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Língua, linguagem e cultura originária
Na obra de Heidegger: Hölderlin e a essência da poesia, vista em Heidegger (1992) fala da essência da poesia como um tipo de linguagem primordial, uma fala originária que precede e possibilita a linguagem comum, a comunicação, isto remete a uma fusão de horizontes inédita em língua e linguagem, classicamente define língua como: “é um conjunto organizado de elementos (sons e gestos) que possibilitam a comunicação de determinada nação ou cultura”, enquanto linguagem abarcaria um conjunto mais amplo que inclui a capacidade dos seres humanos de desenvolver e compreender a língua, como se fosse possível dissocia-la de contextos, culturas e formas de comunicação ligada a cultura.
A linguagem comum na qual se comunica determinada cultura originária, guarda formas próprias de um código linguístico que é necessário a cada linguagem originária e se desenvolva de modo criativo de forma a preservá-la, diz-se desta fala (ou palavra) que é aquela que nomeia os deuses, e o faz para responder a um apelo cultural.
Se no passado as narrativas incluíam mitos, símbolos e ganchos poéticos para dar conexão a narrativa, hoje não é diferente, há sempre na fala alguma crença e alguma fantasia, sem a qual a linguagem poética seria mero exercício de retórica, e não o é, e este apelo a fantasia, a imaginação e ao transcendente é parte do humano e do divino.
Desejar que toda fala seja pragmática e objetiva é reduzi-la ao contexto da pura lógica formal, também o exercício científico muitas vezes precisa de algum exercício no além, no imaginário para encontrar respostar que não estão ali apenas como uma equação lógica.
Não é puro devaneio, crenças e imaginários sempre fizeram parte da história do humano, é um justo desejo de ir além, de buscar voos mais altos e de imaginar como possível algo além do enfadonho e pesado dia a dia, ainda que ele possa conter alegrias e sabores, o limiar de abertura a diversas culturas originárias não pode estar apenas ligado ao realismo objetivo e simplório.
Na foto acima uma igreja sincrética construída em Kazan, iniciada em 1992 portanto no pós soviético, capital do Tartaristão (república russa, mas de cultura totalmente diferente) onde mesmo com o predomínio do islamismo seguido pela igreja ortodoxa, é ao mesmo tempo um símbolo de resistência ao complexo linguístico russo e capaz de construir uma obra de tão grande significado onde diversas religiões podem se expressar, uma obra eclética do arquiteto Ildar Khanov.
HEIDEGGER, M. Arte y poesía. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1992
Verdade e linguagem
É possível falar de verdade? ou para fazer uma pergunta mais contemporânea é possível negar a verdade sem cair no relativismo? Só a verdade lógica aquela que vem de Parmênides “o ser é e o não ser não é”, se expressou até muito recentemente como verdade única, porém ela é o fundamento do positivismo e da lógica dualista, a ideia da consideração da historicidade e a circularidade hermenêutica coloca sujeito e objeto no âmbito de uma relação com a linguagem.
Neste âmbito da linguagem da linguagem, a verdade é ressignificada, deixando de ser concebida como única, como descrição fiel, e passando a ser vista como uma redescrição parcial, criativa porém limitada das coisas, como uma interpretação possível em determinado contexto e determinação situação cultural, para isso é preciso compreender a linguagem como algo anterior à linguagem do cotidiano, aquilo que Heidegger chamou a atenção à poética de Hölderlin como a essência da poesia como um tipo de linguagem primordial, uma fala originária que precede e possibilidade a linguagem comum, a comunicação.
De que forma então é possível falar da verdade? Só é possível falar da verdade levando em consideração a historicidade e a circularidade hermenêutica de sujeito e objeto, que estão no âmbito da linguagem. Assim a verdade é ressignificada, deixando de ser concebida como única, como descrição fiel, passando a ser vista como uma redescrição parcial, criativa e limitada das coisas, como uma interpretação entre outras possíveis. Uma possibilidade de se falar em verdade é a partir da linguagem. Mas para isso é preciso recorrer a uma compreensão de linguagem que seja anterior à linguagem do cotidiano, da comunicação. Em Hölderlin e a essência da poesia, Heidegger (1992, p. 125-148) fala da essência da poesia como um tipo de linguagem primordial, uma fala originária que precede e possibilita a linguagem comum, a comunicação;
Sendo a linguagem a mediação da nossa relação com o ser, ela é a que estabelece esta relação, de forma mais clara aquilo que está dito em Heidegger: “aonde o homem assume a exigência de adentar a essência de alguma coisa? O homem só pode assumir essa exigência a partir de onde ele a recebe. Ela a recebe no apelo da linguagem … é a linguagem que, primeiro e em última instância, nos acena a essência de alguma coisa” (HEIDEGGER, 2002, P. 167-168).
