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O abandono na literatura
O assunto parece escondido na literatura, mas não é, comecei a ler a trilogia Abandon da autora Meg Cabot porque havia referencia aos mitos de Hades e Perséfone.
Mas o clima de excessivo suspense, a meu ver é claro, me fez desinteressado pelo livro e ao contrário de muitos outros que retomo e entendo o objetivo da autora, neste não o fiz.
Para quem não conhece a mitologia Perséfone é filha de Zeus com Demeter, era uma deusa preocupada em colher flores, e aos poucos quando foi crescendo encantou o deus Hades, senhor dos mortos que pediu a filha em casamento, mas Demeter não queria que se casassem.
Eles acabam se casando, mas Demeter pede a Zeus que a traga de volta no fim de uma complicada trama, Perséfone acaba ficando um período com Hades, que é o inverno no Olimpo, e um período com Demeter, que é a primavera no reino dos deuses gregos.
Enfim, a trilogia não me parece no início nada disto, apenas era um toque “cult”.
Outro livro mais realista me chamou a atenção, descubro a autora italiana Elena Ferrante, que escreve desde janeiro no The Guardian, sobre assunto de família, infância, gênero e envelhecimento.
Enquanto esperava uma amiga, numa livraria de Lisboa, comecei a folhear o livro “Dias de Abandono” de Elena Ferrante, que conta a história (não sei se é verdadeira) de Olga que é abandonada por Mário e se vê presa a um cotidiano estilhaçado com dois filhos, um cachorro e nenhum emprego, mas vai lutar contra o sentimento de ser uma pobre mulher abandonada.
Não fui até o fim, claro nem daria tempo e não comprei o livro para resistir a tentação de desviar de minhas leituras obrigatório que neste momento são muitas e a pilha é enorme, vi rapidamente na internet que 90% das pessoas que leram gostaram.
O seu livro “A amiga genial” está indo para as TVs, em Portugal haverá uma série.
Ver e crer: sentir o real
Ao contrário do que pensa o senso comum, o virtual não se opõe ao real, mas aponta-lhe um caminho, tecnologias digitais já em desenvolvimento como realidade aumentada, realidade virtual e hologramas são virtuais não no sentido de irrealidade, mas de potencialidades.
O que se poderá resultar delas ainda depende de alguns avanços tecnológicas, mas o desenvolvimento destes artefatos, como para criar hologramas 3D testado na Universidade de Brigham Young (ver nosso post) publicado na revista Nature de janeiro, ainda dependerão de avanços tecnológicos para chegar ao mercado num futuro próximo, esta é sua virtualidade.
Numa sociedade da informação, a leitura ocupa um papel central, não por acaso está ligado ao artefato impresso, a chamada Galáxia de Gutenberg, no entanto pode-se imaginar que a cultura oral tenha pouco a ver com esta, ou apenas se componha com ela, mas isto não é um fato.
A cultura oral, o ver está ligado ao ouvir, pode parecer curioso ou estranho que nesta cultura é essencial o escutar, e o falar significa certa autoridade, foram assim com os oráculos, profetas e mestres em culturas afros, deve-se ter o dom de contar neles os mitos ocupam lugar de destaque, é por isso que desenvolvemos aqui: vendo não veem, e ouvindo não escutam.
Poderia ser o contrário, se pensamos na fotografia, na TV e no Cinema, mas a chamada “sociedade do espetáculo”, que Guy Debord definiu o espetáculo como o conjunto das relações sociais mediadas pelas imagens, mas estas são apenas artefatos modernos, pois as pinturas rupestres seriam então o que ?
A linha de análise que embora tenha críticas, parece mais coerente é a de Paul Virilio, que a moderna sociedade caminha com “velocidade” para as novas mídias, e a dança e o teatro seriam as verdadeiras resistências a esta velocidade,
Mas Virilio rende-se ao afirma que inovações tecnológicas transformam, modificam, alteram o espaço geográfico em todas as escalas (local, nacional e global), não diz isto, no entanto, é preciso humaniza-las, e este processo será cada vez mais coletivo, é inerente a estas mídias.
Um exemplo de cultura oral está na passagem famosa de Tomé, que interpretada na cultura da informação dizem é ver para crer, está errado, é sentir para crer, releia-se a passagem de João 20,25=27:
“Os outros discípulos contaram-lhe depois: “Vimos o Senhor!” Mas Tomé disse-lhes: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” … e Jesus disse: põe o dedo aqui e olha minhas mão.”
