“a moral é definida pelo caráter de obrigação da norma e, portanto, por um ponto de vista deontológico (deo de “dever”).

Assim sua análise ao invés de excluir uma ou outra tese da ética moderna, faz um complemento tanto da obra a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática de Kant, mas sem a necessidade de ser fiel à ortodoxia a nenhuma das duas, não é uma saída evasiva, mas sim inclusiva.

RICOEUR, Paul. Éthique et morale, Lectures 1: Autour du politique. Paris, Seuil, 1991, p. 256-269.

 

O justo e a hermenêutica

24 ago

O conceito tradicional de Justiça é aquele que vem do iluminismo e do idealismo, terá sua consagração na Introdução a filosofia do direito de Hegel, a margem deste direito sobrevive teorias cristãs, islâmicas e de outras crenças (o Haiti, por exemplo, teve uma constituição creola), mas sempre a margem.

Pode-se por razões históricas retornar a Kant e Fichte para discutir questões teóricas da justiça, porém o estado moderno e suas leis, que são bases da justiça contemporânea, ao menos no ocidente, tem sua fundamentação em Hegel, e um conceito essencial aí é o da eticidade, que vem junto com a ideia de justiça fundamentada na equidade da própria justiça e não do que é justo.

Assim Hegel teoriza a eticidade como “moralidade objetiva” ou “vida ética”, lembre-se do imperativo categórico de Kant: “age de tal modo que seja modelo para os outros”, assim uma moralidade individual, mas os dois conceitos abstratos de Hegel são o direito e a moralidade.

O âmbito da eticidade, para realizar o ideal da liberdade, está presente na família, na sociedade civil e no Estado, mas tendo o Estado como soberano sobre as demais instituições para as quais estabelece um contrato, e as regras morais e éticas são definidas por alguém que age desta forma, então esta é uma qualidade da ética, a sua eticidade, que apesar de objetiva, continua abstrata.

Ultrapassa o pensamento kantiano afirmando que há uma moralidade subjetiva e uma moralidade objetiva, clássico dualismo do idealismo ao qual Hegel é um apogeu, para Kant era o primeiro ao dizer “age de tal forma” que seja universal, para Hegel é o segundo e para isto definirá um novo conceito (abstrato) da “autoderminação da Vontade”, que é uma moralidade objetiva.

Pode parecer que o direito “individual” (questionável) fica preservado, porém em quase todas as legislações em situações “omissas” é o estado através do juiz que determina a justiça, veja no caso brasileiro o artigo 4º. da Introdução ao código civil:

Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”, não há objeção de consciência coletiva ou individual e não há a autodeterminação da vontade, ela é decidida pelo Estado, e já nisto difere da moralidade.

A discussão atual avançou em fase aos graves problemas sociais, sobre a questão da equidade, e ainda sobre o véu do contratualismo (origem do estado de direito), o nome mais eminente hoje é John Rawls, para o qual sua discussão avança sobre o intuicionismo e o utilitarismo, sobre o qual se debruçará Paul Ricoeur para questionar seu conceito de Justiça em sua obra: “O justo ou a essência da Justiça” (1997).

Essencialmente, a discussão é sobre os direitos coletivos, difusos (da natureza por exemplo) e da equidade, Paul Ricoeur caminha para uma hermenêutica do direito, enquanto Rawls para o direito liberal e a equidade diante da justiça e não dos direitos sociais de dignidade humana.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça/John Rawls: Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves – São Paulo: Martins Fontes, 1997.

RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Trad. Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.