Assim a verdade deve ser compreendida no âmbito da viragem (ou reviravolta) linguística, a redescoberta contemporânea da importância da linguagem e ela não pode estar separada da historicidade originária, aquela que remete a cultura dos povos e religiões do passado e do presente.
HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
Empatia: da água para o vinho
Esclarecidas situações patológicas, onde a empatia é apenas uma instrumentalização ou um disfarce para ações que não contemplam o Sofrimento do Outro podemos afirmar situações em que ela realmente é eficaz e pode modificar a situação praticamente como um milagre, não só no sentido extraordinário como também com alta probabilidade.
Já dissemos que fora dos condicionantes ideológicos, culturais e sociais a natureza humana destina a viver em situação coletiva tende a empatia para bom convívio social, basta observar as crianças quando ainda não estão contaminadas por ambientes agressivos ou tóxicos, para usar um termo bem atual.
Também situações sociais: ambientes de trabalho, vizinhança, pequenas comunidades há sempre uma tendência onde reina a empatia (ou o Amor num sentido hoje esquecido) a tendência maior é que a frônese (no sentido que hoje chamam de inteligência emocional) e a empatia, e isto não é novo, apenas é necessária uma atualização.
Muitos ambientes podem mudar da água para o vinho se forem totalmente enriquecidos e purificados pela empatia, há sempre uma tendência maior a solidariedade e a tolerância do que ao conflito e ao egoísmo pessoal ou de grupo, em ambientes que ela não é enriquecida por uma espiritualidade também se enfraquece e tende a não prosperar, porque há uma pressão social vinda de fora aonde o ambiente é de conflito e polarização.
O sofrimento pandêmico foi uma grande oportunidade para reconhecer o Sofrimento alheio, a dor do Outro, ou apenas a face do Outro e suas inclinações e conceitos, o que se observa contextualmente é que recrudesceram os conflitos e a oportunidade não foi devidamente agarrada, mas não invalidade esforços conjuntos em regiões e situações.
Há exemplos destes esforços em muitos locais, agora mesmo a situação de enchentes na Bahia é nova oportunidade em que muitas comunidades se uniram ao flagelo da região, doações e socorros vieram de vários locais do Brasil, embora as autoridades centrais tenham tido certa negligência.
São opções que fazemos de ações, hábitos e que se tornam um “caráter social” se mudamos da água para o vinho, é possível, como naquela passagem bíblica onde na festa ia faltar o vinho, e Jesus estando presente recebe o pedido da mãe para que intervenha e seu primeiro milagre publico acontece apenas para dar vinho e melhorar a alegria daquela festa, manda encher três toneis de 100 litros cada de vinho e então pede que levem ao mestre da festa para provar (Jo 2,7), e ele diz o vinho melhor ficou para o fim.
Assim não é o fim que estamos vivendo, mas o início de uma nova realidade, mesmo a empatia não tendo chegado após tanto sofrimento ela virá e uma nova clareira se abrirá, como aquela da passagem do paralitico pelo teto que chega até Jesus para curá-lo, antes Ele o cura dos pecados (Mc 1,5) para que tenha uma alma mais “empática”.
Empatia e espiritualidade
Conforme apontamos no post anterior frônese não é uma virtude moral, mas intelectual na teoria de Aristóteles, então a empatia pode ser conforme elaborado ali, um componente de sentimento da frônese, o melhor exemplo para explicar isto é o da acrácia (em grego akrasia, ἀκρασία), ou do sentimento e frônese de um psicopata.
Embora acrásia possa ser traduzida ao pé da letra por “não ter comando sobre si mesmo”, está descrito no discurso de Platão em Protágoras, na verdade é uma situação de psicopatia onde o mesmo tem conhecimento de determinada ação, mas não tem exatamente o mesmo sentimento de uma pessoa normal perante algum sofrimento.