Jesus apareceu e pediu que ele tocasse também em outras passagens Jesus aparece e só quando fala, e reparte o pão é “visto”, o homem moderno precisa tocar e sentir.
Vendo não veem
Ouvir já escrevemos aqui, é o fato de possuir o aparelho auditivo, escutar é coisa para quem processa mentalmente. aquilo que ouviu, não é possível fazê-lo sem alguma atenção e algum saber, ao menos da linguagem na qual está ouvindo.
Imaginava em Portugal, que em toda a península Ibérica, já havia visto na Espanha, há alguma cultura ligada a visão, algo parecido a tradição oral, mais ainda mais primitivo, sim pois as pinturas rupestres são anteriores a escrita e provavelmente originárias da cultura oral.
Descubro perguntando sobre a importância cultural da Cidade Caldas da Rainha, relativamente próxima a Lisboa, a figura de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), inventor do Zé-Povinho, foi também jornalista da gravura, folhetinista do lápis, cronista gráfico, ceramista falido, cartunista antes do tempo. republicano, com algo anticlerical, uma de suas pioneiras caricaturas satíricas se pode ter convulsionado seu país no final do século XIX, ainda monarquista, mas já com ideias republicanas fortes.
As suas cerâmicas que não vingaram em seu tempo, hoje são obras de arte difundidas no mundo interior, no Brasil já vimos aqueles vasos em forma de pinheiro, xícaras (chávenas em Portugal) e outras louças (loiças na terrinha), feitas em formato de frutos e decoradas, feitas muito mais ao gosto do “zé povinho” que as louças reais da aristocracia portuguesa.
Assim como a escuta exige um treino, o olhar exige um duplo treino, pois o artista quer dar ao público algo além do convencional e por isto faz esta ou aquela nuance em seus artefatos,
Talvez a própria expressão de Zé Povinho, usada também no Brasil devemos a ele, também lá como cá esta expressão pode denotar um sentido pejorativo.
O fato da visão no sentido artístico, tanto pode recorrer a figuras míticas, cavalos alados e unicórnios, mula sem cabeça e saci Pererê em lendas populares e outras imagens podem em algum sentido serem místicas no sentido até mesmo de antevisão da realidade, muitos artistas estiveram avante de seu tempo.
Um visionário de nosso tempo não pode recusar as mídias e redes sociais, sendo redundante, é falta de visão.
Por uma filosofia do Design
Vilém Flusser foi um tcheco naturalizado brasileiro, falecido em 1991, que atuou por cerca de 20 anos como professor de filosofia, jornalista, conferencista e escritor no Brasil e depois de volta no seu país de nascimento a Republica Tcheca.
Seus livros estão sendo republicados no Brasil, incluindo todos os seus escritos, e comecei relendo O mundo Codificado – por uma filosofia do Design.
Sua obra vai além das influências que recebeu de Roland Barthes, Marshall McLuhan, pois sua filosofia é própria com elementos de fenomenologia e existencialismo.
Na introdução do livro, feita por Rafael Cardoso, é destacada sua mudança de pensamento sobre as modernas mídias que apenas viu nascer: “ao contrário da maioria dos filósofos modernos, que costumam concentrar suas análises na linguagem verbal ou nos códigos matemáticos, Flusser dedicou boa parcela de seu gigantesco poder de reflexão às imagens e aos artefatos, elaborando as bases de uma legítima filosofia do design e da comunicação.” (FLUSSER, 2017, p. 10)
Lançou perguntas profundas sobre o mundo virtual: “Se uma árvore cai no espaço virtual, e não há ninguém on-line, será que ela gera uma mensagem de aviso?” retomando a famosa questão da árvore que cai na floresta, e também “Qual a diferença entre o material e o imaterial? Podemos trocar coisas por não coisas?” (idem) e conclui com uma pergunta ainda mais fundamental: “Que destino devemos reservar para os detritos gerados por nossa frenética atividade de transformação da natureza em cultura?” (FLUSSER, 2017, p. 15)
Aproxima-se do paradigma da informação, base essencial para o conhecimento e a educação, “o fim da história parecer ser o fim de nossa capacidade coletiva de lutar contra a entropia, contra a desagregação do sentido e da forma. Se a base daquilo que entendemos por cultura reside na ação de in + formar, então não é paradoxal que o excesso de informação nos conduza à desagregação do sentido ? “ (idem)
A importância do “conceito de virtualidade talvez seja a melhor e mais elegante prova do quanto Flusser tinha razão.” (idem), e não se pode mais fugir a esta questão, o uso em diversas formas de informação, comunicação e das artes exige a abertura desta “caixa preta”, nome de um ensaio publicado no ano de 1985.
