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Arquivo para a ‘Linguagens’ Categoria

Catarse e moral limpa

28 jun

O liberalismo político e moral não quer que o termo “estar limpo” seja utilizado, a maioria das pessoas que passaram por alguma dependência química, entretanto gostam de usar a palavra e o significado é mais profundo do que parece.

Sem uma força interior que nos ajude com frustrações e situações sociais complexas, não é possível entrar em um novo estado de espírito, em uma mudança de rota, isto significa que ocorre aquilo que os gregos chamam de catarse.

O termo vindo do grego “kátharsis” significa um estado de libertação psíquica (que também pode ser física e moral) em que o ser humano supera algum trauma, dependência ou medo que vem de uma perturbação psíquica.

Poucos percebem o valor de estar limpo moralmente, ao menos fazer um esforço para isto, o médico e psiquiatra Antony Daniels que escreveu diversos livros sobre a destruição da cultura, aquilo que de outra forma e análise Adorno chamou de “vida danificada” não é senão a constatação de um mal-estar na civilização, como analisou Freud ou o esquecimento do Ser.

Antony Daniels escreveu livros com o pseudônimo Theodore Dalrymple, em sua análise sobre o processo civilizatório esclarece: “A primeira exigência da civilização é que os homens estejam dispostos a reprimir seus instintos e apetites mais baixos: falhar nisso faz deles, precisamente porque são inteligentes, muito piores que meras bestas” e já chegamos a este ponto.

A ideia que estamos “libertando” as pessoas liberando seus instintos mais animalescos, não é outra coisa senão escraviza-la através de forma mais cruel que é a dependência, assim não é uma catarse, mas sim um caminho de difícil retorno, a dependência psíquica de algum apetite.

Na história, por ignorância, os portadores de hanseníase (lepra) eram considerados impuros, e eram excluídos socialmente, hoje esta impureza está relacionada aos vícios e a dependência moral ou química de instintos liberados e sem a necessária repressão.

Numa passagem bíblica do evangelho de Mateus um leproso se aproxima de Jesus e pede: “Senhor, se queres, tu tens o poder de me purificar”. Jesus estendeu a mão, tocou nele e disse: “Eu quero, fica limpo”. No mesmo instante, o homem ficou curado da lepra.

 

Religiosidade e a cultural liberal

27 jun

O liberalismo moderno criou um ambiente onde muitas práticas culturais que eram questionadas anteriores, em especial aqueles que ignoram direitos e deveres sociais, foram aos poucos sendo liberadas, a ideia (no sentido do idealismo filosófico mesmo) de liberdade é aquela que agrada a vontade, no sentido de exigência racional e prática da autoderminação universal, com isto a moral e a ética não são aqueles que impedem o exercício do mal, mas aquela que agrada a razão.

Assim não faz sentido para o liberalismo contemporâneo o combate a usura, juros extorsivos são praticados por bancos sem falar da agiotagem, o combate a imoralidade pública, a nudez e a pornografia público não é mais assunto moral e os diversos tipos de males a saúde, ao bem-estar social tornou-se até mesmo pilhéria em discursos midiáticos.

Não se trata também de moralismo puritano, nem de gosto pessoal em relação a forma de se manifestar e comportar-se socialmente, mas de deboche, de ofensa pública a todos os que querem um mínimo de moralidade pública, Adorno escreveu sobre a “Minima Moralia” na década de 40, no sentido de como a “vida danificada” se desenvolveu numa forma de violência e do horror no mundo contemporâneo.

Também há formas de má cultura religiosa, aquela que carece de uma ascese verdadeira que impulsione o mundo para a empatia, a convivência social saudável (também no aspecto da saúde num mundo embriagado pelo uso de álcool, drogas e substâncias tóxicas), sem esquecer que o mais nocivo e terrível é a ofensa cultural, e a cultura da violência que chega ao limite nas formas de guerras armadas e não armadas no mundo contemporâneo.

