RSS
 

Arquivo para a ‘Método e Verdade Científica’ Categoria

O lugar do homem na natureza

16 set

A terceira citação importante na Introdução do livro A natureza da NATUREZA é a citação de São João da Cruz, feita por Edgar Morin: “Para alcançares o que não conheces, deves seguir o caminho que não conheces”, por isto é preciso um epoché, uma total suspensão de juízos e conceitos.

Edgar Morin explica que a primeira “cristalização” do seu trabalho foi feita no livro Le Paradigme perdu (O paradigma perdido, de 1973), diz ser uma gestação prematura do seu método, ali “esforça-se por reformular o conceito de homem, isto é, de ciência do homem ou antropologia” (MORIN, 1977, p. 14).

Depois de contestar a tríade ciência Ʌ política, Ʌ ideologia, onde um dos três termos é absorvido pelo outro, vai criar outra tríade do indivíduo, partindo de Edward Sapir (Antropologie) que afirma que é absurdo separar o homem no individual e no social, ele acrescentará o biológico, para penetrar na natureza, e sua tríade é então o homem como um conceito trinitário [indivíduo Ʌ sociedade Ʌ espécie], “no qual nenhum termo pode reduzir ou subordinar o outro” (Morin, 1977, p. 14) e a partir daí vai elaborar seu conceito de complexidade.

Retomando sua questão: “Que significa o radical auto de auto-organização?” (idem) responderá que “ela reinstaura a problemática da organização viva”, a segunda “Que é organização?”, responderá introduzindo o conceito de antropossocial que complementa o conceito do físico, que não pode se limitar a química nem sequer a termodinâmica (a entropia é um conceito na desorganização) e por fim sua grande questão “O que é complexidade?” e isto significa que há uma ordem/desordem no desenvolvimento da natureza viva em um aspecto antropossocial.

Isto é importante porque coloca ele destacado no livro: “A realidade antropossocial projecta-se e inscreve-se precisamente no cerne da ciência física” (p. 15), o tema é longo, mas sendo sucinto: “O grande corte entre as ciências da natureza do homem oculta, simultaneamente, a realidade física das segundas e a realidade social das primeiras” (idem).

Assim toda realidade social depende de um modo da ciência física, e esta depende de certo modo da realidade antropossocial, o autor pergunta qual e procura responder em todo livro.

Também o teólogo e paleontólogo Teilhard Chardin procurou desenvolver no seu livro “O lugar do homem na natureza” esta crescente complexificação que vai das primeiras células até o homem, e para ele, seria este o resultado da complexificação geral das leis físicas e química da natureza.

Morin lembra o drama de nosso tempo, depois de discorrer sobre os ganhos científicos pelos métodos cartesiano/enciclopedistas partindo da célula e da molécula até os quasares, os pulsars, chegando ao DNA, porém “o homem fragmenta-se: aqui fica uma mão-no-instrumento, ali uma língua-que-fala, algures um sexo salpicando um pouco de cérebro” (p. 17).

Faz uma citação de Rebelais: “Ciência sem consciência não passa de ruína da alma” (idem).

MORIN, E. A natureza da NATUREZA. Lisboa> PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA., 1977.

 

Entre o Natural e o Sobrenatural

10 set

A alma (anima em sua versão greco-latina original) foi estudada por quase todos filósofos da antiguidade, pode ser resumida do latim “anima mundi” (alma do mundo) como um conceito cosmológico de uma força regente do universo pelo qual o divino se manifesta em leis que afetam a matéria, ou na hipótese de uma força imaterial, como algo inseparável da matéria, está em Platão nos livros A República e Timeu.

Marsílio Vicino, humanista renascentista, que escreveu uma Theologia Platônica, definia como “A alma pode ser chamado o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a corrente do mundo, a essência de tudo, o nó e a união do mundo”, seja qual for o conceito ela é uma parte do natural que pode ter manifestações desconhecidas pela ciência atual, e por isto é sobre-natural.

Porém o natural que o homem pareceu dominar a partir do iluminismo, se revelou aos poucos mais misterioso que se imaginava, já no início do século o princípio da incerteza deu origem a física quântica e um minúsculo vírus nos desafia, e não o superamos, o relaxamento pode provocar nova crise, como um doente mal curado que deseja fazer atividades que a doença não permitia.

