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Espírito e poder
Poder e autoridade parecem se confundir, porém não é verdade na medida em que crescem no mundo governos autoritários e este foi sempre um péssimo sintoma civilizatório porque indica tanto as contendas como no limite delas as guerras.
Byung-Chul Han em seu livro “No enxame” explica após dizer sobre a necessária distância na esfera pública, que as “ondas de indignação indicam, além disso, uma indicação fraca com a comunidade” (Han, No enxame, 20,18, pg. 22) e ele tem um livro específico sobre o poder.
O livro O que é poder? (2019) tem uma longa análise sobre a questão em Hegel, isto se justifica tanto pela influencia no pensamento ocidental quanto pela incidência da visão de poder que atinge toda a esfera pública, porém salientamos o seu vago conceito de Absoluto e a influência até mesmo religiosa, vista no post anterior.
Sua análise é importante quando remete aos conceitos ontológicos, assim define que “o ente é, até quando for finito, rodeado pelo outro” (Han, 2019, p. 110) e o Ser deve gestar uma negatividade em si, não se trata aqui de “maus pensamentos” e sim o conceito que cita em Paul Tillich (1886-1965) que a potência do ser como “capacidade dos seres vivos de superar a negatividade, ou como ele diz, o “não ser”, ou seja, a quem não envolve-la na autoafirmação” (pg. 111).
Citando-o Han afirma: “tem-se mais potência de ser, porque deve ter sido superado mais não ser, e enquanto possam-se superá-lo. Quando não puder mais aguentar ou superar, então é a impotência total, o fim da potência do ser, o acontecimento. Esse é o risco de todo ser vivo” (Han, 2019, p. 111).
Cita a tese de Foucault que o ser humano seria “o resultado de uma submissão” (pg. 118) e Hegel que pensa que o poder deve atuar primariamente de “maneira não repressiva” (pg. 119) entretanto, ambos não abandonam a ideia do Absoluto, que na verdade vem do Príncipe de Maquiável e do Leviatã de Thomas Hobbes, e o como diz o autor: “o poder promete liberdade” (pg. 121).
A necessidade de criação de uma religião “neurótica” do poder, para Hegel viria da ideia de Deus, o poder que Ele tem o poder de “ser ele mesmo”, isto vem do idealismo que não supera a divisão entre sujeito e objeto, ou seja o Criador e o criado (seres e entes) não se compõe.
Não há dúvida que o poder, sem a necessária negatividade do não ser (a inclusão do Outro) é uma neurose como diz Hegel, e assim seu “deus” ou “o espírito” “ainda seria uma aparência desta neurose” (Han, 2019, p. 121).
“A dor da finitude pode ser perfeitamente a dor de qualquer limite que me separa do outro, que apenas pode ser superada pela criação de uma continuidade particular … ela não tem a continuidade do self que o poder cria. Ela não tem a intencionalidade da volta-a-si” (Han, 2019, p. 121).
O poder neurótico de Hegel não é o do Criador, é do ser enjaulado no si-mesmo, incapaz de olhar e servir o Outro, de sair do si, de negar-se para servir o Outro, é um poder neurótico.
A religião idealista
Entre os jovens hegelianos, aqueles que junto com Marx criticaram os “velhos hegelianos”, em especial David Strauss e Bruno Bauer, estava Ludwig Andres Feuerbach (1804-1821) muito mais conhecido pelas “Teses sobre Feuerbach” de Karl Marx, do que por sua própria obra, mas os seus conceitos, ainda que criticados por Marx o influenciaram também além dos outros “novos hegelianos” conhecidos também como a “esquerda hegeliana”.
Feuerbach vindo de um ambiente católico foi educado no protestantismo, desde jovem orientou-se para a religião iniciando seus estudos na Universidade de Heidelberg, mas ao conhecer Friedrich Hegel, abandona a teologia e torna-se aluno deste filósofo por dois anos, o que provoca profundas mudanças em seu pensamento e cria o que chamo aqui de “religião idealista”, mas o Deus do cristianismo não é mais o deus de Feuerbach.
