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Caminhando para um futuro incerto
Palestras e livros motivacionais estão crescendo desde o início do século XXI, não importa muito a mensagem, o importante é levar as pessoas a uma força de ação que é a do desempenho.
Religiões tradicionais perdem adeptos para igrejas que trocam o discurso do pecado pela autoajuda e pelo desejo de reconhecimento e sucesso, a polarização política não deixa isto de lado um bom político deve demonstrar seus “feitos” e não sua isenção, equilíbrio e honestidade.
Longe de estar desdenhando a evolução tecnológica, ela é importante e podem auxiliar numa retomada co-imunológica, aquela em que descobrimos a mutualidade, o “exame” conforme descrito por Byung Chul Han apenas busca performance e ela pode incluir o desrespeito e as fake- News.
A sociedade repressora e disciplinar do século XX descrita por Michel Foucault (Vigiar e Punir) perde espaço para uma nova forma de organização coercitiva: a violência neuronal, enchem-se as fanpages, as lives exibindo performances e até mesmo exibindo violência, o que é preocupante é o excesso de informação pouco elaborada.
Interioridade, que é diferente de subjetividade, que é o que é próprio do sujeito, é aquele espaço interno que precisamos cultivar para tornar a nossa vida mais equilibrada, com pensamentos e atos mais positivos e que colaborem com o mutualismo, o sentimento de responsabilidade pelo outro, a consciência social, enfim, a coimunidade (a sociedade imunológica).
Chul Han aponta que a subjetividade, já presente em discursos de pensadores atuais, como a “sociedade pós-industrial” (Bell, 1999), “soeicdade do controle” (Deleuze, 1992), “capitalismo cognitivo” ou “economia material” (Negri e Lazzarato, 2001, Gorz, 2005) e “biopolítica” (Foucault, 2008) foram formas de expressão desta subjetividade, porém sem lançar mão da interioridade, todas citações de Byung Chul Han.
A sociedade é empurrada para um excesso de positividade como a chama Chul Han em sua Sociedade do Cansaço, o conceito disciplinar coercitivo (“tu deves”) imposto de fora, fez entrar em cena um novo enunciado (“nós podemos”), o qual, em seus aspectos mais imanentes, “remete a uma falsa liberdade ao impor aos indivíduos os imperativos do desempenho e autosatisfação.
A análise do autor parte do filme Cisne negro (Aronofsky, 2010) para explicar sua tese, a imposição de performance e desempenho mediante a autossuperação é incorporada pela protagonista que é levada as últimas consequências.
A sociedade do cansaço atual nada mais é do que a absolutização unilateral da “potência positiva” e o melhoramento cognitivo (neuro-enhancement) pode não representar nenhum problema moral, mas levará a um problema moral ainda maior na normatividade da sociedade do desempenho.
HAN, B. C. A sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2 ed. ampl. Petrópolis, Vozes, 2017. 128 pp
O diálogo e o essencial
O essencial está distante da sociedade moderna porque é exigido de todo ser humano, até mesmo daqueles que tem alguma limitação física ou diferença social o máximo de desempenho, Byung-Chul Han no seu livro a Sociedade do Cansaço (Vozes, 2015), define-a também como sociedade do desempenho.
Ela nos projeta para fora do essencial, ao contrário de uma “época imunológica” ela é uma “época neuronal”, a divisão entre “dentro e fora, amigo e inimigo ou entre o próprio e estranho”, é definido como “ataque e defesa” (HAN, 2015, p. 8) por isso ela tende para o confronto e não a paz.
A paz exige diálogo, e o essencial exige escolhas interiores que nos movam ao essencial exterior.
Este esgotamento do desempenho é o que “nos incapacita de fazer qualquer coisa” (Han, 2015, p. 76) e o diálogo se torna difícil, proselitista ou mesmo mera retórica, mas só ele pode levar a paz.
Edgar Morin, que completou 100 anos (veja o post anterior), estabeleceu como operador dialógico aquele capaz de operar: a razão e a emoção, o sensível e o inteligível, o real e o imaginário, a razão e os mitos, e, a ciência e a arte.
Pode-se ver que a polarização sempre se coloca de um dos lados, não articula “o dentro e o fora” como propõe Chul Han, então dialogizar é admitir a ligação estes polos e não sua mútua exclusão.
