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A força moral e a bélica
Aqueles que promovem o ódio e a intolerância, mesmo que além valores, apenas o veem como dependentes da capacidade humana, Mahatma Ghandi que venceu a dominação inglesa sem usar a força bélica e dizia: “A força não provém da capacidade física”.
Inspirou muitos pacifistas na década de 60, inclusive aqueles que eram contra a guerra do Vietnã, que não deixava de ser também uma guerra de invasores, no caso, americanos.
Os analistas militares estranham a capacidade de resistência da Ucrânia em meio a uma desvantagem enorme de poderio bélico com a Rússia, embora no jargão militar exista a ideia da “moral da tropa” ela está associada apenas ao campo de batalha e não a valores.
Para que exista uma força moral é preciso que ela exista também no campo espiritual, no caso de Ghandi era o hinduísmo que durante décadas inspirou e atraiu muitos no mundo ocidental, incluindo personalidades do mundo pop, como os Beatles.
Assim a degradação moral do mundo ocidental também é indiretamente responsável pela guerra e na sua lógica, que é também a lógica da OTAN somente a força bélica é vencedora e protetora de seus “valores”, porém estes estão em crise e não reconhecem.
A Ucrânia assim acabou recorrendo a seus vizinhos e a ameaça que eles também temem de invasão russa, que esconde um interesse expansionista, fêz surgir um terceiro bloco para ajudar a Ucrânia a defender seu território: Polônia, Lituânia, Estônia, Suécia, Finlândia e Canadá, países antes vistos como “pacifistas”.
Este bloco quebrou uma tradição de não uso de armas para auxiliar a defesa da Ucrânia, completa este bloco o Reino Unido, que é bom lembrar está fora da União Europeia, pelo Brexit, o que os atraia além do medo de serem os próximos alvos da Rússia é a defesa de valores além daqueles bélicos, que em última instância também defende a OTAN.
É verdade que oscilam entre o uso de armas e o pacifismo, porém percebem que não há como impedir os desejos expansionistas de Putin, cuja narrativa histórica começa a partir da formação da União Soviética, sem existir história pregressa, dos povos originários.
A lógica do ódio, seja o lado que esteja é em última análise a guerra, a do amor é a paz.
As três tentações e os três flagelos
Há uma forte ligação entre os 3 flagelos viciosos da humanidade: fome, guerra e peste, e as três grandes tentações de Cristo no deserto: alimentação (Jesus no deserto foi alimentado por anjos), poder e desprezo pelas coisas divinas que podem nos limitar moral e civilizadamente.
Ontem a conversa do presidente da França com Putin, este afirmou: “o pior ainda está por vir”, as terras da Ucrânia são férteis e são grandes produtoras de alimentos e a Rússia de fertilizantes.
Iniciamos na quarta-feira a Quaresma e talvez a grande provação do homem, dizem as leituras bíblicas sobre as tentações de Cristo no deserto (Lc 4,1-13) (veja o quadro do russo Ivan Kramskoi, sec. XIX):
O diabo disse, então, a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’”
E (depois) lhe disse: e lhe disse: “Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isto foi entregue a mim e posso dá-lo a quem quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”.
Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’”.
E o desprezo pelo poder do mal e não aceitar a Deus: Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo e lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”.
Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”.
Isto deve servir em primeiro lugar para os religiosos: não se colocarem no lugar de Deus e depois para toda a humanidade evitar o mal é distribuir o pão, renunciar ao poder humano e ao domínio mantendo o respeito ao Outro e respeitar as regras sanitárias para evitar que a peste se alastre.
Não conseguimos (como humanidade) romper com nenhum destas tentações, mas há esperança.
Cinzas de uma quarta-feira
Em todo mundo cristãos celebram no início da quaresma a quarta-feira de carnaval, os 40 dias até a Páscoa, não houve carnaval e sim uma festa da carne e da morte que é a guerra no leste europeu, imploramos que o crescente envolvimento de muitos países não crie uma 3ª. guerra mundial.
Diversas cidades ucraninas foram arrasadas e tomadas por forças militares russas, ao norte as já declaradas repúblicas populares da região de Donbass (do rio Don) Luhansk e Donesk, e agora ao sul Mariupol e Kherson, no Norte ainda há resistência na segunda maior cidade do país Kharkiv.
As tropas russas, o maior comboio militar desde a segunda guerra mundial chegou nas proximidades de Kiev, a noite lá terá combates extremos, uma torre de comunicação foi derrubada e um memorial do Holocausto foi atingido, mostrando que a retórica de lutar contra o neonazismo é apenas um pretexto para a guerra, a Ucrânia também foi atacada por Hitler e o memorial lembrava isto, claro há grupos neonazistas na Ucrânia como em muitos países.