Flusser ao contrário de apocalípticos, admite que “ao menos em tese”, o que deveria transformar-se em bem estar, ““humano torna-se escravo das forças de uma outra “natureza” que ajudou a gerar artificialmente”.
Aspectos da virtualidade e de um mundo codificado são desenvolvidos de maneira única pelo autor e contribuem para um debate mais sereno sobre as novas mídias.
FLUSSER, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design. São Paulo: Ubu editora, 2017.
Antropologia e ontologia
Esta é uma relação escondida em muitos textos do pensamento contemporâneo, ora nos debruçamos sobre a história deste Ser-no-mundo (já usamos outra tradução como pre-sença), ora mergulhamos no lado “oculto” do Ser.
Algumas leituras de Paul Ricoeur são importantes para aclarar esta questão, a leitura por exemplo de Tempo e Narrativa, encontramos a passagem: contudo, reconhece uma dimensão antropológica das categorias ontológico-existenciais de Ser e Tempo. Segundo afirma, a análise de Heidegger precisa “ter uma certa consistência no plano de uma antropologia filosófica para exercer a função de abertura ontológica que lhe é assinalada.” (Ricoeur, 1994, p. 97).
Claro o aspecto essencial da Obra de Heidegger é a questão do Ser, para ele esquecida pela metafísica tradicional pelo fato da ontologia ter-se convertido em uma ontologia da substância, aquela que vê tudo como a primazia da “coisa”.
Mas sua obra não está deslocada ou esquecida da dimensão antropológica, esta consistência é construída conforme explica Ricoeur, por sua analítica existencial “está antes de toda psicologia, antropologia e, sobretudo, biologia.” (Heidegger, 1995, p. 81)1.
Mas não se trata de uma abertura de um a priori ao modo idealista, não é uma simples “construção apriorístíca” (Heidegger, 1995, p. 87), isto é, desvinculada de qualquer “empiria” ou aspecto prático, que a desvinculada de sua objetividade.
Assim com um método correto, toda a pesquisa científica e a pesquisa ontológica podem até convergir, esta última tendendo sempre para uma maior “purificação” e transparência do que se descobriu onticamente, fazendo aquilo que Husserl chamou de “retornar a coisa em si” que não é senão abandonar a especulação e entrar no aspecto da relação com o conhecimento, que é dar ao mundo caráter inteligível.
A investigação que segue uma “fixação dos setores dos objetos”, e só o faz a partir da abertura originária ao modo de ser dos entes pela qual a experiência sensória do mundo é responsável, mas nenhuma pesquisa responsável deixará de apresentar questões que são “subjetivas” dos dados empíricos, por isso inseparável deles.
Se o questionamento científico aborda uma determinada região dos entes, ele entra numa região seja além do horizonte da experiência original: o horizonte da relação fundamental do ente investigado e com o mundo questionado de sua relação.
No plano antropológico isto é essencial, coletar dados de uma cultura, sem penetrar no “ser” dela é fazer uma abstração objetual, desconhecer aspectos subjetivos dela.
Heidegger, M. Ser e Tempo (parte I). Petrópolis: Vozes, 1995.
Ricoeur, P. Tempo e Narrativa (tomo I). São Paulo: Papirus, 1994.
A retomada ontológica
Heidegger faz ver em sua obra que uma questão jamais tocada (ao menos em profundidade) na filosofia é o “sentido do ser”, e isto deveu-se ao fato que na metafísica tradicional toda ontologia tornou-se uma ontologia da substância, então o pensamento de Tomás de Aquino é importante, pois separou-se ser de essência.
A primazia da “coisa”, que fizemos uma relação com ser-do-ente, é a forma como a “coisa” tornou-se representada para tudo o que “é”, mas rejeitando sua ontologia, não rejeita-se apenas a coisa abstrata, mas do ponto de vista existencial, a questão do ser é eminentemente concreta, porque “o ser é sempre o ser de um ente”.
Mas quais são as questões para a modernidade impostas ao Ser? as determinações essenciais do ser dos entes?