Em seu livro a Natureza da Natureza, não por acaso o seu primeiro livro sobre seu método da complexidade, Edgar Morin vai descrever o Dasein da natureza (da physis) como: “Todos os sistemas, mesmo aqueles que nós isolamos abstracta e arbitrariamente dos conjuntos de que fazem parte (como o átomo, que é ademais um objecto parcialmente ideal, ou como a molécula), estão necessariamente enraizados na physis” (Morin, 1977, p. 133), e citando Lupasco (criador da ideia do terceiro incluído, estado entre o ser e não ser da matéria): “Um sistema só pode ser energético” (idem).

A energia, a complexidade e o mistério é, portanto, uma característica da natureza, e descobrimos no último século que a incerteza não só deve ser parte de um método realmente científica, como a ausência dela pode levar a dogmas e obscurantismo.

Como o sobrenatural se manifesta então dependo da cosmovisão de cada cultura, sem se confundir com ela, pois tem um significado ímpar dentro da escatologia que o vê, o princípio e fim de tudo, do universo e de seus enigmas.

Na cultura cristã, o sobrenatural está presente na revelação humana de um Deus que se faz pequeno, e se reduz a condição humana para levá-lo ao devir da eternidade, Jesus proibia os apóstolos de falarem abertamente sobre a sua divindade, mas interrogava-os (Mc 8,27-29):

“Quem dizem os homens que eu sou?”. Eles responderam: “alguns dizem que tu és João Batista, outros que és Elias, outros, ainda, que és um dos profetas”. Então ele perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Messias”.

Ele conversava a parte com os discípulos e ia explicar o tipo de morte que ia morrer.

 

MORIN, E. O MÉTODO 1. A NATUREZA DA NATUREZA. Portugal: Edições Europa-America, 1977.

 

O humanismo e o natural

08 set

Temos dificuldade em entender o que é realmente natural e o que cultural, a visão naturalista da filosofia pré-socrática já antecipava uma teia de leis e interpretações do mundo material não dando exatamente a configuração o que era o Ser, foi neste espaço que se desenvolveu a ideia de sujeito como dual do objeto, assim a subjetividade não é vista como cultural, mas natural.
As escassas referências de Heráclito, o que fica dele são apenas algumas máximas como não pode-se atravessa o mesmo rio duas vezes, a ideia do devir e o fogo como elemento primordial na natureza, escondem uma busca da identidade humana com um tom objetivista prevalecente, era a via aberta por Sócrates para temas hoje tão importantes como a interioridade e a consciência.
A consciência moral foi retomada apenas no âmbito do cristianismo, passando à margem em Platão e Aristóteles, que elaboraram a ideia do motor imóvel (princípio de todo universo e assim da natureza) mas separado do mundo das ideias, onde ideias “naturalistas” se desenvolveram, não postularam um regnum hominis, um reino do homem, claro haverá outras leituras deste período.
O que me encorajou foi a descrição que Karl Popper fez sobre O mundo de Parmênides como um período de gênese do iluminismo, a physis grega não é outra coisa senão a natureza, assim pode- se dizer como mais propriedade que o naturalismo fisicalista se inicia ai, uma extensão da percepção que o sujeito humano tem sua interioridade vinculada ao meio vivencial, e portanto cultural, uma compreensão do macrocosmo individual ou coletivo (dos grupos culturais) fica então vinculada a ideia de natureza sem que uma cosmovisão mais ampla seja contemplada.
A esta questão prende-se outra, sobre a emergência do sujeito anulando o Ser, que é a liberdade, sujeito só o é como ação, ou seja em função do objeto, a interioridade é então parte problemática de um subjetivismo individual ou coletivo, e não de uma liberdade de opções sobre a qual se manifesta.
Se o homem no seu universo só pode submeter-se as leis, ao seu destino, ele não é livre, não há lugar para autonomia, e num sentido mais amplo está sujeito ao fatalismo, em Aristóteles é traçado um conceito unidimensional de liberdade ao defini-la como o ser livre é aquele que se tem a si mesmo como um fim e que não se sujeita a trabalhos servis, é definido, portanto,, em torno da polis, e de suas leis.
Se o conceito antropocêntrico é hoje revisitado, é importante compreender suas raízes gregas.
A filosofia renascentista vai desenvolver um humanismo, como o homem no centro de toda a especulação, sendo criatura do mundo desfruta, entretanto de uma situação singular e muito excepcional, destaco Nicolau de Cusa, Marsílio Ficino e Pico della Mirandola.
Ficino é o menos conhecido, nascido em Figlini Valdarno (1433) é o maior representante do humanismo fiorentino renascentista, e revisita as obras de Platão, Plotino, Porfírio e Proclo.
Talvez a razão de ser pouco conhecido pode dever-se ao fato de ter se tornado sacerdote e ter escrito a Theologia Platonica (1482), obra que faz um diálogo com a concepção de religião de Platão e os neoplatônicos.