A ideia de absoluto de Hegel é bem conhecida, onde o seu “em si” que é seu “uno” não se aliena à matéria para enfim surgir como “Espírito Absoluto”, mas o homem, como espécie consciente, é o próprio infinito e absoluto, sendo a razão do homem para sua “libertação” em detrimento de uma doutrinação ou de uma cristianização (Feuerbach, 2013, p. 2-23) este Deus que o homem “imagina” é para o jovem hegeliano agora na verdade seu próprio ser, sua própria essência, é preciso entender que Ser para os idealistas não é o Ser ontológico, e sim um ser “antropológico”.
Assim a religiosidade, na análise idealista, não estaria vinculada a um ser imaterial, que transcende o humano (a transcendência idealista é o conhecimento do objeto), não é um Ser atemporal e criador, mas a própria natureza, noutro caminho Spinoza também explorou isto.
Assim Feuerbach entende que a relação do homem com o seu “deus” que é diferente de outros “jovens hegelianos” (Marx vai criticá-lo), o seu deus ou deuses, está fundado na sua própria ex-sistência, assunto também explorado na ontologia, mas visto como uma relação com o “tempo” ou ser o ser temporal.
O deus idealista é aquele que o homem externaliza “nada mais é do que a essência divinizada” (Feuerbach, 2009, p. 29), de certo modo mais ainda como “a história da religião é a história do homem” (Feuerbach, 2009, p. 30) e aqui encontra-se o marco divisório com Marx porque este vê a história como o seu “modo de produção”, a relação com o trabalho e os meios de produção para realiza-lo: feudalismo, capitalismo, etc.
Assim Feuerbach entende que a relação do homem com o suprassensível, que para ele “existe” isto é tem sua ex-sistência, é na verdade uma “patologia estética”, uma amalgama de sentimentos místicos que são ao mesmo tempo alicerce e fomentador da religiosidade: “Luto e dor pela morte de uma pessoa ou pela diminuição da luz e calor, alegria pelo nascimento de uma pessoa, pela volta da luz e do calor após dias gelados de inverno ou pela colheita, terror diante de fenômenos em si terríveis ou pelo menos na imaginação do homem … (Feuerbach, 2009, p. 49).
Assim o grande equívoco, mesmo para “religiosos”, é separar a substancialidade da espiritualidade, é ao nosso ver a essência da falsa ascese contemporânea.
FEUERBACH, Ludwig. Preleções sobre a Essência da Religião. Trad. José da Silva Brandão. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 2009.
FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Trad. José da Silva Brandão. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 2013.
Cansaço e verdadeiro descanso
Dando um quadro psicológico e sociológico da sociedade contemporânea Byung-Chul Han a descreve como sendo portadora de “Doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo do século XXI (HAN, 2017, p. 7).
Usando um conceito de seu orientador de Doutorado (fez a tese sobre Heidegger) Peter Sloterdijk sua análise se estende ao chama de “o objeto de defesa imunológica é a estranheza como tal” (p. 8), o livro foi escrito antes da pandemia (escreveu também sobre ela na Sociedade Paliativa, aquela que rejeita a dor) e o conceito de imunologia aqui é aquele que afirma que o século passado foi uma época na qual se estabeleceu uma “divisão nítida entre o dentro e fora … a Guerra fria seguia o esquema imunológico”.
Assim o livro vai explorar os conceitos místicos de São Gregório de Nazianzeno, mestre na vida contemplativa (da qual Han escreveu também um livro), explora aspectos fundamentais da vida interior que combate os sérios problema da Vida Activa, que nos empurra a eficiência e ao cansaço sobre a pressão de cobranças e da guerra cultural que se estabeleceu.
Diz o paradigma imunológico “não se coaduna com o processo de globalização … também a hibridização, que domina não apenas o discurso teorético-cultural, mas também o sentimento que se tem hoje em dia da vida, é diametralmente contrária precisamente á imunização” (p. 11).
Seu conceito de resistência, vai na direção da “resistência do espírito” de Edgar Morin, porém ao nosso ver atinge o âmago da questão: “a dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade” (p. 11), onde o discurso do “engagement” é na verdade o vazio, pois é ausente de verdadeiras alternativas, pois a imunologia atual é aquela que acusa o Outro, lembramos aqui o distanciamento da pandemia (posterior ao livro como dissemos), uma boa “metáfora”.
Cita Baudrillard, falando da “obesidade de todos sistemas atuais”, em época de superabundância, “o problema volta-se mais para a rejeição e expulsão” (pg. 15) do Outro.