É uma maneira que deve situar-se aquém do plano empírico ou ôntico (dos entes) e constituir-se na condição de possibilidade do mesmo, e estas estruturas ontológicas explicitadas na análise do dasein (como ocupação, disposição, compreensão, discurso) não devem ser confundidas com aqueles que seriam os seus correlatos ônticos ou empíricos (afeto, desejo, conhecimento, linguagem).
É uma questão de precedência, pois estão não são nem irreais nem correlatos, pois toda analítica existencial “está antes de toda psicologia, antropologia e, sobretudo, biologia.” (Heidegger, 1995, p. 81)
Em Heidegger no ser do homem há uma presença -, uma dimensão ontológica fundamental. Na verdade, no texto de Heidegger, o status da pre-sença é ambíguo.
Preferiu-se a tradução do dasein como esta pre-sença, para que não seja entendida como sinônimo de “homem” (o ser-aí tem esta ambiguidade), na determinação ontológica, o que corresponde ao ser desse ente é sua presença e esta é a questão.
Sua relação pode parecer paradoxal, como pensam muitos autores, na relação do ser com o ente, mas não o é, pode-se viver divinamente esta pre-sença, não o nihil.
Uma passagem bíblica quase inexplorada por estudiosos do texto sagrado, é quando se aproximando a Páscoa de Jesus, ele se diz angustiado e também se vê diante de um “vazio”, em João em 27-29 está escrito assim:
“Agora sinto-me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora?’ Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. 28Pai, glorifica o teu nome!” Então, veio uma voz do céu: “Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!”, A multidão, que aí estava e ouviu, dizia que tinha sido um trovão. Outros afirmavam: “Foi um anjo que falou com ele”.”
Como para os apóstolos, para os gregos antigos e para muitos filósofos, este aproximar-se de um fim mais que uma angústia, tem um dilema: o que é a vida? Uma resposta sã é a Páscoa e a resposta insana é o nada (nihil).
-O termo “dasein”, comumente vertido para o português como “ser-aí”, foi traduzido por Márcia de Sá Cavalcante pela expressão “presença”.
Heidegger, M. Ser e Tempo (parte I). Petrópolis: Vozes, 1995.
O ser, as coisas e os gadgets
Este nome para os dispositivos digitais apareceu muito antes da internet e da explosão digital, está no livro de Marshall McLuhan da década de 60: Understanding Media.
Muitos lembram dele apenas pelas frases: “a aldeia global” e “o meio é a mensagem”, mas poucos conhecem sua abordagem do mundo digital, e menos ainda se conhece sobre a profunda influência que teve no seu pensamento a Noosfera de Teilhard Chardin.
Algumas das ideias principais de McLuhan consistiu em antever de forma de um mundo mais consciente e até “mesmo em um mundo hiperconectado, onde todos têm a capacidade de regular sua própria experiência”, leitura diferente dos apocalípticos.
As ideias que muitos aprendem bem, mas continuam esquecendo-as são os avanços e as possibilidades de um mundo cada vez mais uma “aldeia” e que os problemas antes velados, como o próprio ser estava velado, agora estão expostas pelas “mídias”.
Nós só precisamos optar por excluir estes avanços, se estamos escondendo de alguma forma em nossas mentes, nossa consciência do ser, de cada coisa que existe além dos rótulos e dispositivos que usem, isto não é para internet, mas para carros, roupas de grifes, enfim, uma série de objetos de consumo que parecem qualificar o ser, e porque há tanto vazio?
Foi o que tentamos responder nos posts anteriores, acadêmicos demais talvez, porém sem revisitar o pensamento humano podemos ficar na superficialidade das “coisas”.
Para fugir de um discurso difícil sobre o ser, mas é preciso reconhece-lo como “ser-do-ente” leio uma página de Presente do mar (Gift from the sea), Anne Morrow Lindbergh que escreve:
“A vida hoje na América baseia-se na premissa de círculos de contato e comunicação cada vez maiores. Envolve não apenas as demandas familiares, mas as demandas da comunidade, as demandas nacionais, as demandas internacionais sobre o bom cidadão, através de pressões sociais e culturais, através de jornais, revistas, programas de rádio, analistas políticos, apelos ´caridosos´ e assim por diante. Minha mente está com isto … Não traz graça; Destrói a alma “.
Mas ela não estava falando da Internet, a Makron Books lançou um livro comemorativo de 50 anos do livro, o livro é de 1975, portanto isto já era uma realidade anterior da internet, assim como o nome gadget foi usado por McLuhan na década de 60.