 

Escutatória e a crise do pensamento

03 set

Quando só o discurso fundamentalista e ideológico tem espaço é porque ouvir o outro lado tornou-se difícil, entender que a realidade é múltipla e complexa, que não haverá um futuro monocromático que seja sustentável, é fundamental para um mundo novo que seja sustentável.

Também a compreensão da realidade, além dos fatos e da visão de mundo de cada grupo social e cultural, só pode ser ampliada num contexto de convívio e escuta respeitosa.

A exigência de isolamento em função da pandemia poderia ter auxiliado uma maior coesão e solidariedade social, até existiu em alguns grupos e pessoas, porém o isolamento radical de muitos grupos em torno da autorreferência e do reforço de posições grupais aumentou.

Percebem a realidade apenas por um angulo de visão, mundos fechados, mais isolamento e consequentemente mais injustiça, além da social, aquela existencial que isola grupos e pessoas, que repetem discursos e narrativas apenas para justificar formas sutis de poder, é a chamada psicopolítica (nome dado por Byung Chul Han), incapazes de abrir a visão.

É preciso quase um milagre, talvez a flexibilização da pandemia ajude, mas por hora o que se vê são grupos estremados em busca de consolidação do poder, ou sua tomada.

A passagem bíblica que impressionava até mesmo fariseus, era aquela que Jesus curava cegos e surdos, uma metáfora clara para que os grupos aferrados a sua visão (política e religiosa) pudessem entender através da metáfora a necessidade de abrir os ouvidos.

Diz a passagem de Marcos (Mc 7: 31-34): “Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão. Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele. Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!”.

Mais que ouvir é preciso escutar, mas que ver é preciso ampliar o campo de visão.

 

O pensamento complexo e o humanismo

02 set

Edgar Morin, Heidegger, Sloterdijk, e mais prematuramente Nietszche e Schopenhauer perceberam a crise daquilo que chamamos de humanismo e que se distanciava do homem.

Alguns aproximaram mais de uma perspectiva ontológica como Heidegger e Sloterdijk como crítico do humanismo de Heidegger, outros como aproximação e crítica do Niilismo como Nietszche, e Schopenhauer num propósito mais humano, são famosas suas frases: a solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais e quanto mais elevado é o espírito mais ele sofre.

Todos estes pensamentos merecem serem analisados na crise civilizatória que já entramos, ela não está mais a espreita, já penetrou, a nosso ver é no pensamento de Edgar Morin que é possível encontrar uma saída mais sólida para esta crise, embora estejamos caminhando no sentido oposto.

Segundo Morin o núcleo do humanismo que precisamos revitalizar é aquele descrito em seu Método II: «Não se trata de recusar o humanismo. É necessário, como veremos, hominizar o humanismo, e portanto enriquecê-lo, baseando-o na realidade do Homo complex» (Met. ll, p, 398).

Complexo, porque o humano não pode ser descrito numa lógica linear, e não se pode isolar em áreas delimitadas pelo saber (complexus: tecer junto), o todo é o homem, e isto é sua complexidade.

Isto surge desde a antiguidade com a emergência da problemática que será chamada subjetividade, Karl Popper chama atenção para o iluminismo pré-socrático, a visão naturalista da filosofia deste tempo teria submergido o homem na teia das leis do mundo material não configurando com precisão a noção de Ser, colocada em aspectos subjetivista (do sujeito) ou objetivistas (da  physis).

Morin promove uma revisão dos conceitos e métodos, tanto n´O Paradigma Perdido, e principalmente n´O Método, as recentes evoluções das ciências biológicas, da cibernética e das chamadas culturas do homem, passam por revisões, destacando os conceitos de “autonomia”, de “amor”, de “indivíduo” e consequentemente de subjetivo, e de “uberdade”.