Seu aprofundamento certeiro na página 27 é que os atuais “sistemas disciplinares” (ou pseudo-éticos) buscam a lógica da produção “o que causa depressão do esgotamento não é apenas o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão do desempenho” (p. 27).
Assim meditar e completar não é distanciar-se da realidade, mas a possibilidade de olhar para ela com outros olhos, buscando uma verdadeira ascese humana e espiritual, onde podemos realmente encontrar descanso e paz (apesar e contra as guerras cotidianas e bélicas) porque na verdade só através dela é possível.
Lembro da passagem bíblica que diz “vinde a mim todos vós que estais cansados” (Mt 11,28) e numa reinterpretação para atualidade, além de buscar o divino, é também encontrar a verdadeira interioridade, que não deve estar desligada da vita activa, sob a pena do cansaço.
Han, Byung-Chul. A sociedade do cansaço, trad. Enio Paulo Giachini, 2ª. ed. Ampliada, RJ: Petrópolis, Vozes, 2017.
Sabedoria e simplicidade
Entre as várias narrativas contemporâneas, uma das mais absurdas é o elogio da ignorância como se ela fosse aliada da simplicidade e da humildade, desde o mundo “cultural” ao religioso isto é transformado em narrativas: ele não frequentou faculdades, não leu um livro, não andou entre sábios, etc. não confundir isto com a capacidade de viver com simplicidade e entre pessoas simples.
Não é sinal dos tempos, não é “geracional” é apenas desinteresse pela verdadeira ascese, por um crescimento interior e exterior que deem a sua natureza humana aquele algo mais que é a única coisa capaz de tirar de depressões, angústias, ansiedades e outras doenças atuais.
O homem sábio é observador, e observa não apenas as cenas cotidianas, aquelas que vivem diversos tipos de pessoas, em especial as mais simples, mas também aquele que procura na história da humanidade aqueles ápices de momentos civilizatórios que nos fizeram mais gente, mais humanos e mais solidários, há muitos exemplos, autores e pessoas que nos deram isto.
Postamos ontem sobre água fresca e comida quente, mas em várias regionalidades isto tem contornos e aspectos culturais interessantes, por exemplo, em muitos países não há o café da manhã, me contava um africano, em Portugal há o pequeno almoço que é um café da manhã simples, e no Brasil que se chama café da manhã é na verdade um pequeno almoço.
O que ler além é claro de sua crença pessoal, ler a Bíblia, o Alcorão, os Vedas ou aquilo que é sagrado ou culturalmente lido em uma determinada cultura, o livro vermelho na China por exemplo, o segundo livro mais lido no Brasil é O pequeno príncipe, embora O alquimista de Paulo Coelho seja o 5º. no mundo, mas Ilíada e Odisseia ainda são pouco lidos, Rei Lear e Otelo de William Shakespeare cada vez menos conhecidos.
Claro sabedoria não significa cultura literária, mas longe dela torna-se também narrativa no sentido que desconhece a história cultural, o modelo moderno do romance está presente em toda a cultura ocidental, e Honoré de Balzac e Gustave Flaubert são representantes para gostos distintos, mas até mesmo para uma crítica social deveriam ser lidos.
Alguém pode lançar o argumento filosófico, é toda uma cultura eurocêntrica, verdade, porém foi incorporada nos pensamentos cotidianos, o nacionalismo através das cores nacionais está em todo o mundo, a liberdade de expressão, como dizia o romântico Vitor Hugo (de Os miseráveis, foto): “Nem regra, nem modelos” é uma expressão também de individualismo e heroísmo pessoal, porém histórico.
Fizemos vários posts sobre o ser, a interioridade e o complemento da Vida Contemplativa com a Vida Ativa (Hannah Arendt e Byung-Chul Han em especial), sobre a metodologia do círculo hermenêutico onde devemos ouvir o texto (e também os diálogos) para fusão de horizontes e ainda o desastre da nossa cultura ocidental e a necessidade de resistência do espírito.
Insegurança na Europa e atentado nos EUA
A OTAN decidiu colocar mísseis americanos na Alemanha, os mísseis balísticos Tomahawk, que podem atingir alvos a até 2.500 km de distância e carregar munições nucleares, há também armas hipersônicas em desenvolvimento, que aumentam o poder de fogo europeu, a Rússia já possui armas deste tipo e que já estão espalhadas em locais estratégicos.