Este é uma realidade do Ser, já observada no início do século passado, o mundo digital é um componente a mais na complexidade do homem contemporâneo
Ser do-ente
Quase sempre que simplificamos corremos o risco de estar vulgarizando um conceito complexo como o Ser, na modernidade este conceito está confinado na filosofia e é ser de uso pouco comum no dia a dia, de argumentar e explicar o problema mais profundo de nosso tempo: o ser do-ente, ou um ser projetado para fora de sua existência, ou seu esvaziamento, é, pois diferente da reificação (res – coisa) a pura coisificação.
Grosso modo o Ser não tem forma, em sua origem está o pensamento antigo do filósofo pré-socrático Parmênides o qual confundia a esfera da essência da coisa com a essência una, homogênea e contínua da mesma, significa em resumo para ele: o Ser é e o não-Ser não é, não pode haver terceira opção, e, ao mesmo tempo algo não pode ser A e não-A simultaneamente.
Esta lógica simples parece pura evidência, mas ela se desenvolveu até a modernidade, onde se perguntou porque existe tudo e não o nada, a própria definição de nada, do zero e do infinito, enquanto definições lógica datam do início da modernidade, até mesmo o zero grau absoluto, onde um corpo estaria completamente parado, o zero grau absoluto, é concepção moderna.
Na filosofia é o aparecimento do nihil, do nada mesmo, ao qual parece estar confinada boa parte da humanidade a procura de um sentido para a vida, ou o próprio desprezo por ela.
Simplificando de novo, no pensamento contemporâneo o ente é o que tem forma, enquanto Ser não tem forma, é apenas a sua existência no vazio ou na finitude da vida, pois ente é tudo que existe inclusive em abstrato, por exemplo, o número tem forma (podia até se dizer que é a forma por excelência) enquanto algo que não tem forma pode ser quantificado mas não deveria, a alma (talvez o Ser por excelência, admitindo-se sua existência ao menos enquanto “pensamento”).
São Tomás de Aquino em sua tese sobre o “Ente e a essência”, usava o termo “quididade” para indicar a essência das coisas, dito de forma mais simples, o que a coisa é.
Assim o ser não tem forma, é uma abstração, um pensamento ou como definimos um “noon” um pensamento espiritual, enquanto o ente é a forma, sua visão objetiva, concreta ao gosto atual.
Quando afirmamos objetivo, objetividade, prática (não no sentido mais amplo de experiência fenomênica) estamos falando do ente, de algo que os sentidos percebem, ao gosto do apropriar.
Na filosofia pré-socrática Parménides, confunde-se o ser com a esfera da essência esfera; se por um lado não pode-se dizer que é humano e inumano sobre o ser, pode-se dizer que é líquido, liquefeito ou em estado de liquefação na esfera do ente, não podendo ter dois estados, ainda que oscile entre os dois, pode-se dizer na esfera do ser algo é virtualmente, não sendo ainda o ser enquanto ato, o é em potência, uma semente é uma árvore, mas ainda não é.
Exigimos em nossa contemporaneidade a permanência do ser no ente, por isto dizemos ser-do-ente, enquanto o Ser-do-Ser pode não ser, de modo concreto quando admitimos a presença do Outro, somos nós e não o somos para o Ser-com-outro.
O ser-do-ente, ao mesmo tempo em que separado das coisas quer seja pelo aspecto financeiro ou por estranhamento, está projetado sobre elas como reificação, não sabe como gerenciá-las no uso cotidiano, as críticas ao uso de mídias hoje em dia, o uso de alguns dispositivos, se usados apenas segundo sua finalidade não é um ser-do-ente, mas um ente-do-ser, feito para uso humano, confundi-lo como ser, atribuir-lhe categorias morais, é ser-do-ente.
A separação entre verdade e realidade
A ideia na modernidade que uma verdade objetiva é diferente da realidade, por isto vai negar o realismo tomista e retomar a subjetividade nominalista, agora travestida em ideia, é uma ruptura com o ser.
Para os antigos gregos, verdade e realidade eram uma coisa só, então Martin Heidegger no ser e o tempo retoma este sentido, pelo estudo da etimologia da palavra onde a-letheia, distinta do conceito de “verdade” onde esta é um estado descritivo objetivo, onde a-letheia, significa “desvelamento” na tradução de Heidegger, pois lethe significa esquecimento, no sentido de ocultamento.