Devido a questão identitária, fortes em nossos tempos que envolvem culturas, religiões e nacionalidades, o polo entre a razão e os mitos torna-se exacerbado onde o diálogo é difícil.
É preciso respeitar o diferente ao dialogar, permitir-lhe também a palavra e não excluí-la com argumentos apenas racionais, há razões ontológicas, históricas, culturais e sociais para seus argumentos, e se não estivermos “desarmados” o diálogo não se realiza.
Ao enviar os discípulos para levar a “boa nova”, são interessantes as instruções dadas aos apóstolos, em Mc 6,8-10 ele pede para não levarem nada, nem mesmo bolsas ou sacolas, e ao entrar numa casa desejassem a paz, e fiquem ali até a vossa partida, e diz a leitura que curavam doentes e expulsavam demônios, o essencial e o diálogo têm esta potencialidade.
O desiquilíbrio da performance, do cansaço e da frivolidade levam a sociedade a exaustão e a dificuldade de diálogo, porque também estamos cheios “dentro” de convicções e razões.
HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Tradução Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
Entre o Ser, o Nada e a interioridade
A primeira sensação ontológica, diante da racionalidade foi uma tentativa de confinar o Ser em sua subjetividade (que vem de sujeito) para tornar a relação com o Ente uma “objetividade” que existe fora do Ser (para a modernidade fora do sujeito).
Como ambas negam a a ex-sistência, aqui significa ex “sair de” e o verbo sistere “ser colocado”, assim existir é o que está colocado fora do ente, mais que a subjetividade é a própria essência do Ser, além do imaginário e do simbólico, do imaginário porque é o irrepresentável e o simbólico porque significa o não-sentido, mas aí estão toda essência e existência do Ser.
A concepção de negar a existência do ser, que tem que negar até mesmo a razão que a concebe, vem de Górgias (485-380 a.C.), sofista que Platão refutou em um livro, para ele não havia verdade e pode-se dizer que é o princípio longínquo para o relativismo.
A existência e realidade do Ser, embora velada, está na possibilidade de uma clareira, dela depende a abertura do Dasein, sua relação com a physis (a natureza no sentido geral dos gregos) e para a qual deve ser retirado o véu que cobre o ser, e assim a relação com o ente e a interioridade.
Se nos vemos apenas como vemos num espelho vemos a imagem do nosso ente, se vemos como somos significa que temos capacidade de ver além dele nossa interioridade, nossa complexidade e a partir delas como nos relacionamos com o todo do qual somos parte.
A projeção sobre a exterioridade e negação da interioridade é parte do esvaziamento do Ser na modernidade, somos o que fazemos e não importa muito o que somos de fato interiormente.
Deste esvaziamento nasceu o niilismo (nihil – nada), o solipsismo (o eu e minhas sensações) e de certa forma o subjetivismo (considerações só sobre o que é pessoal, uma interioridade vazia) e boa parte das teorizações prezas as dicotomias infernais (subjeito x objeto) e (natureza x Cultura).
Numa interpretação mais atual, na Sociedade do Cansaço, Byung Chul Han fala da interioridade, em outro livro A Sociedade da Transparência ele afirma: “hoje o mundo não é um teatro no qual são representadas e lidas ações e sentimentos, mas um mercado onde se expõem, vende e consomem intimidades” (HAN, 2017, p. 80).
HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, Vozes, 2017.
Da linguagem ao Ser
A linguagem enquanto fala e retórica é apenas aquilo que se exterioriza, porém se pensada como ontologia é a abertura (Erschlossenheit) a partir da apropriação silenciosa do si-mesmo, como Heidegger pensou em Ser e Tempo, seja a abertura (offenheit) pensada como clareira do ser (lichtung des Seins), aquela usada por pensadores e poetas, e que se mostra na medida que sua correspondência silenciosa como ser, expressa em Carta sobre o Humanismo.
Escreve neste texto: “O destino se apropria como clareira do Ser, que é, enquanto clareira. É a clareira que outorga a proximidade do ser. Nessa proximidade, na clareira do Da lugar, mora o homem como ex-sistente, sem que ele já possa hoje experimente e assumir esse mora” (Heidegger, 1967, p. 61)
Em termos gerais linguagem é um veículo da expressão de algo interno ao homem, isto é, uma ponte que vincula o dentro e o fora do homem, tal forma de falar é pensada como uma atividade que acontece na qual o homem é o próprio meio, por isto há o silêncio antes.