O que está errado neste contra-argumento para explicar a frônese é que o desejo de aliviar a dor do outro perante algum sofrimento deve estar de alguma maneira bloqueada, no entanto não impede que o psicopata cultive algum sentimento da situação da outra pessoa e o faz de tal modo sofisticado no que define a respeito de como e porque a pessoa em questão tem tal Sofrimento, e não se trata só de atitudes morais, no caso de um psicopata o que torna seus sentimentos e ações moralmente defeituosos podem ter raízes em seus hábitos (já dissemos que isto vem dos pensamentos tornados ações), se incluirmos as pessoas que tem compaixão ou misericórdia pelo Sofrimento alheio, então pode-se explicar.
Não é, portanto, apenas uma atitude moral ou ética, embora o seja também, mas alguma virtude espiritual praticada com insistência de tornar-se um hábito que o Sofrimento do outro, o exercício desta compaixão onde a ação torna-se hábito guiado para a disposição de agir de uma maneira boa que pode ser fornecida pelas outras atitudes morais que fornecem os meios para discernir sobre o sofrimento junto com a Empatia, assim tem-se que necessariamente expandir a lista das atitudes morais fornecidas por Aristóteles.
A frônese não pode ser exercida sem virtudes morais básicas e assim não pode ser iniciada sem a empatia, pode-se admitir que um psicopata tenha até mesmo empatia, muitos são carismáticos e podem influir muitas pessoas, mas lhe faltará uma virtude moral básica que complemente a sua ação, e isto é impossível sem alguma um exercício para tornar-se hábito a atitude empática completa de sentir o Sofrimento alheio, este exercício que torna-se um hábito é chamado aqui de Espiritualidade.
Enquanto não é hábito pode ser um exercício de ascese, uma simulação ou simplesmente um disfarce que em algum momento será desvelado.
É bom ressaltar que pode haver ascese (elevação do espírito parcialmente) sem uma verdadeira espiritualidade, chamo-a usando um termo de Peter Sloterdijk de “ascese desespiritualizada”, ou seja, sem uma raiz profunda que leve ao conhecimento amplo do que é a dor do Outro, se quisermos dar um nome uma frônese empatizada.
A espiritualidade é, portanto, um exercício que leva a uma ascese, porém o que é ascese não depende só da crença de cada um, mas aquilo que durante a vida torna-se hábito e caráter, quem não o tem pode praticá-lo por alguns dias, ou até mesmo alguns anos, mas sem raiz profunda logo a abandonará, como emagrecer, fazer dietas e outras tentativas de hábitos que nem sempre se mantém, para torna-los vida eles devem integrar o nosso caráter, a nossa personalidade.
A empatia e a frônese
Frônese (phrónesis, do grego antigo: φρόνησις), na obra Ética a Nicómaco de Aristóteles, livro IV, distingue-se tanto de teoria como da prática por constituir-se de uma virtude da sabedoria do pensamento prático, entretanto uma adaptação moderna de Hans-Georg Gadamer situa-se entre o logos e o ethos, esta relação pode-se assim aproximar o amor “teórico” de uma ação prática empática.
Assim a frônese insere-se nas ações humanas como fenômenos mediante um exame hermenêutico de opiniões, não apenas para revelar os princípios imutáveis das causas dessa ação, mas sobretudo para entender que a partir da mera opinião (a doxa) do Outro, é possível auxiliá-lo mediante a empatia a chegar ao conhecimento (episteme).
Funciona como uma verdadeira ação de atração que leve o Outro a refletir. dentro do círculo hermenêutico trata-se de permitir uma leitura dos pré-conceitos do Outro e atentar para os próprios, assim as ações que decorrem daí poderão ser mais empáticas, explicando de maneira fronética (prática): ler o que o Outro de fato quer e pensa.
Esse conhecimento leva a uma nova episteme (concepção teórica dos novos horizontes) no qual é possível pensar em uma ação conjunta ou ao menos convergente, como já dissemos anteriormente, a empatia é uma relação originariamente natural, enquanto a desempatia (é diferente da antipatia que é oposto a simpatia) é o rechaço do Outro, sim algo que se tornou naturalizado, devido a ideologias e pré-conceitos herméticos impossíveis de fazer uma releitura.
A verdadeira lei de atração é a empatia, uma vez que ela pode reforçar ações positivas, colaborativas e socialmente coletivas, enquanto a simples oposição leva a repulsão do Outro e a criação de polos de opinião (doxa) e de conhecimento (episteme) não convergentes e não humanos, não se trata de lógica simples, mas de onto-lógica, lógica do Ser.