Sobre o aspecto religioso, vale lembrar a todos que tentam usar o álibi religioso para a prática antissocial, a passagem bíblica de Mateus 23: “Então eu lhes direi publicamente: Jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal” e na passagem é uma referência clara a pregadores que “expulsaram demônios” e “fizeram milagres” em nome de Jesus. 

As narrativas tóxicas que são usadas para estas práticas via de regra não conseguem fazer uma narração completa, precisam usar falsos exemplos e até testemunhos sem nexo para justificar a insanidade da prática e permissividade em relação a moral pública e social, usam a ofensa e até o xingamento público que deixa clara sua adesão à exclusão e ao comportamento antissocial, a permissividade pública, aquela que se nega à coerção e a punição a atitudes antissociais são também formas de violência pela omissão.

 O resultado é um ambiente psicologicamente difícil, uma vida social danificada, como expressa por Adorno, e uma vida em que tudo é transitório como vê Byung-Chul Han.

 

Farisaísmo e Jonas

26 jun

Em que consiste a ausência de espiritualidade nos dias de hoje, mais do que a falta de Deus, diz Byung-Chul Han é o fato que tudo na vida se torna transitório, mas também as consequências de uma forte polarização na qual todos ânimos se concentram e limitam a verdadeira interioridade, a verdadeira espiritualidade fora da bolha, na alegoria explorada por Sloterdijk em Esferas I o sinal de Jonas, lembra um pouco o trecho bíblico (Lucas 11,29-30): “Esta geração é uma geração perversa: pede um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal de Jonas. Assim como Jonas foi um sinal para os habitantes de Nínive, assim o será também o Filho do homem para esta geração”

Sloterdijk via a falta na falta de centralidade uma díade, tanto serve para a polarização como para um policentrismo, isto é uma ausência de situar-se no mundo, lembramos que o ponto central da filosofia dele é o que significa estar no mundo, e Jonas que tenta fugir de sua missão vai parar no ventre da baleia, isto é, seu desejo de fugir do mundo e de sua missão, é a ideia de refugiar-se num puro interior do qual são vítimas aqueles que fazem uma ascese desespiritualizada, tentam não estar no mundo, que é diferente do Ser-no-mundo, categoria que Sloterdijk usa a palavra “vorhandensein”* para explicar sua polêmica sobre o humanismo com Heidegger, que usa o termo dasein para Ser no mundo.

Onde estava Jonas quando estava no mundo? Dentro da baleia. A baleia é parte da consciência de Jonas que lhe provoca a pensar no exterior a partir de um interior. Heidegger já havia pensado neste puro interior de que todos somos vítimas, um espaço radical e intrínseco, nossa habitação única e primeira por onde permeiam todas as nossas impressões, pensamentos e afetos.

O sinal de Jonas, único sinal para esta geração que busca um “sinal de Deus” é, portanto, encontrar esta interioridade mesmo estando no mundo e sujeito a suas díades (polos) ou mesmo o policentrismo (meias-verdades de diversas narrativas) sem conseguir alcançar uma verdadeira ascese, entretanto Jonas sai da baleia e vai a Nínive cumprir sua missão.

Assim, a relação com o exterior é uma constante tensão, e não há como fugir dela, não é um filtro para a verdade, mas a busca da clareira, de um espaço onde cultivamos o nosso interior, assim na visão de Sloterdijk que nos ajuda, o sinal de Jonas é sua vida interior quando estava no ventre da baleia, dentro de sua “esfera” na concepção de Sloterdijk.

Assim não é aquele que grita Senhor, Senhor nem aquele que vive de “boas intenções” exteriores apenas, é preciso viver esta tensão interioridade e ser no mundo este Ser que é.

O farisaísmo é viver de aparências exteriores que não correspondem a interioridade, mas também a interioridade “pura” é ficar no ventre da Baleia sem viver a tensão exterior.

*a tradução ao pé da letra seria: estar disponível (no caso de Jonas para a missão).

SLOTERDIJK, P. Esferas I : bolhas.  Tradução José Oscar de Almeida Marques. Sáo Paulo : Estação Liberdade, 2016.