Tecido na matriz judaico-grego-cristã da nossa cultura, atravessando a história do pensamento e do quotidiano ocidentais, o humanismo assume orientações não exatamente coincidentes como o homem, e que a nosso ver, deram uma visão idealista a princípios mais universais do humano.

Para Morin duas revisões são necessárias no humanismo que se entrelaçam e completam:

— O esboço do homo complex;

—-A hominização do humanismo.

Há uma frase de autor anônimo (não é de Einstein) que circula na internet: “não se pode chegar a resultados diferentes a partir dos mesmos pensamentos”.

 

Morin, E. O Método, vols. I, II e III, Europa-América, Lisboa. Edições francesas: Seuil, Paris, 1977, 1980 e 1986.

 

A lei e a justiça

27 ago

Os sistemas humanos estão em crise porque se na retórica, há novas formas de sofismas, o populismo é um complexo de sofismas, e eles sempre apareceram nas crises da polis, a nossa justiça que vem do Império romano, com fortes cores idealistas e positivistas, não conseguem permanecer numa linha de coerência, há sempre dupla interpretação conforme o réu.

Isto se deve além do populismo na conjuntura atual, de um modo mais amplo, na falta de uma visada ética como propõe Paul Ricoeur, nem o sistema deontológico que se arroga de isento de qualquer aspecto metáfisico, nem o te

Esta visada proposta por Ricoeur, conforme já explicado não se restringe ao campo da liberdade pessoal, porque pela própria exigência de universalidade deve ter um “efeito de coerção”, isto é aplicada por uma força da lei, mas também não se limita a ética “institucional”, já que deve existir um conjunto de ações “estimadas boas”, por exemplo, cada pessoa tem uma dignidade intrínseca, a morte e a violência não são recursos justos para coerção, podendo haver casos limítrofes, etc.

Mas uma ação estimada boa, difícil em tempos de polarização é aquela que vem de uma regra de ouro, não faça ao outro aquilo que não gostaria que fosse feito com você, deve haver sempre a possibilidade de discussão do contraditório sempre, mesmo nas ações “estimadas boas” e deve haver uma prevalência do comunitário sobre o individual, sem que haja constrangimento nem excesso de “força de coerção”, culturas diferentes interpretam de modo diferente o que é bom

O ponto limitante e discriminatório inaceitável, além do sofisma que desde a antiguidade tem o recurso da retórica e a força da persuasão, porém a demagogia e a mentira pública, por exemplo, aquela que omite os casos de apropriação do patrimônio público como um caso claro de negação do bem-comum.

A governança sobre bens e recursos naturais que são patrimônios nacionais ou até mesmo planetários, não apenas a natureza, mas também museus, bibliotecas, prédios históricos sejam eles de quais culturas forem, não podem ser vistos como aceitáveis.

Este legalismo deontológico (que se justificariam pelos fins), também está presente na narrativa bíblica cristão, os fariseus e mestres da Lei indagavam Jesus sobre os costumes de lavar as mãos, de seguir a “tradição dos antigos”, como na passagem do evangelista Marcos (7,5-7):

“Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” e o Mestre respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”.

Pois ninguém pode amar a Deus que não vê se não ama o Outro (próximo) que vê (1 João 4:20).

 

O debate atual sobre a justiça

26 ago

Herdeiro de John Rawls, Michael Sandel faz sucesso, vale para ele o que diz para muitos outros que fazem sucesso: “Quem faz sucesso tende a achar que é graças a si mesmo”, certamente se não fosse professor de Harvard, não daria conferências assistidas por milhares de pessoas, e não poderia falar de polarização sem uma definição mais clara de seu próprio posicionamento.

O seu livro A tirania do mérito (Editora Civilização Brasileira, lançado setembro de 2020), chamou a atenção de setores progressistas, porém há uma crítica velada a estes próprios setores, para ele acusados “de abraçar, como resposta aos desafios da globalização, uma cultura do mérito que levou a um legítimo ressentimento das classes trabalhadoras, de desastrosas consequências que se puseram de manifesto, inclusive, na gestão desta pandemia” (Jornal El país, setembro de 2020).