A reação russa veio através porta-voz do Kremlin Dmitri Peskov “A Europa está no ponto de mira dos nossos mísseis, nosso país está no ponto de mira de mísseis americanos na Europa. Já vivemos isso. Temos capacidade o bastante de conter esses mísseis, mas as potenciais vítimas são as capitais desses países europeus”, o que seria o estopim de uma 3G.
Os combates continuam duros, um documento secreto revela que o número de mortos já é imenso na guerra e a Rússia teria 750 mil soldados mortos ou feridos, o número da Ucrânia embora desconhecido deve estar perto deste valor, e os países vizinhos Polônia, Letônia e Lituânia além dos escandinavos ameaçam enviar tropas caso a Ucrânia se fragilize mais.
O ex-presidente e candidato a presidência Donald Trump sofreu um atentado quando fazia um comício de campanha na Pensilvânia, foram feitos vários disparos matando uma pessoa e ferindo outra, Trump foi atingido na orelha e retirado do local por seus seguranças, o atirador foi morto e o FBI investiga as motivações, a primeira é claramente política.
Embora o cenário seja assustador e não faltam espíritos belicistas, porém neste momento há uma crise civilizatória instalada porque desde o centro do poder até os cidadãos comuns há uma animosidade que não percebe o perigo da intolerância, violência como esta não só desperta espíritos mais autoritários como os fortalece, e não deveria ter aplauso de ninguém.
A boa notícia vem do Irã onde o moderado Masoud Pezeshkian, Presidente eleito do Irã afirma estar disposto à realizar ‘diálogo construtivo’ com a União Europeia, o anuncio foi feito em um jornal de língua inglesa trazendo grande esperança.
Tempo de conflitos e clareira
Se estamos em tempos impróprio para o pensamento e a inteligência, por isso a inteligência artificial assusta tanto, é tempo impróprio para valores humanos e morais, este será um tempo de clareira também, pois exigirá que muitas consciências e homens poderão despertem e enxerguem e se lancem para abrir a clareira.
É preciso para isto uma metanóia no pensamento filosófico, político, cotidiano e até religioso, lembrem-se que os verdadeiros oráculos e profetas foram mortos e ignorados até mesmo por gente inteligente e “religiosa”.
O limiar de uma crise civilizatória e humanitária sem limites está próximo, mas se olharmos a cultura cotidiana, disto falamos tanto do brasileiríssimo Ariano Suassuna até o inglês Anthony Daniels (usando o pseudônimo de Theodore Dalrymple – Nossa cultura … ou o que restou dela – 2015) nos posts anteriores, também a política e o pensamento parece polarizado entre dois estremos que em muitos valores se confundem, e um deles é a guerra e o desejo de poder.
Até mesmo os que invocam a paz escondem interesses de poder, de ganância por maior riqueza e opressão daqueles que afirma proteger, é triste um cenário de pouca luz e onde os homens de boa vontade que desejam um olhar menos sombrio para o futuro que desejam, eles devem ter espírito de resistência.
Olhando a etimologia da palavra clareira na filosofia de Heidegger, ela vem da palavra alemã Lichtung, cujo significado além do de clareira na floresta (ele próprio viveu alguns anos na floresta negra da Alemanha), sua raiz Licht é a palavra para luz, que significará coisas ocultas, ou entes cuja verdade deve vir à tona, assim alguns tradutores usaram a palavra desvelar.
Que tempo propício é este, e porque nos aproximamos dele, porque sempre que as palavras proféticas de pensadores e místicos que pedem uma mudança de rumo na humana, não foram ouvidas, se aproxima este tempo de escuridão seguido de uma grande clareira.
Na metáfora bíblica a clareira é a luz da boa nova (evangelho), mas o mestre alerta “eis que os envio (Mt 10,16) “Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, portanto, prudentes como as serpentes e simples como as pombas”.
Assim foi no tempo das guerras púnicas, da pequena Grécia lutando contra o forte império persa e também no tempo em que os apóstolos de Jesus foram enviados dois a dois em missão para abrir as clareiras e as mentes da humanidade para uma civilização mais fraterna e não se tratava de uma guerra bélica ao seu império, mas a sua mentalidade..