 

As bolhas e o outro

25 jun

Diversos autores escreveram sobre a questão do Outro, infelizmente ainda há uma ignorância sobre o termo, ele renasceu (a meu ver sempre existiu na filosofia cristã, a patrística trata amplamente do termo como “próximo” e Paul Ricoeur lembra isto), Habermas escreveu sobre a Inclusão do Outro que seriam as fronteiras de comunidades abertas a todos, Byung-Chul Han escreveu A expulsão do Outro, ao refletir sobre a comunicação hoje, entretanto Emmanuel Lévinas e Paul Ricoeur o trataram com originalidade e riqueza.

Já postamos algo sobre Lévinas lido por Byung-Chul Han que lembra seu conceito de “il y a” no qual analisa um aspecto funcional da relação ética, fazendo-a transcender, é preciso dizer que não é a eticidade de Hegel, para ele o princípio da saída do ser para a existência, passando do ser ao seu estado bruto, é sair da solidão do “il y a”, assim dá sentido a existir.

De Paul Ricoeur postamos em alguns trechos a relação entre o “sócio” e o próximo, a primeira é utilitária e a segunda realmente “transcende”, mas sua obra seminal é o Si-mesmo como um outro (publicado em 1990, em português no Brasil em 2014 pela Martins Fontes), ele tem o cuidado de tratar que o si-mesmo não seja deixado de lado, uma vez que é comum ver o Outro eliminando o si-mesmo, ainda que na relação fenomenológica sempre é necessário um “epoché”, mas colocado entre parênteses.

Mas aqui queremos avançar para o conceito de bolhas no Esferas I de Peter Sloterdijk, expõe sua esferologia, forma de definir e problematizar o que significa “estar no mundo”, uma vez que nós viemos de uma esfera que é o ventre materno, e saímos para a esfera do nosso planeta, e ele cria um conceito de imunologia para dar sentido a sua ideia de meio social de comunicação que é a co-imunidade, é curioso que o termo veio bem antes da pandemia.

É curioso que o autor, que não vê religião como algo objetivo, não deixa de analisar em sua obra conceitos vindos na “cultura” do cristianismo ao falar, por exemplo, de uma ascese desespiritualizada que vale para muitos religiosos de hoje, e de Matrix in Gremio (no colo da mãe, uma clara alusão a Maria) e aqui destacamos a eucaristia (não é o conceito ortodoxo, é obvio).

Ao falar das bolhas, um tópico especial é “Do excesso eucarístico”, essa mútua incorporação é descrita em episódios ilustrativos constituintes da tradição europeia da cordialidade ao seu ver, que para nós latinos poderia ser um adjetivo de miseri-cordis, tem um coração que acolhe humildemente o coração do outro, e seu “excesso’ seria melhor compreendido.

Narra três episódios neste tópico, o primeiro é do período da trova cavalheiresca do século XIII pelo poeta Conrado de Würzburg, em que o impossível adultério trovadoresco de um cavaleiro e uma dama é levado à concretude somente com a consumação não ciente do coração do rapaz pela moça, claro trata-se do amor humano aqui, porém o autor também trata do testemunho de Raimundo de Cápua (1330-1399) que ganha coro, no qual Catarina de Siena (uma santa católica muito sábia) que tem seu coração trocado pelo do próprio Cristo revelado, marcando a comunhão esférica do humano com o divino, e aqui se entende a sua adjetivação de “excesso eucarístico”.

O terceiro é mais filosófico e retoma a filosofia clássica de Platão, uma adaptação feita por Marcílio Ficino do Banquete de Platão, com a influência da medicina medieval ele imagina que Fedro penetra, com adaptação clara medieval, com vapores sanguíneos que vieram do seu coração e extrapolaram pelo seu próprio olhar, os outros de Lísias, com isto insufla seu coração tornando-o enamorado de Fedro.

O discurso de Lísias, no diálogo platônico Fedro fala do encantamento provocado pela arte de usar belamente o logos, com intuito de persuadir, ele elabora um belo e “lógico” discurso para dizer que é mais vantajoso entregar-se a um não apaixonado do que um amante, ele exerce ali sobre Fedro um fenômeno chamado apathê.