No início da pandemia quando a Páscoa não podia ser celebrada em público para evitar aglomerações, afirmamos aqui que era uma Quaresma significativa, talvez esta com tantos mortos devemos pensar não mais na paixão e morte de Jesus, mas na nossa paixão e possível morte de civilização, há protestos pela paz, mas nas redes as manifestações de ódio entre “torcidas” estão espalhadas.
Também é verdadeiro que em todo mundo há manifestações de solidariedade pela paz, muita acolhida aos refugiados cujo número pode surpreender porque uma país está todo ele destruído e a Ucrânia não é uma pequena nação, é um dos maiores países da Europa, abaixo da Rússia é claro.
Podemos fazer uma pausa para pensar no nosso processo civilizatório em crise, pensar nas mães e filhos que perdem seus pais, parentes e amigos na guerra, nos jovens que não terão futuro, nos inúmeros mortos, só do lado russo são já mais de 6 mil soldados que não voltaram para casa.
Sobre as cinzas poderemos erguer uma nova civilização, sem submeter nações ao desespero e ao opóbrio, sem bárbaros processos de colonização incluindo o cultural e enfim sermos povos que vivem em paz, que resolvem conflitos numa mesa de negociação e olham para crianças e velhos com apreço.
Que a Quarta-Feira de Cinzas nos lembrem que somos pó e que a vida tem um valor sagrado.
Evitar o pesadelo nuclear
A guerra na Ucrânia vai subindo o tom e tornando-se uma ameaça para toda a humanidade, no campo de batalha os ucranianos apresentam uma resistência e um heroísmo que poucos acreditavam, as pressões sobre a Rússia no conselho de segurança da ONU e na própria assembléia da ONU aumentou (ontem diplomatas russos foram expulsos pois a sede fica em Nova York), apesar de muitas abstenções, como a India e a China, o tom é de condenação pelos princípios de soberania das nações, as sanções econômicas impostas primeiro para os milionários russos e o próprio Putin, agora para toda economia Russa já são sentidas, no campo de batalha apenas aumentou o tom, e a primeira tentativa de diálogo fracassou, foram enumeradas as questões de cada lado e uma próxima reunião.
A guerra já produziu um enorme flagelo, são mais de 5 mil soldados russos mortos em batalha e certamente o número de ucranianos deve ser maior, além neste caso de civis que pagam inocentemente pela guerra, são mais de meio milhão de refugiados e a entrada dos países europeus na guerra criam um temor maior: as armas nucleares.
Estas armas estão no exclave da Rússia em Kaliningrado, parte territorial descontinua da Rússia que fica entre a Polônia e Lituânia para onde foram levados mísseis de logo alcance com carga nuclear, mas agora todo espaço aéreo europeu está fechado para os russos, assim como a passagem do mar negro para o mediterrâneo que a Turquia fechou, este país é membro da União Europeia, que começa a se envolver militarmente no conflito e a ameaça de Putin de uso de armas nucleares é para este caso, dizem é um blefe os analistas, mas o risco existe.
Um grande comboio militar russo de mais de 30 km de caminhões transportam tropas, talvez entre eles estejam os temidos chechenos que travam a batalha campal, e os outrora inimigos de Putin agora o veem como um comandante, de origem islâmica tem agora relativa autonomia e depende da Rússia.
Em todo mundo e na própria Rússia há protestos pedindo o fim da guerra, lá são duramente reprimidos, o papel do Brasil de voto na ONU pela condenação da Rússia e de neutralidade na OEA se abstendo do voto mostra o caráter ambíguo, o papelão do presidente de ter ido visitar a Rússia dias antes da guerra foi um enorme equívoco, no mínimo.
O Brasil depende dos fertilizantes da Rússia, a Europa depende do gás e também dos grãos cuja Ucrânia é grande produtora, os reflexos na economia já são sentidos: o rublo russo caiu 30% e o dólar começa uma queda que provavelmente não vai parar, na prática além da economia: os alimentos e os combustíveis devem subir de preço verticalmente.
No campo cibernético que a Rússia é uma potência, o site Anonymous declarou sua guerra, porém a entrada de Elon Musk (dono da Tesla) na guerra deve ser vista com cautela, a segunda guerra foi um negócio para muitos empresários, até mesmo a Vokswagem alemã e Ford americana tiveram sucesso no pós guerra.