O mal e a compaixão
Hannah Arendt, em sua obra A Origem do Totalitarismo (original de 1951) censurou a teoria de Kant que defendia o mal como a busca da satisfação do amor de si, e defendeu que o mal existe por diferentes motivos, como por exemplo, ganância, avareza, ressentimento, desejo de poder e covardia.
A genialidade de Byung-Chul Han analisa a obra de Heidegger a partir do coração e da modalidade afetiva, porém não é algo totalmente original, Kant confessa em seu livro “Conflito das faculdades” que “por causa de seu peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida (Han, 2023, p. 8) e daí en Kant um “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (Han, 2023, p. 9).
Han usa a metáfora da costureira (Näherin) de Heidegger que “trabalha na proximidade” e é ela também uma circuncidadora do coração” (pg 10) e ali “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim conforme explica Han, no Heidegger tardio que “a contrição penetra mais profundamente” e o ser-ai separa-se do ser do aí: o dasein (p. 11).
Analisar as tonalidades afetivas do coração e sua ligação estreita com o ser-aí é mais do que descobrir a interioridade e a transcendência do discurso filosófico, ele é “O coração de Heidegger, por outro lado [confrontado com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto, mais que sentimento ou emoção.
A resistência do espírito, em nossos tempos, Han diz que o discurso de Heidegger é bastante temporal no sentido do contexto da segunda guerra mundial, é o discurso da paz, de anúncio da fraternidade, da superação de ódios e diferenças (irá recuperar o “ “Il y a” de Lévinas, e também o conceito de différance de Derrida), para ir além do conflito e da dialética hegeliana.
É preciso circuncidar o coração, esta é a origem do termo judaico, na leitura de Deuteronômio (10:16) citado em epígrafe por Han: “Circuncidai, pois, o vosso coração espiritual; retirando toda a obstrução carnal, e deixai de ser insubmissos e teimosos!”
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Resistência do espirito e pacifismo
Aquilo que Edgar Morin define como resistência do espírito, ele fez ontem 103 anos de idade (8/7), é além do pensamento e da força política, o que é espírito para a filosofia europeia é mediado pela ideia que formulamos sobre o mundo, e espírito aqui tem que ser além do pensamento atual cotidiano.
Os seres humanos são capazes em suas relações de pensar em paz, se cultua em sua interioridade, tema exaustivo na ontologia de Byung-Chul Han, e se aprofunda em valores como: humildade, fragilidade e a necessidade que temos uns dos outros, não vivemos isolados.
Enfim ter uma verdadeira alteridade, o medo da alteridade é quando há diferença e nos “pomos na defensiva”, aquilo por exemplo que é chamado de guerras preventivas, garantias de soberania sobre outros povos ou outras culturas, isto em geral iniciam as guerras e não as previnem como é o propósito dito.
A principal razão, dizem muitos autores, um que não é questionável por denunciar “as veias abertas da américa latina” é Eduardo Galeano, que disse que a grande razão é o roubo e a pilhéria dos povos a serem dominados, hoje além disto são também os impérios em choque.
O espírito de resistência e o pacifismo historicamente não é uma posição fácil ou “neutra”, é evitar a catástrofe humanitária que caracterizam todas as guerras, em uma escala mundial isto significa uma crise civilizatória sem precedentes, uma vez que o poderio bélico hoje é imenso.
É preciso um espírito bastante elevado, verdadeiramente altruísta e missionário, uma vez que as guerras atuais encontram aliados com facilidade, até mesmo na população simples, tanto a polarização quanto o uso das mídias para promover narrativas quase todas tendenciosas, são o que dão substância ao pensamento bélico e se difundem no tecido social.
Parabéns ao longevo Edgar Morin, sua resistência é visível pela idade, pela lucidez que ainda mantem e que suas palavras ecoem e a civilização encontre um caminho de resistência.
A coragem e o Ser
O imprudente não é corajoso, na antiguidade Platão e Aristóteles a definiram de modo parecido, para Platão a coragem “saber o que não temer” enquanto para Aristóteles é a virtude moral que se encontra no meio-termo entre a covardia e a imprudência.
Porém quando a coragem se torna covardia, certamente não é quando é prudente e sabe os perigos que cercam determinada atitude, mas se é uma virtude ela não pode estar distante da verdade, assim significa que não pode renunciar a verdade, sob pena de renunciar ao seu Ser.