Porque isto tornou-se tão difundido e alargado é simples, um forte sistema de pensamento não humanista se desenvolveu com objetivo de poder e enriquecimento, não apenas colonizador e xenofóbico, mas sobretudo não ontológico, impróprio do ser.
A ideia do simples rechaço pode parecer natural, entretanto ela pode levar a outro sistema de dominação polarizado e estruturalmente autoritário e assim não empático e não fronético, novamente simples teorias que na prática se mostram desastrosas.
Empatia e a Verdade
A construção do conceito de verdade pode, grosso modo, dividir em três etapas como tendo uma elaboração ou uma narrativa, excluo o período de evolução natural do homem porque considero o início da linguagem oral elaborada por oráculos/profetas/mestres um marco importante, antes o que havia era o homem natural e sua “busca”, as três etapas então são: a mítica, a oralidade mista (retórica e escrita) e a linguagem escrita a partir da imprensa de Gutenberg.
Estamos numa quarta etapa que é chamada de pós-verdade, portanto não sua superação, mas sua crise, o iluminismo combinou experiência e lógica cartesiana (a kantiana é apenas a que mostra os limites da razão pura) e agora entendemos, é uma das possibilidades apenas, a fenomenologia filosófica, última etapa após Husserl, Heidegger e Gadamer.
O círculo hermenêutico pressupõe aquilo que argumentamos nos posts desta semana, uma relação com o Outro, propõe que há sempre pré-conceitos, ou seja, há verdades que até podem ter convenções, e reconhece-los ainda que diferentes, sendo possível após estas visões uma fusão de horizontes, é importante e não secundário que Gadamer e Heidegger pressupõe a existência do texto, isto é, uma linguagem escrita a qual seja referencia para a etapa seguinte que é ouvir o Texto, na oralidade entretanto, seria ouvir o Outro.
O que chamamos então de pós-verdade é o simples fechamento em uma verdade egóica, o ego transcendental, como desenvolvido no tópico V das Meditações Cartesianas de Husserl, e que sumarizamos no post anterior, assim é impossível a fusão de horizontes, prevalece a lógica dualista e/ou a ideia da experiência para se estabelecer um fato.
Também a filosofia antiga tinha estas ideias embrionárias, Sócrates afirmou (segundo Platão): “A verdade não está com os homens, mas entre os homens” e Aristóteles afirmou que a verdade é elaborada na relação da coisa com suas causas: Causa material: de que a coisa é feita? por exemplo uma casa construída. Causa eficiente: o que fez a coisa? A construção com materiais. Causa formal: o que lhe dá a forma? A própria casa. Causa final: o que lhe deu a forma? ou a intenção inicial do construtor ou arquiteto.
A diferença entre o princípio fenomenológico de dirigir-se a “coisa” e Aristóteles é que sua lógica é dual: só existe A ou não A, e de A para B é preciso passar por C intermediário, na fusão de origem é possível um T (a teoria do terceiro incluído e a física quântica também admitem isto) que não é A e nem não A, e pode-se ir diretamente de A para B.
A cosmovisão cristã estabelece como verdade a existência de uma realidade sobrenatural, acima dos dogmas e mistérios da ciência (eles mesmo descobertos são verdades provisórias) e há um critério ontológico para a verdade, uma pessoa, que é o Deus-terreno sua manifestação (epifania), o homem-Deus: Jesus.
João Batista, o último e o maior dos profetas, não há profetas hoje a menos de uma revelação direta do próprio Deus (assim todos os profetas atuais são falsos) e João Batista quando questionado em seu tempo afirmou (Lc 3,16): “Por isso, João declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo” ” e esta é a verdade na cosmovisão cristã.
Empatia vista pela filosofia
Discípula de Edmund Husserl, foi Edith Stein quem trabalhou mais profundamente o tema da empatia, entretanto o mestre tratou do tema em suas famosas Conferências de Paris ou Meditações Cartesianas no qual passa por revisão o método cartesiano, pode-se dizer que parte desta revisão é a descoberta da empatia, ou da relação como o Outro.
Como em toda filosofia deve haver uma questão fundamental a ser investigada e neste caso é a pergunta: “como de pode esclarecer isto, se permanece intocável o princípio de que tudo o que é para mim só na vida intencional pode adquirir sentido e confirmação intencional?”, é na solução desta questão que aparece o tema empatia, dito desta forma:
“Carecemos aqui de uma autêntica explicitação fenomenológica da operatividade transcendental da intropatia e, para tal, porquanto ela esteja em questão, de pôr-fora-de-validade abstrativo dos outros e de todos os estratos de sentido do meu mundo circundante que para mim crescem a partir da validade da experiência dos outros” (HUSSERL, 2013, p. 33).