Tem o mérito (fazendo um paradoxo) de dizer o que é óbvio, que sem uma política de cotas e de quebras de barreiras das desigualdades (inclusive a cultural, que ele aponta) não há possibilidade de mobilidade das camadas desfavorecidas, porém a linha de pensamento de Sandel tem raízes nas leituras de John Rawls, e sua obra “O liberalismo e os limites da Justiça” (Gulbenkian, 2005) é prova disto, e ambos foram colegas em Harvard.

No início dos anos 1980, o próprio Rawls citava a crítica comunitarista de Sandel como “a mais contundente dentre todas” e embora colocasse em xeque a “deontologia com rosto humano” (vejam no post anterior as raízes deste pensamento), era um pensamento inerente à teoria rawlsiana de um “liberalismo deontológico” combinado com um “empirismo razoável”, os termos podem ser encontrados na obra de Sandel.

A fim de obter uma “política liberal sem constrangimento metafísico”, Sandel interpelava o colega Rawls, em última instância, a abandonar a argumentação deontológica de um “eu desimpedido (unencumbered self), “incapaz de autorrespeito” e de “autoconhecimento, em qualquer sentido moralmente sério”, veja que há um objetivismo dentro daquilo que Hegel chama de eticidade.

O próprio Rawls já havia sido levado a reformular seu liberalismo político, partindo do contexto do pluralismo razoável e afastando-se de uma teoria moral abrangente de justiça.

As conferências de Sandel fazem sucesso nos EUA e agora também no exterior, e também no caso dele não é outra coisa senão o fruto da meritocracia (de Harvard neste caso), porém suas obras devem ser lidas com atenção.

SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. Em port.: O Liberalismo e os Limites da Justiça. Trad. C.P. Amaral. Lisboa: Gulbenkian, 2005.

 

A visada ética de Paul Ricoeur

25 ago

Em seu texto de 1990, Paul Ricoeur já elaborou o que chamava de uma pequena ética, simplificada em três teses:

  • a prioridade da ética sobre a moral, isto é, a prioridade da vida da vida boa (vem do conceito grego de bondade), com e para os outros, em instituições justas, sobre a norma moral;
  • A necessidade, no entanto, que a visada ética (aqui opõe-se a eticidade Hegel/kantiana) pelo crivo da norma moral: essa passagem da ética à moral, com seus imperativos e suas interdições, é por assim dizer exigida pela própria ética, na medida em que o desejo da vida boa encontra a violência sob todas as suas formas; e,
  • a legitimidade de um recurso da normal moral à visada ética, quando a norma conduz a conflitos e para os quais não há outra saída a não ser a de uma sabedoria prática, à criação de decisões novas frente a casos difíceis, como no direito, na vida cotidiana e na medicina.

Ricoeur esclarece que nem na etimologia das palavras, nem na história do uso dos termos, não há uma distinção clara entre moral e ética, porém há um nuance o termo ética “para a visada de uma vida realizada sob o signo das ações estimadas boas”, e o termo moral “para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo tempo por uma exigência de universalidade e por um efeito de coerção” (Ricoeur, 1991a, p. 256).

Neste sentido deve ser entendida sua “visada ética”, nem se restringe ao campo da liberdade pessoal, já que admite “exigência de universalidade e por um efeito de coerção” nem se limita a ética institucional já que ela deve estar “sob o signo das ações estimadas boas”.

Pode-se assim distinguir mais claramente na sua visada ética, a distinção entre duas heranças, a aristotélica “a ética caracterizada pela sua perspectiva teleológica (de telos, que significa fins), e a herança kantiana deontológica (“a moral é definida pelo caráter de obrigação da norma e, portanto, por um ponto de vista deontológico (deo de “dever”).

Assim sua análise ao invés de excluir uma ou outra tese da ética moderna, faz um complemento tanto da obra a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática de Kant, mas sem a necessidade de ser fiel à ortodoxia a nenhuma das duas, não é uma saída evasiva, mas sim inclusiva.

RICOEUR, Paul. Éthique et morale, Lectures 1: Autour du politique. Paris, Seuil, 1991, p. 256-269.

 

A variante Delta ainda preocupa

23 ago

Os casos da variante Delta e da nova variante Alfa, que veio do Reino Unido ainda preocupam, é necessário monitoramento, controle de movimentação, e no caso do Brasil o estado do Ceará que tem 43 casos dá um exemplo, tendo criado um centro de monitoramento e triagem para viajantes, o Ceará tem 43 casos da Delta e já há um caso da variante Alfa vinda do Reino Unido.