Mas a verdade não é uma visão dos dados, dos fatos ou um posicionamento diante da realidade, a filosofia e a física moderna incluem uma terceira hipótese entre Ser e não Ser, e assim é possível o “meio-termo” aristotélico sem que ele seja a capitulação da verdade.
O tema angústia e medo, que ocorre quando há ameaça a própria existência, levando-as muitas vezes a permanecer na dispersão da preocupação, em Heidegger, essa dispersão, que é o modo de existir da maioria das pessoas, só pode ser vencida através de uma “decisão antecipatória” que leva o Dasein a acolher nele só o que é finito, moral ou imediato.
Outros autores, como Kierkegaard que criticou os que haviam pensado uma solução desta preocupação em um deus “imaginado” pela razão, e neste sentido está correto já que isto não é depositado na fé, criticam os que haviam pensado em uma transcendência do “Deus acima de Deus”, que seria uma espécie de coragem do Ser, e isto seria a potência do ser com raízes na transcendência, estão certo porque não sendo algo divino “a confiança em Deus” transformam em potência situada além, e assim torna-se a confiança em si mesmo.
Há algo na existência humana que é uma espécie de medo máximo: a morte, há aqueles que buscam a fonte da eterna juventude, o prolongamento da vida, porém a finitude humana é algo que causa um medo fatal, e diante da morte muitos poucos são aqueles que não invocam a presença divina, a presença da mãe ou algum outro recurso transcendente.
O filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han esclarece bem isto: “A perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas à própria realidade, torna a vida humana radicalmente transitória” porque viver bem cada momento presente é estar na eternidade.
Nem todos creem porque precisam ver o eterno, porém Tomé que viveu com Jesus precisou tocá-lo ressuscitado para crer que há o eterno, há o infinito além do humano, o Ser-aí que somos.
Religiosidade e a cultural liberal
O liberalismo moderno criou um ambiente onde muitas práticas culturais que eram questionadas anteriores, em especial aqueles que ignoram direitos e deveres sociais, foram aos poucos sendo liberadas, a ideia (no sentido do idealismo filosófico mesmo) de liberdade é aquela que agrada a vontade, no sentido de exigência racional e prática da autoderminação universal, com isto a moral e a ética não são aqueles que impedem o exercício do mal, mas aquela que agrada a razão.
Assim não faz sentido para o liberalismo contemporâneo o combate a usura, juros extorsivos são praticados por bancos sem falar da agiotagem, o combate a imoralidade pública, a nudez e a pornografia público não é mais assunto moral e os diversos tipos de males a saúde, ao bem-estar social tornou-se até mesmo pilhéria em discursos midiáticos.
Não se trata também de moralismo puritano, nem de gosto pessoal em relação a forma de se manifestar e comportar-se socialmente, mas de deboche, de ofensa pública a todos os que querem um mínimo de moralidade pública, Adorno escreveu sobre a “Minima Moralia” na década de 40, no sentido de como a “vida danificada” se desenvolveu numa forma de violência e do horror no mundo contemporâneo.
Também há formas de má cultura religiosa, aquela que carece de uma ascese verdadeira que impulsione o mundo para a empatia, a convivência social saudável (também no aspecto da saúde num mundo embriagado pelo uso de álcool, drogas e substâncias tóxicas), sem esquecer que o mais nocivo e terrível é a ofensa cultural, e a cultura da violência que chega ao limite nas formas de guerras armadas e não armadas no mundo contemporâneo.
Sobre o aspecto religioso, vale lembrar a todos que tentam usar o álibi religioso para a prática antissocial, a passagem bíblica de Mateus 23: “Então eu lhes direi publicamente: Jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal” e na passagem é uma referência clara a pregadores que “expulsaram demônios” e “fizeram milagres” em nome de Jesus.
As narrativas tóxicas que são usadas para estas práticas via de regra não conseguem fazer uma narração completa, precisam usar falsos exemplos e até testemunhos sem nexo para justificar a insanidade da prática e permissividade em relação a moral pública e social, usam a ofensa e até o xingamento público que deixa clara sua adesão à exclusão e ao comportamento antissocial, a permissividade pública, aquela que se nega à coerção e a punição a atitudes antissociais são também formas de violência pela omissão.
O resultado é um ambiente psicologicamente difícil, uma vida social danificada, como expressa por Adorno, e uma vida em que tudo é transitório como vê Byung-Chul Han.