Intencionalidade é uma categoria fundamental do método fenomenológico, é muito ampla por ser uma característica da consciência, significa o aspecto de ser consciência de alguma coisa.
O termo intropatia é uma primeira incursão fora do ego, significa introjetar um sentido ou sentimento que o outro possa gostar, neste sentido rompe com o sentido do ego transcendental cartesiano, validando a experiência do outro, assim dito por Husserl:
“Precisamente por isso se separa no domínio do ego transcendental, isto é, no seu domínio de consciência, juntamente o seu ser egológico especificamente provada, a minha peculiaridade concreta, como aquela a partir da qual, a partir das motivações do meu ego, capto o meu análogo na intropatia” (Husserl, 2013, p. 34).
Assim pode-se dizer que este termo ainda está entre as vivências intersubjetivas, ou seja, a valorização das vivências e relações subjetivas dos sujeitos em vida social ou comunitária, mas a empatia é um passo além, neste sentido é importante compreender o epoché fenomenológico, que coloca os nossos sentidos, nossos conhecimentos “entre parênteses”:
“Se eu, o eu que medita, me vejo reduzido pela epoché ao meu ego absoluto e ao que aí se constitui, não me tornei então no solus ipse, e não será assim toda esta filosofia de autorreflexão um solipsismo puro, se bem que fenomenológico-transcendental?” (Husserl, 2013, p. 34) então não é um solipsismo cartesiano e sim um refletir com a intencionalidade.
Como isto se clarifica, pois, permanece “inapreensível que tudo o que é para mim só possa obter sentido e comprovação na minha vida intencional?” (Husserl, 2013, p. 35) aqui esclarece o filósofo é necessária uma compreensão fenomenológica da empatia e penetrar na vivência do Outro, fora do seu âmbito egóico.
Assim essa superação da subjetividade transcendental alargada em intersubjetividade ela só “é co-experimentada em mim mesmo, portanto indiciada, num sentido secundário, no modo de uma peculiar apercepção de semelhança, comprovando-se aí de um modo consensual” (Husserl, 2013, idem) e é curioso que ali Husserl fala de “espelhamento do alter ego” (idem) muito antes da descoberta do neurônio-espelho (ver post anterior).
A ligação de Stein com Husserl na tradição fenomenologia é enorme, tendo sido inclusive sua assistente, ao apresentar sua tese com o tema: “O problema da Empatia” dá a entender que esta era uma lacuna na abordagem fenomenológica, escreveu Stein:
“No seu curso sobre a natureza e o espírito, Husserl havia falado de que um mundo objetivo exterior só podia ser experimentado intersubjetivamente, isto é, por uma pluralidade de indivíduos cognoscentes, que estejam situados em uma posição de intercâmbios cognoscitivo. … esta peculiar experiência, Husserl, seguindo os trabalhos de Theodor Lipps, chamava de “empatia” (Einfühlung); sem embargo, não tinha precisado em que consistia” (STEIN, 2017, p. 360, trad. livre).
O trabalho de Stein foi enorme, ela extrapolou com discussões sobre cultura, estética, arte, religião, psicologia e até mesmo ética para desenvolver seus estudos e seu trabalho ainda não é suficientemente lido, o fato de ser judia, depois ter se tornado freira e depois ser declarada Santa pela igreja católica, por preconceito, pode explicar algumas das razões de sua pouca leitura.
STEIN, E. Zum Problem der Einfühlung. Dissertation zur Erlanugng der Doktorowürde. Breslau: Bruchdruckercides Waisenhaauses, 2017.
HUSSERL, E. Meditações Cartesianas e Conferências de Paris. Ed. por Stephan Strasser, trad. Pedro M. S. Alves, Rio de Janeiro: Forense, 2013.
Novos caminhos e novo Natal
O homem passou por muitas etapas históricas, cada uma com seu drama e como sua mística, como aquela que se revela no monumento neolítico Stonehenge (foto).
Os tempos de pandemia nos fizeram nos recolher mais tanto na proximidade de familiares quanto na vida interior (que o pensamento ocidental chama de subjetividade), porém para onde caminhamos, que tipo de Natal será o deste ano, as festas do final de ano já sabemos pela nova onda pandêmica será reduzida.