Mas segundo a concepção ontológica da linguagem, não é a linguagem que pertence ao homem, mas antes o próprio homem concebido ontologicamente como ser-para-a-morte resoluto ou ser ontologicamente que responde como mortal à solicitação silenciosa do Ser.
Em termos mais simplistas trata-se aqui da diferença entre o ente que “tem” uma linguagem, no sentido de capacidade de falar, e a concepção ontológica que pensa o homem como “sendo” por meio de ser possuidor da capacidade de falar, a linguagem aqui não é apenas a transmissão de informações, mas o modo no qual manifesta o próprio existir humano.
Neste contexto comunicação começa com o silêncio, é preciso um vazio, um epoché na comunicação, que pressupõe um Outro que será destinatário, não é assim receptor, mas destino de sua fala, e este é o modo pelo qual se manifesta o próprio existir humano.
Assim para Heidegger, mas de outro modo também para Niklas Luhmann, seria preciso rever toda a teoria da Comunicação, pois receptor e transmissor são eles próprios o meio não humanos, e não “substituem” o homem, não podem existir nem ter relação como se o homem fosse algo acessório, aí está toda a alucinação da Inteligência Artificial atual, colocar receptor e transmissor no lugar de fonte e destino, seria preciso prever uma “clareira” do ente “fora” do Ser.
Por isto a clareira é interna, já postamos em outro oportunidade aquilo que Heidegger afirma em sua obra magna Ser e Tempo: “Na medida em que o ser vige a partir da alethéia, pertence a ele o emergir auto-desvelante. Nós denominamos isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira” (cf. Ser e Tempo). (* aletheia do grego: a- não, lethe- esquecimento, desvelar).
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 61.
O que é compreender
Compreender se tornou na estrutura analítica ocidental um círculo vicioso que tende apenas a repetir aquilo que considera verdade partindo de algum aforisma histórico, o que Gadamer chama de historicismo romântico em sua crítica a Dilthey.
O esquecimento do ser ignora que o círculo hermenêutico que vai da interpretação até uma nova compreensão é a própria estrutura de um novo sentido, um sentido existência, que está no Ser.
Assim a circularidade da compreensão não é primeiramente uma exigência lógica, a partir de um método A ou B, mas o próprio desdobramento ontológico: “a reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui prejaz um círculo, mas um círculo este tem um sentido ontológico positivo” (GADAMER, 2013, p. 355).
Heidegger (2014) em sua obra magna Ser e Tempo elaborou uma hermenêutica da facticidade a partir da analítica temporal da existência humana (Dasein), aqui facticidade é o modo de ser em seu Dasein que encontra, na existência temporal, a possibilidade de revelação, de clareira:
“A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Mas ela era mais que isso. A tese de Heidegger era o próprio ser é tempo” (Gadamer, 203, p. 345), eis a essência mais profunda da obra de Heidegger, que aponta para o círculo hermenêutico:
“O decisivo não é sair do círculo, mas nele penetrar de modo correto. Esse círculo do entender não é um círculo comum, em que se move um modo de conhecimento qualquer, mas é a expressão da existenciária estrutura-do-prévio do Dasein ele mesmo. O círculo não deve ser degradado em vitiosum nem ser também tolerado. Nele se abriga uma possibilidade positiva de conhecimento o mais originário, possibilidade que só pode ser verdadeiramente efetivada de modo autêntico, se a interpretação entende que sua primeira, constante e última tarefa consiste em não deixar que o ter- prévio, o ver-prévio e o conceber-prévio lhe sejam dados por ocorrências e conceitos populares” (Heidegger, 2014, p.433), mas dirigir-se as coisas mesmas.
O compreender visto assim pode parecer filosófico demais ou uma teorização sobre o pensar, não o é, pois, mesmo no esquecimento do Ser, estrutura atual de fragilidade do pensamento, este é o processo de aprendizagem que envolve desde o aprendizado da linguagem por uma criança até os mais elaborados métodos de descoberta e inovação, ou são apenas repetição de algo já feito, e assim sem a facticidade, pois é mera repetição.
GADAMER, H-G. Verdade e método Trad. Flávio Paulo Meurer, revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 13. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2013.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.
A linguagem como pluralidade
O problema da interpretação quando estamos pensando na linguagem surge como uma proposição demonstrativa, ocorre quando se torna tal interpretação como única e verdadeira, a proposta de Heidegger esta é uma das possibilidades da linguagem, mas não a única nem a principal, quando tratamos apenas de lógica ela não compreende a pluralidade da linguagem.
