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Arquivo para fevereiro 27th, 2025

O mal e seu sentido ontológico

27 fev

Toda análise que se faz no mundo contemporâneo é permeada (quando não é o próprio) por um sentido maniqueísta: a luta do bem contra o mal, e isto depende da narrativa particular.

O maniqueísmo apresenta que o bem e o mal como uma questão básica para compreensão do universo, assim são forças contrárias como ação e reação, ou atração e repulsão, dá para enumerar um grande número de livros contemporâneos que descrevem a realidade assim.

Aqui nos interessa dois pontos essenciais: o sentido religioso e o sentido político, no mundo religioso cresce o discurso de que “somos do bem contra o mal”, porém uma boa leitura da patrística (os religiosos do início da era cristã) ajuda a compreender que não é bem assim.

Agostinho de Hipona (354-430), que por nove anos foi maniqueísta, via no maniqueísmo a luta entre a alma e o corpo e assim justificava a luta entre o bem e o mal, mas revê esta posição sob uma forte influência de Ambrósio de Milão (340-397) que vai exercer forte influência em Agostinho, uma de suas frases era: “As lágrimas não pedem perdão, mas o alcançam” e alcança o Bom.

Assim Agostinho começa a dar ao mal um sentido ontológico, entendendo que corpo e alma se relacionam, digo assim: “Não tinha, no entanto, ideia clara e nítida da causa do mal. No entanto, qualquer que ela fosse, o procurá-la não poderia obrigar-me a ter por mutável um Deus imutável, se não quisesse tornar-me eu mesmo aquilo que eu procurava. Por isso, na minha busca tranquila, eu estava certo quanto à falsidade da doutrina daqueles de quem me havia afastado por convicção.  Via, realmente, que estudavam o problema da origem do mal, estando eles próprios imersos na malícia, a ponto de preferirem imaginar tua substância sujeita ao mal, a se reconhecerem capazes de cometê-lo” (Agostinho, 2014, p. 172) em resumo, mal é ausência do Bem e do Bom.

Também é necessário, para uma análise aprofundada ler: “A natureza do bem”,  “O Livre-arbítrio” para entender o problema da liberdade humana que pode negar-se a fazer o bem e o livre-arbítrio que é esta liberdade de escolha, porém Confissões é sua principal obra.

Agostinho desejava romper o dualismo e vai desenvolver em Confissões (pags. 174-175) a ideia que o mal não é uma substância, porque, se fosse uma substância, seria um bem. E, na verdade seria uma substância incorruptível e, por isso, sem dúvida um grande bem, e assim o que era corruptível estando sujeito a deterioração não tem existência eterna, assim que troca o seu maniqueísmo pelo cristianismo.

Visto sob a ótica das narrativas modernas que procuram negar a existência do incorruptível e assim, admitir a existência de Deus ou ao menos algo incorruptível que dá substância ao cosmos, dito por Byung-Chul Han assim para a narrativa moderna: “Vivemos hoje num tempo pós-narrativo.  Não a narração [Erzählung], mas a contagem [Zählung] determina a nossa vida.  A narrativa é a capacidade do espírito de superar a contingência do corpo” (Sociedade Paliativa: a dor hoje, 2021, Vozes).

Para justificar todo desamor precisamos de uma narrativa, se escapamos dela fazemos o bem.

 

Agostinho. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2014.