A questão importante de Sloterdijk é que todos estamos sujeitos a nossas bolhas, aos nossos pré-conceitos e somente com este recurso pensado por Lísias, ver o outro não-amante e não próximo, como uma possível entrega é que podemos iniciar um processo de aproximação, na filosofia de Hans-Georg Gadamer a “fusão de horizontes”.

Que olhar temos sobre o Outro diferente e como podemos realizar um “apathê” que se torne um encontro favorável e interessante, uma comunicação possível.

SLOTERDIJK, P. Esferas I. trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Liberdade, 20 16.

 

A guerra pode se estender ao Oriente

24 jun

A inclusão de mais protagonistas num ambiente de guerra propicia sua escalada, e a resposta da Rússia ao encontro na Suíça foi imediata.

Putin se reuniu com o presidente da Coréia do Norte, um dos países mais fechados e bélicos do mundo, e depois foi ao Vietnã do Norte em busca de cooperação para a guerra na Ucrânia, a reação da Coréia do Sul foi Imediata, o presidente sul-coreano Yoon Suk-Yeol declarou: “é absurdo que duas partes com um histórico de lançar guerras de invasão, a Guerra da Coreia e a guerra na Ucrânia, agora prometam cooperação militar mútua com base na premissa de um ataque preventivo por parte da comunidade internacional que nunca acontecerá”, entretanto é uma clara ameaça.

O documento chamado de “Tratado Abrangente de Parceria Estratégica” tem o mesmo espírito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) , que prevê assistência de todo bloco a qualquer ataque que um membro sofra, a Rússia já tem a parceria da Bielorrússia, e assim parecem se formar as alianças que antecederam a segunda guerra, na época o Eixo era Alemanha, Itália e Japão, e depois aliaram-se também a Bulgária, a Croácia, a Hungria, a Roménia e a Eslováquia (a Finlândia, que não participou) Stalin da Rússia chegou a acenar a um acordo e depois traído, tornou-se inimigo do Eixo e uniu-se a Aliança que os combatia (França, Reino Unido e EUA).

Pode-se imaginar que este clima era absurdo, povos que viviam em paz aliarem-se deste modo, porém se olharmos nosso cotidiano hoje não é diferente, se olharmos a visão quase sempre polarizada e criando narrativas para as guerras podemos entender como este clima se instala, desejar a paz é também uma opção e poucos pensam assim, neste momento o presidente coreano destaca em seu discurso a ideia clara que o país não vê motivo para a guerra, mas não descarta enviar auxílio à Ucrânia e assim um novo polo do conflito surge.

Reagir com passividade em um conflito não significa omitir-se ou contrário é a posição mais dura por que verifica que há equívocos sempre que o recurso é a guerra, a leitura de uma narrativa não é a narração, conforme afirma Byung-Chul Han e Walter Benjamin (O narrador), lembram que a história contada por Heródoto do rei Psammenit “serve como exemplo de sua arte da narração” (Han, 2023, p. 21).

Nela o rei egípcio Psammenit ao ser derrotado na guerra pelo rei persa Cambises, após ver a filha reduzida a criada e o filho sendo levada para ser executado permanece com os olhos para o chão, porém ao ver entre seus servos prisioneiros, um homem idoso e frágil “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (Han, 2023, p. 22) pois talvez preferisse estar no lugar daquele pobre homem, a guerra destrói nossa humanidade mais profunda, a narrativa distorce e desumaniza a história.

Assim é preciso uma narração sensata, serena, o atual potencial bélico do mundo pode nos levar a mais séria crise civilizatória muito além da barbárie podendo chegar ao extermínio ou a um limite intransponível de ódio e violência, temos esperança de paz se ainda houver pacíficos. Diz a leitura bíblica: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!” (Mt 5, 9).

Han, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: ed. Vozes, 2023.