Isto está presente naquilo que hoje seja chama narrativa ou discurso, já tratamos em vários posts quando tratamos da Metáfora Viva de Paul Ricoeur, mas aqui a problemática é ontológica: o Ser.
A ciência e a técnica, assim como também a narrativa ideológica sequer tangencia o problema essencial da questão do ser, está voltada àquilo que se chama ciência natural ou da natureza:
“a ciência natural só pode observar o homem como algo simplesmente presente na natureza (…) dentro desse projeto científico-natural só podemos vê-lo como ente natural, quer dizer, temos a pretensão de determinar o ser-homem por meio de um método que absolutamente não foi projetado em relação à sua essência peculiar” (Heidegger, 2001, p. 53).
Este é o devaneio da tradição na concepção de linguagem e de verdade, aquela que traz a noção de finitude do ser: ser é tempo, assim por exemplo, acelerando o tempo pensamos em acelerar o ser, quando na verdade é o que provoca seu esvaziamento, tema comum dos heideggerianos.
Separamos o Ser ontológico do existencial, citando o próprio Heidegger, porque a analítica cai em outra armadilha que é ligar o ser ao sujeito, cópula e atributo, criando uma possibilidade estrutural da linguagem, ela é tentadora justamente por sua composição analítica, mas no fundo é essencialmente lógica e não onto-lógica, escapa-lhe o Ser.
Tal evasiva já era prevista por Heidegger: “a essência do ser em sua multiplicidade jamais pode ser em geral recolhida a partir da cópula e de suas significações” (Heidegger, 2003,p. 391).
A linguagem carrega sua própria relação hermenêutica. Heidegger, a partir de Ser e Tempo, realoca a questão da compreensão e da busca da verdade, que estava colocada no âmbito da teoria do conhecimento, e a lança para o plano existencial, neste caminho surge o círculo hermenêutico, não preso a mera opinião ou ao logicismo funcional, nem ao analítico.
A hermenêutica de Heidegger ilumina a finitude humana enfatizando sua pertença à linguagem como o lugar que o humano habita, a noção de logos como desvelamento, como aletheia como os gregos a pensavam, verdade e realidade.
HEIDEGGER, M. Seminário de Zollikon Petrópolis: Vozes, 2001.
HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
A angustia, o ser finito e o temor
A angústia, enquanto categoria essencial, é o dado temporal mais significativo de nossa existência, o fato que o homem tem um fim, que ele morre e sua existência acaba, é a partir daí que Heidegger trabalha outro conceito que é o ser-para-a-morte [Sein-zum-tode].
Assim a morte é uma limitação da unidade originária do ser-aí, e significa a transcendência humana, o poder-ser, que contém uma possibilidade do não-ser, mas aqui só como negação, “o fim” do ser-no-mundo é a morte, este fim limita o poder-ser, que é a sua existência, e limita a totalidade possível do Dasein (1989, vol. II, p. 12)
É possível separar o medo do temor, deixar o primeiro dentro dos limites do finito, e o temor fora destes limites, aquilo que o imaginário humano penetra e projeta como não-ser, além da ser-para-a-morte, um ser-para-além-da-morte.
Byung Chul Han alerta que assim como a positividade a negatividade também é perigosa: “ela é definida pela negatividade da proibição. O verbo modal que a governa é o ´não-pode´ (…) A sociedade do desempenho, cada vez mais, está no processo de descartar a negatividade. A crescente desregulamentação está abolindo isso. O ilimitado ´poder´ é o verbo positivo modal da sociedade da conquista (…) proibições, comandos e leis são substituídos por projetos, iniciativas e motivação. A sociedade da disciplina ainda é governada pelo ´não´. Sua negatividade produz loucos e criminosos. Em contraste, a sociedade do desempenho cria depressivos e perdedores.”
Assim é possível pensar na negatividade como um processo importante, embora gere medo, e a partir dela gerar um processo do temor, que longe de negar as proibições, demonstra que elas podem nos levar a resultados mais amplos que os prometidos pelo desempenho, é o além-do-ser.
Nem a transcendência do idealismo que é mera projeção do ser sobre o objeto, o assim chamado subjetivismo, nem o ser-para-a-morte como transcendência fatal, mas um temor produzido pela negatividade que nos leva a reconhecer limites, tal como aqueles que foram impostos na Pandemia e que não geram a morte, nem se confundem com o negacionismo que é o positivo modal, negar que a vida humana precisa de limites em situações de perigo.