Filosofias a parte, o que isto significa é que confiamos demais na realidade objetiva enquanto critério de verdade, e quase sempre ela contém um véu da aparência, e é preciso dar-lhe sentido a partir do Ser.
A verdade, portanto, para Heidegger está no desocultamento, onde as aparências se enganam e o que é mesmo verdade se oculta em meio a palavras típicas do nominalismo, onde um bom conceito pode tentar explicar algo, mas não é a essência deste algo, é apenas sua aparência.
O que Descartes falava de suspensão do juízo sobre as coisas significa enquanto ser suspender também o seu próprio princípio egóico que só é possível na relação com o outro, suspendeu-se o juízo mas não o ego, pois não é a presença do outro que conta, mas o conceito, o nome e sua definição.
Outra palavra usada pelos gregos e importante neste contexto é a palavra phronésis, que é ao mesmo tempo harmonia e felicidade, tão forte a ponto de muitos autores afirmarem que é impossível ter phronésis em aletéia.
Por outro lado phronésis é .um conceito quase esquecido, devido a sua subjetividade, pois é menos próprio da razão, e estamos mais comprometidos com a veritas do direito romano, a verdade dos “fatos”, que nada mais é que uma narrativa, nem sempre contextual e verdadeira.
“A essência da verdade se desvelou como liberdade. Esta é o deixar-ser ek-sistente que desvela o ente. Todo comportamento aberto se movimenta no deixar-ser do ente e se relaciona com este ou aquele ente particular. A liberdade já colocou previamente o comportamento em harmonia com o ente em sua totalidade…” (HEIDEGGER. Conferências e escritos filosóficos. In Col. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1991. p. 130)
Para os modernos, verdades são fatos, para os antigos são aletéia e phronésis, é próximo ao que hoje pode-se chamar objetivo (de objetividade) e meta (de subjetividade), porém são conceitos mais completos porque estão unidos e não podem ser vistos como peças encaixadas.
Verdade é o desoculto, para Heidegger, aquilo que se mostra, atinge-se pela aletéia (o desabrigar o oculto) com phronésis (harmonia).
A alma interior e a verdade
Santo Agostinho põe a verdade na Alma do Homem: Noli foras ire, in teipsum redi:
in interiore homine habitat veritas, esta é a primeira aproximação de sua verdade ontológica, embora o estudo do ser já estivesse presente em Platão e Aristóteles, a verdade era para eles mais “logo” do que “ontos”, uma vez que o Ser e ele devia “ter” a verdade.
Isto terá uma enorme relevância para o pensamento humano, pois significa que há algo no interior do homem que deve ser “desvelado”.
Em Santo Agostinho esta tensão significou que o homem fica apenas nas coisas exteriores, e então esvazia-se de si mesmo, então começou um tipo de ascese aonde o homem se recolhe a sua intimidade, quando penetra precisamente naquilo que é o homem interior, e esta tensão irá culminar no final da Idade Média numa separação entre o Ser e o objeto, na verdade, justamente esta separação projetou o homem no “objetivo”.
Dirá Agostinho em sua ascese, “em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirigi-te à fonte da própria luz da razão”. (Santo Agostinho, A verdadeira religião 39, 72)
É claro que o cogito agostiniano não é o cartesiano, que estava distante no tempo e também na concepção, mas ele preparou este caminho, o homem desejoso do controle dos objetos e da natureza, o homem que construiu seu castelo interior, vê-se no início da modernidade projetado sobre os objetos.
Para Kant a “concordância do conhecimento com o objeto” significa “a concordância do entendimento com o objeto que é apreendido por ele, a saber, o fenômeno”. Com isso, a definição kantiana é eficaz, se compreendida no sentido da fórmula “adaequatio rei et intellectus” de Tomás de Aquino, sendo que, “[n]esse sentido, a teoria de Kant da verdade transcendental que implica a veracidade do conhecimento transcendental no final das contas é uma ontologia, a teoria do ser dos seres, ou do domínio objectual, [ou seja] dos objetos”.
Ainda que o pensamento de Tomás de Aquino, em sua tese de doutorado sobre o “Ente e a essência” as coisas ainda estejam “adequadas” a razão, em Kant e na modernidade elas ficarão “fora” e a ontologia se reduzirá a uma onto-teo-logia, ou seja, apenas religiosa.