 

O Justo, a ira e a serenidade

21 jun

Martino Bracarense, autor do século V d.C. pouco conhecido porém é um dos responsáveis pelos dias da semana no galeco-portuguesa segunda feira, terça, etc., afirmou que “A ira transforma todas as coisas do melhor e mais justo em seu contrário”, não são poucas as reflexões filosóficas, psicológicas e até poéticas sobre a ira, William Shakespeare afirmou que: “a raiva é um veneno que tomamos esperando que o outro morra” (a foto ao lado é de Andre Hunder no unsplash).

Em tempos tempestuosos para guardar a justiça e a serenidade é necessário um grande esforço de caráter e temperança pois o normal é reagir a dor do ódio com alguma forma, mesmo que dissimulada de ódio, Aristóteles afirmava: “um desejo, acompanhado de dor, de vingança percebida, em razão de uma desconsideração percebida em relação a um indivíduo ou seu próximo, vinda de pessoas das quais não se espera uma desconsideração” (Retórica de Aristóteles).

O que significa acompanhada (a ira) pela dor? Isto exige a definição de pathê que Aristóteles: “que as emoções sejam todas aquelas coisas em razão das quais as pessoas mudam seus pensamentos e discordam em relação aos seus julgamentos, sendo acompanhadas de dor e prazer, por exemplo raiva, piedade, medo e todas as outras coisas semelhantes a seus contrários”, claro não é uma definição exaustiva da ira, pois ela precisaria de elementos psicológicos, patológicos e uma análise mais aprofundada do tema.

O importante é saber que ela: escapa da justiça, produz uma intemperança e colocada em uma sequencia de ódios estruturais acaba por criando uma total ausência de serenidade, de capacidade de reflexão e no final das contas é produtora de uma grande fonte de injustiças e até mesmo psicopatologias.

 Outro ponto é pensar no antídoto deste estado de ânimo, muitas vezes cultural, estrutural e produzido por aqueles que julgam defender a paz, claro que em essência estes mesmo indivíduos são eles próprios casos patológicas, porque a ira dissimulada, ou como diz o dito popular “o veneno destilado” ao contrário da medicina não é antídoto, ele é o veneno em doses continuas e progressivas.

Onde encontrar então a serenidade? A resposta é simples na esperança, aquela mesmo que espera, que respira e que medita e contempla, tema exaustivamente elaborado em Byung-Chul Han em quase todos seus ensaios, No enxame onde exorta “o respeito” como única forma de simetria, o silêncio e a contemplação em “Vita Contemplativa” e o conceito de tonalidade afetiva em sua obra “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva”, embora nunca site o termo diretamente, penso que é o que no fundo ele pretende contribuir para o pensamento contemporâneo para recuperar sua capacidade de pensar, contemplar e Ser.

Também o pensamento religioso de nosso tempo precisa recuperar mais que a serenidade, a sobriedade, porque parecem envoltos de certas embriaguez de nosso tempo, como afirma o pensamento judaico-cristão veio o vento e Deus não estava lá: “depois do terremoto houve um fogo, mas o Senhor não estava nele. E depois do fogo houve o murmúrio de uma brisa suave” (livros dos 1Reis 12) e também é famosa a tempestade de Jesus entre os apóstolo dormindo e uma tempestade acontecendo, Ele acordou e manda o mar se acalmar para espanto dos apóstolos (Marcos 4,39).

 

O Justo e a reconciliação

20 jun

A justiça praticada apenas de modo legalista e sem nenhuma misericórdia ela é apenas humana e não pressupõe a paz social, ela incita o ódio entre adversários.

O contrato social estabelecido na modernidade, vem na verdade da ideia de absoluto do primeiro contratualista John Hobbes (1588-1679) e também da ideia de O Príncipe de Maquiável, na verdade transfere todo o direito e a justiça ao Estado e isto não significa que ele não pratique injustiças, na modernidade sabemos que sim.

Também no ápice do idealismo Hegel (1770-1831) desenvolveu uma ideia teleológica do Absoluto, que é uma figura abstrata ainda que a caracterize como “potência substancial”, que no momento de sua subjetividade e singularidade deste conceito se manifesta como uma substância universal, que através de sua abstração se efetiva como uma espécie de consciência de si singular, substituindo a ideia de essência da Ontologia, é algo abstrato mesmo.