A leitura Bíblica de Marcos (Mc 4, 35-41), pode neste quadro do temor, desvelar novas coisas sobre o ser, diz a leitura que “ao despedir as multidões”, Jesus foi com os discípulos “para a outra margem”, diria longe do ser-aí da pura positividade do ser-no-mundo, o barco enfrenta forte ventania e ondas fortes começam a encher a barca, o temor toma conta dos discípulos, temem pela morte e dizem ao mestre “estamos perecendo”, o mestre diz para o vento e o mar: “cala-te”.
Não se trata de mágica nem de simples demonstração de poder, a frase dita por Jesus explica muito: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”, mas eles ainda sentiam “um grande medo”, é a angústia.
A angustia e o temor diante da existência
O traço constitutivo do Dasein, em Heidegger está além do fenômeno psicológico e ôntico, não sendo algo que se refere somente a um ente ou a algo dado, nos remete a totalidade do ser como um ser-no-mundo, isto é sua verdadeira dimensão ontológica, nela se explica a angustia do Ser.
A categoria surgiu com Kierkegaard porém para ele a angústia revela o nosso ser finito, o nada de nossa existência diante da infinitude de Deus, por seu caráter eterno, ao passo que Heidegger não pensa apenas como categoria ontológica tornando-a apenas um fenômeno da finitude humana.
Preso a finitude humana é que encontra-se em Heidegger a diferença entre angústia e temor (furcht), mas na obra Ser e tempo o temor também é uma existência fundamental mediante o qual o homem se encontra no mundo (Heidegger, 1989) e isto torna a angustia um estágio suave.
Já o temor constitui para o autor uma disposição anima forte [Befindlichkeit] é ela que nos remete a algo que tememos e com isso se manifesta o todo do mundo, em sua estranheza e assombro, ela é o que acontece antes que possamos realizar um ato de conhecimento do mundo.
Há nela uma força de revelação do mundo, mesmo que num primeiro momento seja só fuga, nela por exemplo a alegria ou a felicidade, explica o autor são muito transitórios e menos marcantes, este ser-aí encontra-se lançado [geworfen] em meio a estados de ânimos, capaz de suportar o peso da existência, e nela “O humor torna manifesto ‘como a gente se sente’. Neste ‘como a gente se sente’ o estar disposto traz o Ser em seu estar-aí” (HEIDEGGER, 1986, p. 134).
Dito de forma mais precisa, ou mais de acordo com o pensamento de Heidegger, o medo é uma disposição central na nossa existência pelo fato de que manifesta o mundo no ator de fuga do ser-aí de si mesmo, mesmo sendo o homem o tema objetivo de Heidegger e Kierkegaard, o endereço últimod e ambos é o temor não como um objeto fora dele, mas sim ele mesmo: o homem somente teme por algo determinado porque em última instância ele é afetado e interessado.
Faço uma digressão porque o estar “fora” para o mundo contemporâneo, Byung Chull Han e Hanna Arendt retomaram de forma diferente o “estar dentro” na “vitta contemplativa”, em Heidegger o medo se volta para quem teme e não para o que teme, em Kierkegaard o temor é a Deus, porém já em período do idealismo projetado sobre o mundo, não como um Ser “fora”.
O importante no discurso heideggeriano é que consegue estabelecer três formas de medo: o diante do que [wofür] tememos algo, o que nos ameaça (as dificuldades da co-presença), o próprio temer [fürchten] enquanto tal, que abre para nós o mundo (as esferas de Sloterdijk ajudam esta reflexão), e, e o porquê [worum] nós tememos, que é o nosso próprio estar-aí.
Por fim, o temor pode ter variações: ele pode ser o que é assustador; pode ser o horror e também a decepção” (Heidegger, 1986, p.142), porém a diferença entre medo e temor ajudaria a separar melhor a categoria de Heidegger de Kierkegaard, que temor é de algo “maior”.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo Traduçăo de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989.
O ser em sua autenticidade
A incursão de Heidegger sobre o que é a vida social, é que ela é regida por uma noção obscura do que seja convivência, onde não há sujeitos e sim um império do impessoal, do império que a tradução para o português fica muito boa, império do “a gente”, é uma sociabilidade truncada, não é apenas o individualismo, mas um lugar onde nem o eu nem o nós se distinguem.
