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A sabedoria de pensamentos puros
O simplismo é o pensamento ingênuo, enquanto a simplicidade é o pensamento puro, a noesis pura.
Não está na capacidade de elaboração teórica, na cultura livresca que resiste a sabedoria, ela une simplicidade (que não é simplista) e complexidade no sentido de colocar tudo sob o manto da natureza e do universo, e entender que há saberes originários que não são simplistas, mas foram elaborados num contato real com a natureza, por isto rejeito a ideia de naturalização.
A culturalização é aquela que se apoderou do natural e o perverteu, disse o filósofo, escritor e líder indigenista Ailton Krenak sobre a atual crise pandêmica: “A Terra está falando para a humanidade: ‘silêncio’. Esse é também o significado do recolhimento”.
Grande parte da cultura ocidental está em crise, porque apoderou-se da natureza de maneira brutal e não quer entendê-la e tem dificuldade de ler nos sinais visíveis e claros, esta crise vem de antes da atual revolução tecnológica, muitos filósofos no início do século XX apontaram para ela, e o silêncio pedido por Krenak pode ser também aquilo que Theodor Adorno identifica como verdadeira contemplação: “A bem-aventurança da contemplação consiste no encanto desencantado.” Theodor Adorno, lembro que este filósofo não é místico, nem religioso.
Ailton Krenak escreveu “Ideias para adiar o fim do mundo” (Cia. da Letras, s/a), dentro de uma cosmovisão indígena, mas com consciência de que se trata de um problema planetário, disse numa entrevista ao Jornal Estado de Minas (03/04/2020): “Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza”, denunciando que o modo que vivemos é artificial e não condiz com a natureza humana”.
Interpretando o livro de Davi Kapenawa, outro líder indígena, Viveiro de Castro e Danowski veem também que o nosso pensamento “culto” e ocidental está concentrado no mundo da mercadoria, e diz Kapenawa: “os brancos sonham muito, mas só sonham consigo mesmo”, ou seja, com sua própria cultura sem conseguir contemplar um mundo mais amplo, onde todos estão presentes.
Estas cosmovisões podem parecer ingênuas, mas significam que devemos sempre pensar além de nossa cultura, também a cosmovisão cristã pede este esforço, e depois dos ensinamentos aos seus apóstolos daquilo que o próprio mestre deveria passar, e eles ainda não entendem, Jesus vai fazer uso de uma nova metáfora para que eles pensem de modo mais puro e menos culturalizado (e não naturalizado).
No capítulo 10 do evangelho de Marcos, vendo que queriam afastar as crianças dele, Ele diz (Mc 10,14-15): “Deixai vir a mim as crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são como elas. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele”.
O mundo que há de vir, em diferentes cosmovisões, ainda que pareçam infantis, mostra a crise e o esgotamento do pensamento cultural de nosso tempo, e o esgotamento dos meios naturais.
Entre o Natural e o Sobrenatural
A alma (anima em sua versão greco-latina original) foi estudada por quase todos filósofos da antiguidade, pode ser resumida do latim “anima mundi” (alma do mundo) como um conceito cosmológico de uma força regente do universo pelo qual o divino se manifesta em leis que afetam a matéria, ou na hipótese de uma força imaterial, como algo inseparável da matéria, está em Platão nos livros A República e Timeu.
Marsílio Vicino, humanista renascentista, que escreveu uma Theologia Platônica, definia como “A alma pode ser chamado o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a corrente do mundo, a essência de tudo, o nó e a união do mundo”, seja qual for o conceito ela é uma parte do natural que pode ter manifestações desconhecidas pela ciência atual, e por isto é sobre-natural.
Porém o natural que o homem pareceu dominar a partir do iluminismo, se revelou aos poucos mais misterioso que se imaginava, já no início do século o princípio da incerteza deu origem a física quântica e um minúsculo vírus nos desafia, e não o superamos, o relaxamento pode provocar nova crise, como um doente mal curado que deseja fazer atividades que a doença não permitia.
Em seu livro a Natureza da Natureza, não por acaso o seu primeiro livro sobre seu método da complexidade, Edgar Morin vai descrever o Dasein da natureza (da physis) como: “Todos os sistemas, mesmo aqueles que nós isolamos abstracta e arbitrariamente dos conjuntos de que fazem parte (como o átomo, que é ademais um objecto parcialmente ideal, ou como a molécula), estão necessariamente enraizados na physis” (Morin, 1977, p. 133), e citando Lupasco (criador da ideia do terceiro incluído, estado entre o ser e não ser da matéria): “Um sistema só pode ser energético” (idem).
A energia, a complexidade e o mistério é, portanto, uma característica da natureza, e descobrimos no último século que a incerteza não só deve ser parte de um método realmente científica, como a ausência dela pode levar a dogmas e obscurantismo.
Como o sobrenatural se manifesta então dependo da cosmovisão de cada cultura, sem se confundir com ela, pois tem um significado ímpar dentro da escatologia que o vê, o princípio e fim de tudo, do universo e de seus enigmas.
Na cultura cristã, o sobrenatural está presente na revelação humana de um Deus que se faz pequeno, e se reduz a condição humana para levá-lo ao devir da eternidade, Jesus proibia os apóstolos de falarem abertamente sobre a sua divindade, mas interrogava-os (Mc 8,27-29):
“Quem dizem os homens que eu sou?”. Eles responderam: “alguns dizem que tu és João Batista, outros que és Elias, outros, ainda, que és um dos profetas”. Então ele perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Messias”.
Ele conversava a parte com os discípulos e ia explicar o tipo de morte que ia morrer.
MORIN, E. O MÉTODO 1. A NATUREZA DA NATUREZA. Portugal: Edições Europa-America, 1977.