A ideia de justiça traduzida no Justo de Paul Ricoeur, Habermas e outros autores é a ideia que ela não é a singularidade de uma substância, mas sim deve estar concretiza em algo concreto que é o Justo, este sim em potência pode e deve se desenvolver dentro do que é moral e ético, na antiguidade clássica os filósofos, em particular Platão que procurava a educação para os cidadãos, ele deveria ter as virtudes, o aretê, que na sua significação mais precisa significa excelência, e Aristóteles a desenvolve como phronesis, que é o político.

Parece muita teoria abstrata, a nosso ver o idealismo hegeliano realmente o é, mas as virtudes e a excelência política de cada pessoa não é abstrata, ela significa a capacidade de cada um de exercer a política considerando os direitos do outro e a responsabilidade ética com os bens sociais, em especial, com o bem-comum.

A reconciliação é sempre aquela situação de conflito onde é possível rever as responsabilidades sociais de cada um e os diversos éticos de posicionamento social, se alguém cometa uma falta grave ou leve, sempre é possível encontrar o Justo, aquele ponto em que as partes envolvidas podem estabelecer uma espécie de contrato social particular, minimizando o dano ou a perda das partes envolvidas.

Diz a leitura bíblica se você não se reconciliar com teu irmão, ele te levará ao juiz, o juiz ao tribunal e dali irá para a prisão, é então melhor se reconciliar antes.

 

O Justo vê o Outro e é delicado

19 jun

Paul Ricoeur em seus dois volumes de O Justo irá se dedicar a desvelar esta relação, que envolve relações de poder, iniciando pelo grito que considerado justo: “Isto é injusto!” diz no prefácio de seu livro em referência ao primeiro capítulo do livro de R.J. Lucas “On the Justice” (1955) e reconhece nela uma proclamação de um protesto.

Como em boa parte da obra de Paul Ricoeur é no reconhecimento da face do Outro que devemos entender o príncipio da Justiça, mas faz uma longa análise da obra de John Rawls “Teoria da Justiça” porque não ignora relações de poder e sua influência na visão de justiça atual, até mesmo Habermas o analisou.

A experiência de injustiça é feita por nós próprios como por outros indivíduos e ainda mais por grupos humanos, em especial aqueles que estão em guerra por que consideram graves: o roubo de seus direitos, mas a experiência de injustiça requer uma reflexão profunda, em especial naqueles casos que há violência contra vítimas e a injustiça social.

Ricoeur retoma Aristóteles para analisar a “vida boa”, mas é preciso esclarecer que não é o sentido pejorativo de boa vida de malandros e oportunistas usado no senso comum, na linguagem aristotélica e da Grécia antiga o bom tem um sentido eminentemente ético, ou seja, o bem que se busca é inseparável do bem do outro, assim busca a paz e não o conflito ou a usurpação de bens como Eduardo Galeano classifica todas as guerras, é além de qualquer egoísmo repreensível, que rebaixa o sujeito o impedindo de atingir e ser respeitado no plano moral.

No ensaio verdade é justiça, do Justo 2, Ricoeur se refere à expressão mesma que serve de título ao seu livro O outro como um si-mesmo, onde comenta: “A fórmula de « Si-mesmo como um outro » é neste sentido uma fórmula primitivamente ética, que subordina a reflexividade do si à mediação da alteridade do outro.”

Há uma dimensão deontológica que não é distante da teológica no seu pensamento sobre o Justo, a ética de Ricoeur não se limita ao monologismo inerente ao formalismo kantiano, presente em John Rawls, ao mesmo tempo que se recusa a um apelo ao sentimento, digamos ao “coração” tem uma dimensão de “delicadeza” no respeito ao Outro.

Byung-Chul Han lembra em seu livro “No exame” que apenas uma relação é simétrica (diríamos horizontal, sem a relação de poder): “o respeito” e é esse respeito que nos leva a compreensão do Justo com relação ao Outro.

Assim aquele que pratica a justiça raramente busca holofotes ou brilho próprio, sabe que em essência o que faz é uma relação de respeito ao Outro, diferente e diverso.