Este espaço individual é aquele que tudo nivela por baixo, uma perda do Dasein no espaço aberto da “opinião pública” (Öffentlichkeit]), uma sociabilidade truncada, até o nós não inclui o Outro.
Neste estar aí do Dasein em que medida ele lida com outras pessoas do seu meio ambiente cotidiano, para isto Heidegger dá um passo na determinação da analítica existencial, que é responder como o mundo se abre para o Dasein, independente se seja o mundo de coisas ou de homens, isto pode ser compreendido por como ele vê a abertura para o mundo.
A vê como como uma abertura primeira e fundamental de modo triplo: a disposição, a compreensão e a interpretação, entendendo que isto o torna envolvido com o mundo.
Então primeiro o ser humano é tomado por estados da alma que abrem para ele irrefletidamente o mundo, geralmente por meio de um certo desvio, uma disposição, compreende o mundo não como uma teoria ou conceitos, mas como o próprio Dasein está com-preendido numa situação.
Assim a disposição torna-se compreensão, mas não é o homem que compreende o mundo e sim o mundo compreende o homem de modo totalizante, onde o ser humano inteiro é compreendido e isto o remete ao conceito de projeto (Entwurf) num sentido essencial: ele é projetado no mundo.
Este projeto dá ao homem possibilidade de interpretação, e só então consegue traduzir o mundo no discurso e na linguagem, tendo em vista que a proposição e o enunciado sempre implicam em um momento posterior na existência do Dasein.
São estas aberturas ao mundo no discurso e na linguagem, porém que devem levar em conta a proposição e enunciado como implicando um momento, sempre posterior, na existência do Dasein, porém a tendência de encobrimento no Dasein é sempre forte para que se torne livre.
Este traço fundamental de encobrimento e de fuga de si mesmo se fazer valer e determinar o ser-no-mundo do ser-aí (Heidegger, 1989) põe a questão sobre a possibilidade do ser-aí sair de sua inautenticidade.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989
De que humanismo falamos
É comum estabelecer uma conexão entre os estudos de ontologia e a questão da existência, o filósofo Paul Sartre o fez, porém nem a tradição ontológica da escolástica, nem Heidegger fazem esta conexão, este último ressaltou: “O enunciado principal do existencialismo não tem nada em comum com aquele enunciado de Ser e tempo” (HEIDEGGER, 1996a, p. 329).
Em sua Carta sobre o humanismo, de 1947, Heidegger vai afirmar que o que distingue o homem é a sua relação com o ser e o modo como ele resguarda o ser, e não na medida em que é definido como um ser dotado de razão, e ele próprio critica esse humanismo, pois para ele o que há é um esquecimento do ser, que é diagnosticado em toda tradição filosófica ocidental, começando em Platão e se estendendo até Nietzsche, com todas suas injunções políticas e epistemológicas.
O tema do ser caracterizado no pensamento ocidental que tem raízes incipientes nos pré-socráticos, são já que são anteriores a “episteme”, é novamente retomado a partir de Heidegger como uma “ontologia fundamental”, isto é, com a possibilidade de questionar o ser em sua essência, e como este questionamento o humanismo de todo homem, assim a essência é coexistente com o ser.
É preciso enquanto se discute a ontologia, entende que o Dasein, o ser-aí de Heidegger, está preocupado em examinar como se dá a primeira, a original compreensão do homem em sua essência mesma, até mesmo antes do momento de formular uma teoria ou de ter consciência, a teoria chegar num momento posterior e a consciência de dá após a abertura do homem ao Ser.
Para entender o que Heidegger caracteriza como existência pode-se ler: Que é metafísica? (1929), onde se lê: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta” (Heidegger, 1989b, p.59).
Deste modo o objetivo da ontologia fundamental de Ser e Tempo é o ser que que se colocado como ente privilegiado e que é capaz de questionar o ser, que possui compreensão do ser [Seinsverständni], e este ente é o homem, e a partir dele que pensamento o humanismo.
É certo que há uma crítica de Peter Sloterdijk em “Regras para o parque humano: uma resposta a cartas sobre o humanismo”, que questiona o antropocentrismo, nossa relação com a natureza.
Heidegger, M. Ser e Tempo Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989a.
______. Que é metafisica? Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1989b. (coleção Os Pensadores).