De qualquer forma comemoramos uma passagem, seja para os cristãos a espera da parusia (as duas primeiras semanas) seja daqui até o Natal a intervenção de Deus na história através do nascimento do menino-Deus em Belém, o que aos poucos vai sendo apagado da festa e substituída por consumismo, neve e outros ritos alheios ao fato histórico.
Sim histórico, porque Maria e José vão a Belém justamente para um recenseamento, isto é, para serem contados entre os homens e registrados eles deviam ir a cidade Natal de José e por um capricho e cuidado divino nasce Jesus e já é recenseado entre os homens, isto não é portanto simbólico, mas dado histórico registrado.
O que esperar deste Natal, o clima de “festa” está reduzido, ainda estamos envoltos com a pandemia, há um clima de apreensão e já um certo desânimo, para alguns envolve em ansiedade e algum tipo de angústia, nada melhor do que acreditar num tempo novo, diz o ditado popular: depois da tempestade vem a bonança, ela virá.
Talvez não como esperamos, por exemplo, uma enorme euforia ou uma explosão de alegria, mas a sensação de que devemos reconstruir a vida com luta e por trás dos escombros, o tempo natalício em sua raiz é isto, algo divino interveio na história humana para mudá-la para sempre, é certo querem apagar o Natal e com ele a esperança de um mundo novo, no entanto justamente pelo sofrimento que passamos, não sabemos quanto tempo pode durar e até onde poderá ir, é prenuncio de um tempo novo, uma bonança.
João Batista, que era primo de Jesus, batizava as pessoas com água (Batista por causa disto), e o povo pensava ser ele o Messias, mas explicava que o tipo de batismo que faria Jesus seria muito mais forte: “Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro, mas a palha ele a queimará na foto que não se apaga” diz o evangelista Lucas (Lc 3,16-18) e João “anunciava de muitos outros modos” a Boa Nova.
Podemos esperar isso para um futuro breve, certamente que sim, há também em nosso tempo esta expectativa, de muitas formas, e certamente será algo imprevisível.
História, a grande clareira e parusia
O Natal está próximo e o nascimento de Jesus é um fato histórico pois o Censo ordenado pelo imperador de Roma César Augusto, quanto a data há controvérsias por seriam entre 4-5 a.C., quando Quinino era Governador da Síria como está descrito na Bíblia (Lc 2,2), porém é certo que o censo foi realizado e este foi justamente o motivo de Maria e José terem ido a Belém, onde a profecia dizia que de lá nasceria o salvador, e assim ele “foi contado entre os homens”.
Há controvérsias de datas e da precisão das datas (não dos fatos), uma vez que o calendário foi modificado.
A história também está pontuada de intervenções divinas, na decadência de Roma nascem os mosteiros, onde a cultura da culinária, os primeiros grêmios e ofícios e também uma fase anterior da escrita impressa é realizada, através dos copistas, as primeiras escolas e mais tarde as primeiras universidades, com forte influência teológica como não poderia ser de outro modo, mas tudo isto é história, também no renascimento a arte e a cultura tiveram forte influência teológica.
Entramos na modernidade, a obra que fizemos leituras pontuais nos posts desta semana “todos no mesmo barco” de Sloterdijk, menciona um fato importante, além e citar a obra clássica do Decamerão de Boccaccio como “pequena comunidade em meio ao desastre da grande” (Sloterdijk, 1999, p. 75), faz uma análise da peste negra (que aconteceu nos anos 1300) e que devastou a Europa com mais de 100 milhões de pessoas mortas (figura) quando a população era muito menor que hoje, e sua influência política e psicológica pode ser analisada.
Em nota de rodapé cita a obra de Henrik Siewierki (traduzida pela Estação Liberdade em 2001) “Uma missa para a cidade de Arras” onde analisa as consequências tanto psicológicas quanto políticas da peste, também o psicólogo Franz Renggli, em seu livro Autodestruição por abandono, desenvolveu a hipótese da influencia na modernidade da peste, e também da degradação da relação mãe-filho que teriam provocado uma espécie de fraqueza imunológica, coletiva e psicossomática que favoreceu o vírus daquela peste.
Toda esta análise é interessante em meio do retorno da Pandemia a Europa, ao mesmo tempo que é sem dúvida um flagelo, pode ele alimentar uma nova clareira sobre a nossa coimunidade, ou seja, a ideia de uma defesa mútua e solidária em vista de uma catástrofe ainda maior do que a que já encontramos.