Ricœur, P. Le Juste 1. Paris : Éditions Esprit, 1995.

 

Novo recorde do blog, ontologia e paz

19 jun

Ultrapassamos os 50 mil acessos mensais neste blog, deverá chegar próximo aos 60 mil no final do mês, já é um novo record, o último a muito tempo era acima de 30 mil.

Credito isto aos nossos desenvolvimentos atuais sobre a ontologia, a retomada da questão do Ser escondida pela ausência de uma filosofia que compreenda o Ente (as coisas que são presentes na vida real) e contemple o homem todo desvelando a relação com o Ser, em nossa brincadeira pessoal: o Ser do ente.

Não deixamos de tocar a questão da contemplação, a necessidade de uma verdadeira ascese espiritualizada e uma religião autêntica que preserve a vida e a dignidade de todos.

Ela está em conexão com nossos análises e constantes apelos a paz, a escalada de conflitos em âmbito mundial coloca a própria civilização em crise e como no período que antecede a guerra muitas narrativas distorcem as verdadeiras causas e perigos da guerra, novos tipos de colonialismo e discursos que ignoram o Outro, assim além das leituras frequentes de Byung-Chul Han e Heidegger, pontos centrais de nossos posts, não deixamos de analisar o dia-a-dia cotidiano e outros autores como Paul Ricoeur e Edgar Morin.

Agradeço aos leitores e manteremos o site e blog independente e sem qualquer patrocínio.

 

A clareira e a floresta

18 jun

A ontologia é aquela visão científica onde o Ser deve estar presente, mesmo que envolto e desenvolto em torno do ente, o ente é aquilo que designa tudo aquilo que “é” ou seja refere-se ao particípio presente do verbo ser, assim Heidegger vai pensar o que é o ser do ente, enfim tudo aquilo que está relacionado ao mundo que vivemos porém nunca se esquecendo que é nele que vive o Ser.

Assim o filósofo pensou a verdade a partir da palavra grega alétheia (a- não, lethe – oculto), assim é o ato de desvelar a verdade do Ser e sua relação com o ente no tempo, a verdade é então distinta do conceito comum que a considera como um estado descritivo objetivo.

Para Heidegger entretanto, há uma diferença fundamental entre o Ser e o Ente, o Ser se refere ao fundamento da existência e dos modos de existir, enquanto o Ente corresponde à existência concreta, ou, a realidade humana, enquanto presença no mundo, assim geralmente pensamos no Ser do Ente (a cacofonia é proposital aqui) e não o Ser enquanto Ser.

O Ser enquanto Ser é esse ser-aí (o dasein sem uma tradução exata, ao meu ver, para o português), esse que “existe” sendo o único ente que ek-siste, os outros são, mas não existem (enquanto consciência, ou de modo mais atual enquanto senciência) ainda que os animais possam ter emoções e reações de afetividade.

Ou seja, senciência é a capacidade dos seres de sentirem sensações e sentimento de forma consciente, assim podem evitar reações negativas, violentas ou temperamentais.

Assim a clareira é aquele encontro com sua própria verdade, em meio a floresta, há um espaço onde tudo se desvela e nosso verdadeiro Ser se encontra e encontra o Outro.

O ser do ente, projetado sobre as coisas apenas mundanas: dinheiro, facilidades e conquistas, encontra um espaço para sua vida ativa e contemplativa, tudo em volta se desvela, se reencanta e tem significado, não é fácil nem simples porque a floresta continua ali e continuamos a desbravá-la em busca dos “entes” e até os encontramos, mas novamente temos que ir em busca de novos porque ainda não é a clareira, é diferente do mito de Platão porque ali existe um mundo dual: o mundo das ideias e o mundo dos sentidos.

O homem moderno precisa se colocar  no centro do seu Ser e ter uma relação de posse transitória com os entes, as coisas do dia-a-dia e do mundo real.

Na narrativa bíblica devemos amar sempre o Outro, até mesmo pedir e orar por aqueles que não querem nosso bem, isto nos limita de atirar sobre os entes como sendo Ser.