O natural e o cultural
É bastante usada neste momento da história a palavra naturalização, e assim cabe a explicação aqui desta ideia do natural que permeia a cultura ocidental desde a antiguidade clássica, o que existe na verdade é uma dicotomia entre a cultura e o natural.
O renascimento foi um grande movimento de transformação na cultura ocidental, o universo tornava-se infinito, novas terras e novos povos entram na história do Velho Mundo e este clima colocava tudo em discussão, o humanismo italiano foi um destes palcos de históricos movimentos, citamos Pico della Mirandola e Marsilio Vicino e suas obras, porém Dante Aligheri é mais citado.
O Ulisses de Dante vai atravessar os Pilares de Hércules do conhecimento científico, da filosofia, da técnica, da matemática, das artes e das letras, desafiando os dogmas anteriores, porém a física e o domínio da natureza se colocam em lados opostos, embora a Revolução Copernicana seja o grande símbolo desta virada, será o domínio da natureza que se desenvolverá no momento posterior.
A ideia de ausência de limites, da previsibilidade, e das certezas acompanharam a filosofia da modernidade até o advento da física quântica, enquanto a ciência procurava o domínio do natural, e vemos agora as consequências deste domínio no planeta em crise ecológica, a física ponto inicial da revolução copernicana continuou se movendo na direção do mistério das partículas às subpartículas atômicas, do universo harmônico ao caos com buracos negros, com caminhos de minhoca (wormholes) que contradizem o tempo absoluto, são a dimensão espaço-tempo já prevista por Einstein, e que as astrofísica moderna já comprovou.
As incertezas chegaram a ciência, e Edgar Morin lembra que uma das consequências da pandemia atual em entrevista afirmou: “Não sabemos as consequências políticas, econômicas, nacionais e planetárias das restrições causadas pelos confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, ou ambos misturados: caminhamos na direção a novas incertezas”, e isto é o futuro.
A naturalização de contextos históricos (raça, etnias e sexismos, por exemplo), na verdade é uma culturalização (embora o termo não exista), e as epistemologias ditas científicas foram importantes para isto, principalmente do ponto de vista histórico, onde foram transformadas em cultura porquanto não eram naturais e nem mesmo reais, mas versões da história.
O planeta, a sociedade e a civilização pede uma trégua, e não sabemos se será possível entrega-la, o clima é cada vez mais tenso, e uma consequência que não esperávamos da pandemia (que devia nos empurrar para a solidariedade) é que estamos mais divididos que antes, a trégua será difícil.
O humanismo e o natural
Temos dificuldade em entender o que é realmente natural e o que cultural, a visão naturalista da filosofia pré-socrática já antecipava uma teia de leis e interpretações do mundo material não dando exatamente a configuração o que era o Ser, foi neste espaço que se desenvolveu a ideia de sujeito como dual do objeto, assim a subjetividade não é vista como cultural, mas natural.
As escassas referências de Heráclito, o que fica dele são apenas algumas máximas como não pode-se atravessa o mesmo rio duas vezes, a ideia do devir e o fogo como elemento primordial na natureza, escondem uma busca da identidade humana com um tom objetivista prevalecente, era a via aberta por Sócrates para temas hoje tão importantes como a interioridade e a consciência.
A consciência moral foi retomada apenas no âmbito do cristianismo, passando à margem em Platão e Aristóteles, que elaboraram a ideia do motor imóvel (princípio de todo universo e assim da natureza) mas separado do mundo das ideias, onde ideias “naturalistas” se desenvolveram, não postularam um regnum hominis, um reino do homem, claro haverá outras leituras deste período.
O que me encorajou foi a descrição que Karl Popper fez sobre O mundo de Parmênides como um período de gênese do iluminismo, a physis grega não é outra coisa senão a natureza, assim pode- se dizer como mais propriedade que o naturalismo fisicalista se inicia ai, uma extensão da percepção que o sujeito humano tem sua interioridade vinculada ao meio vivencial, e portanto cultural, uma compreensão do macrocosmo individual ou coletivo (dos grupos culturais) fica então vinculada a ideia de natureza sem que uma cosmovisão mais ampla seja contemplada.
A esta questão prende-se outra, sobre a emergência do sujeito anulando o Ser, que é a liberdade, sujeito só o é como ação, ou seja em função do objeto, a interioridade é então parte problemática de um subjetivismo individual ou coletivo, e não de uma liberdade de opções sobre a qual se manifesta.
Se o homem no seu universo só pode submeter-se as leis, ao seu destino, ele não é livre, não há lugar para autonomia, e num sentido mais amplo está sujeito ao fatalismo, em Aristóteles é traçado um conceito unidimensional de liberdade ao defini-la como o ser livre é aquele que se tem a si mesmo como um fim e que não se sujeita a trabalhos servis, é definido, portanto,, em torno da polis, e de suas leis.
Se o conceito antropocêntrico é hoje revisitado, é importante compreender suas raízes gregas.
A filosofia renascentista vai desenvolver um humanismo, como o homem no centro de toda a especulação, sendo criatura do mundo desfruta, entretanto de uma situação singular e muito excepcional, destaco Nicolau de Cusa, Marsílio Ficino e Pico della Mirandola.
Ficino é o menos conhecido, nascido em Figlini Valdarno (1433) é o maior representante do humanismo fiorentino renascentista, e revisita as obras de Platão, Plotino, Porfírio e Proclo.
Talvez a razão de ser pouco conhecido pode dever-se ao fato de ter se tornado sacerdote e ter escrito a Theologia Platonica (1482), obra que faz um diálogo com a concepção de religião de Platão e os neoplatônicos.