Serve para “aplainar os caminhos”, como diz a leitura bíblica quando João, o filho de Zacarias e Isabel, anunciava no deserto usando as palavras do profeta Isaías: “esta é a voz daquele que grita no deserto: ´preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas’” (Lc 3,4) e parece propícia a este nosso tempo de flagelo e deserto.
É importante lembrar que as duas primeiras semanas do Natal comemoram não a vinda de Jesus em Belém, mas a Parusia, ou seja, a preparação de sua segunda vinda.
O deserto sem vida interior
Viver só na exterioridade, projetado sobre o mundo levou a um tipo de angústia especial, a angústia é um aspecto da filosofia, aquela que se liga ao conceito do vazio, um certo tipo de filosofia e algumas formas do conceito “Deus está morto”, sim porque existem outro, um deles é os homens tentam em vão mata-Lo como se fosse possível, como se fosse possível negar alguma intencionalidade na criação do universo, sim ele pode ser multiverso, mas também para ele deve haver uma intencionalidade.
O movimento filosófico que deu voz ao sentimento de “alienação e desespero”, veio justamente do “reconhecimento do homem de sua solidão fundamental em um universo indiferente”, as frases destacadas são de Anthony Downs, um economista político americano, falecido em outubro deste ano.
A razão pela qual devemos conhecer a origem e o desenvolvimento de certos conceitos que parecem apenas palha e sem substância (porque não são observados a fundo), é que eles passam a dominar grande parte da vida contemporânea, é o caso do idealismo que dominou quase todos os ismos de nosso tempo, incluindo socialismo e certo tipo de cristianismo (na foto a obra de Albert György).
Os ismos de nosso tempo não são senão a racionalização de alguma forma de idealismo presente na cultura ocidental de Descartes, passando por Kant até Hegel, a sua rejeição partido do existencialismo de Kierkegaard que insistiu na irredutibilidade da dimensão subjetiva e pessoal da vida humana, o existencialismo tomou diversas formas, porém é o retorno a questão do Ser e a ontologia que considero parte essencial de redescobrir o fio de ouro do espírito humano, ou da dimensão pessoal e subjetiva como foi pensada por Kierkegaard, parte de uma pergunta essencial que é “porque existe tudo e não o nada”, e o nada é claro é o vazio.
Porém Kierkegaard trabalhou também a questão da angústia, que pode ser associada ao vazio ou ao sentimento moderno de uma forma de alienação, seu conceito é outro, é a vertigem da liberdade, preconizada pelo homem moderno, é através dela que o homem sente repulsa e atração, pode-se tudo, mas nem tudo é conveniente.
Em “O conceito de angústia”, Kierkegaard escreve: “” uma determinação do espírito sonhador (…) é a realidade da liberdade como puro possível” (KIERKEGAARD, 1968, p. 45).
Soren Kierkegaard nasceu na Dinamarca em 1813 teve uma vida sofrida com problemas pessoais e familiares, em um espaço de vinte anos viu a morte de dois irmãos e três irmãs e depois a mãe, a decepção amorosa com a noiva Regina Olsen culmina na sua própria vida aquilo que expressou na filosofia.
O conceito de angústia tornou-se central no desenvolvimento da filosofia existencialista, ele está presente em Heidegger, Jaspers e Sartre, mas não ficou de lado em filosofias anteriores como a fenomenologia de Husserl e antes na psicologia social de Franz-Brentano.
É Heidegger que torna a questão da angústia como um problema da vida cotidiana, escreve: “O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia. Isso é testemunhado, de modo indubitável embora “apenas” indireto, pelo ser para-a-morte já caracterizado, no momento em que a angústia se faz temor covarde e, superando, denuncia a covardia da angústia. (HEIDEGGER, 1998, P. 50).
Por isso para Heidegger a angústia é um determinante existencial e ela se manifesta na cotidianidade do estar-no-mundo, no dizer de Hanna Arendt é uma “condição humana”.
A questão volta a tona pela forma patológica que tomou na Pandemia, justamente a privação da liberdade, vejam que o conceito de Kierkegaard faz sentido.
Heidegger, M. A origem da obra de arte. In: CAMINHOS de Floresta (Holzwege). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.
Kierkegaard, Soren. O conceito de Angústia. Lisboa: Hemus editora, 1968.