Os casos do Ceará são 24 mulheres e 19 homens, a maioria (33) são entre 20 e 39 anos, o que faz sentido pois são as idades que a segunda dose ainda está acontecendo, há casos vindo de Nova Friburgo (RJ) e São Paulo, e os outros são residentes em 20 municípios diferentes do Ceará, todos tiveram sintomas leves, moderados ou assintomáticos.

É um momento de cautela e a flexibilização de muitos governos estaduais pode ser prematuras, a curva de mortes e infecções está num patamar estável, e com a vacinação a expectativa era que fosse de queda.

Conforme informou o consórcio de veículos de imprensa, o número de pessoas que receberam a primeira dose é de 122 milhões enquanto 54 milhões tomaram as doses necessárias (uma vacina usa só uma dose), eram os dados do último sábado (21/08).

Como a segurança para a variável delta é necessária a imunização completa, o número exato de 54.890.099 pessoas (24,92%), o que dá um quarto da população é muito baixo para as novas variantes Delta e Alfa (que já começam avançar no país), a possibilidade de chegar a 60% de imunes é ainda distante, setembro será um mês fatal, e o patamar de infecções e mortes é ainda alto e estável.

Alguns estados estão um pouco acima Mato Grosso do Sul (40,59%), São Paulo (32,40%), Rio Grande do Sul (31.62%) e Espírito Santo (28,33%), os demais estão próximos ou abaixo da média de 25% de imunização completa, segundo o consórcio dos órgãos de imprensa.

Os dados recentes indicam que o Sudeste puxa a curva de infecção para cima em 7%.

Devemos aprender com os países do sudeste asiático vem as infecções crescerem devido a baixa taxa de vacinação, mesmo países como China, Japão e Coreia do Sul estão vendo surtos crescentes, conforme informa o site da CNN, dados de O Globo indicam os dados de alguns países da região, em azul as infecções e em preto o número de mortes (figura).

 

A policrise e palavras duras

20 ago

Já falamos da crise do pensamento, o excesso de especialíssimos que perdem a visão do todo, a prisão idealista, que nasceu num idealismo pré-socrático apontou Popper, e um vazio da capacidade de renovar o pensamento.

A proposta de Morin reformar o pensamento, é abrir as gavetas do pensamento e articulá-las num modelo complexo (do latim complexus, o que é tecido junto) fora da “especialidade” e do conceitualismo.

O que antes parecia um alerta agora já se faz presente em diversos discursos além dos ecologistas: o planeta dá sinais de esgotamento, temperaturas extremas, mesmo em locais onde pareciam impossível: frio no hemisfério sul e calor intenso no hemisfério norte, também a vida animal vai perecendo, a notícia atual é a quase extinção do pinguim imperador, que eram grandes colônias.

O núcleo planetário também se manifesta, o número de vulcões e terremotos cresce, o Haiti pede socorro após um novo terremoto e um furacão que enfraqueceu ainda mais aquele país pobre.

A volta do Taliban ao poder no Afeganistão, os militares em Myanmar e outros neototalitarismos, tudo isto parecem palavras duras e pessimistas, claro sempre temos esperança, não é a primeira crise da humanidade, mas talvez esta seja a mais global e a mais geral de todas e poderá se tornar uma crise civilizatória, em meio a uma pandemia que persiste, e é neonegacionismo dizer que passou, as novas variantes são ameaçadoras, e a própria OMS e muitos cientistas fazem o alerta.

Talvez um plano pouco perceptível é o da religiosidade, além do desrespeito a diversas crenças, há internamente uma crise que podemos chamar de uma “ascese desespiritualizada”, usando uma palavra de Peter Sloterdijk, que aqui traduzimos por sua raiz, ascese “sem” admitir o espírito.

Diz uma passagem bíblica em que Jesus está questionando seus discípulos que achavam que sua palavra era dura demais (Jo 6,61-63):

“Sabendo que seus discípulos estavam murmurando por causa disso mesmo, Jesus perguntou: “Isto vos escandaliza? E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes? O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem”.

Está falando para seus discípulos e para os que creem, e se não tem espiritualidade não tem fé.