Kiev pode não cair, mas será um milagre, o socorro militar do Ocidente pode ter chegado tarde, o símbolo que existe na praça central é o Arcanjo Miguel é o anjo das batalhas, para muitos cristãs e os ucranianos são cristãos de rito próprio, mas ligada a Roma (aliás o Vaticano se propôs a intermediar o diálogo), que o chefe do exercito celeste encontre um caminho, agora obscuro para a paz, e não permita um flagelo e uma noite nuclear que afete toda humanidade (na foto o arcanjo Miguel na coluna na Praça Central de Kiev).
Avançar para uma verdadeiro pensamento
Nenhum pensamento é completo se não possui uma espiritualidade, aquilo que a modernidade chama de subjetividade porém que está separada da objetividade como é próprio do dualismo, cria duas realidades e nenhuma delas é parte do todo.
Contemplar o todo significa considerar a profundidade do nosso Ser e entender que fazemos parte de um imenso universo cheio de mistérios, e que nossa alma anseia pelo infinito e é para lá que caminha uma verdadeira espiritualidade, que não está separada da substancialidade da vida (o que é chamado na modernidade de objetividade, que é só a parte) e que sem ela não contemplamos e vivemos o todo, vivemos uma vida segmentada.
Substituí-la por uma pequena parte, pequenos vícios e prazeres, é caminhar na frivolidade, na superficialidade, nenhuma ascese verdadeira prescinde de uma espiritualidade, e não há espiritualidade sem contemplar a alma humana como parte do todo de nosso Ser, assim ultrapassar a antropotécnica e chegar uma onto-antropotécnica que olha para as coisas e também para a alma.
Muitos exercícios, do físico ao espiritual, são feitos buscando esta ascese, neste ponto Sloterdijk tem razão quase todas elas são “desespiritualizadas” porém sua explicação é incompleta porque não há em suas esferas uma escatologia, este raciocínio é feito especialmente em Esferas II, qual é o todo para o qual caminhamos, é possível ir até Ele.
Sim é possível se avançamos para águas mais profundas, buscar a completitude de nossa substancialidade superando o antropocentrismo e entendendo a Terra e o Universo como nossa casa, nossa morada, mas principalmente caminhando e lançando as redes para pensamentos e espiritualidades mais profundas, há em alto mar, ainda que revolto, aquilo que nossa alma anseia: o eterno.
Diz a passagem bíblica Lc 5,4-5, logo após Jesus ensinar as multidões e Pedro (Simão) reclamar que não haviam pescado nada, Jesus lhe responde: “quando acabou de falar, disse a Simão: “avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca”, Simão responde que trabalhou a noite inteira e não pescou nada, mas obedeceu e lançou as redes.
O resultado foi uma grande pescaria, vale aqui a substancialidade dos alimentos e também a espiritualidade de avançar “pra águas mais profundas”.
Diversas reações ao pensamento dominante
Em países que foram colônias da Europa, emergiu o termo decolonização que se diferencia de descolonização porque penetra justamente no pensamento e na epistemologia dominante (alguns autores chamarão por isto de epistemicídio) que não é a simples liberação de dominação, mas também o ressurgimento de culturas subalternas.
Assim apareceram autores na África (como Achiles Mbembe), na América Latina (Aníbal Quijano e Rendón Rojas y Morán Reyes), além de autores de cultura originária como os indígenas (Davi Kopenawa e Airton Krenak), porém é possível um diálogo com autores europeus abertos a esta perspectiva como Peter Sloterdijk (fala da Europa como Império do Centro) e Boaventura Santos (fala do epistemícidio e também alguns conceitos de decolonização), há muitos outros claro.
Deve-se destacar nestas culturas também a cultura cristã, vista por muitos autores como colaboradora do colonialismo, não se pode negar a perspectiva histórica e também de doutrina que é a libertação dos povos e uma cultura de fraternidade e solidariedade, ela é também minoritária hoje na Europa e perseguida em muitos casos.
Entre os europeus que defendem um novo humanismo, ou um humanismo de fato já que o iluminismo e as teorias materialistas não conseguiram contemplar a alma humana como um todo, e são por isto um humanismo de uma perna só, entre os europeus destaco Peter Sloterdijk e Edgar Morin, o primeiro que defende o conceito de comunidade como um “escudo protetor” capaz de salvar nossa espécie, e o segundo, um humanismo planetário, onde o homem seja cidadão do mundo e as diversidades sejam respeitadas.
Ambos consideram as propostas populistas, é bom saber que elas existem a esquerda e a direita, devem perder com a crise atual e o consumismo global depende de uma atmosfera de “frivolidade” ou de superficialidade que a humanidade será obrigada a repensar, não voltaremos aquilo que consideramos estável, os próprios escritores originários, como Davi Krenak destaca em várias entrevistas, o que queremos voltar não era bom, não havia uma felicidade e bem estar real naquilo que era considerado normal.
Como aspecto de construção do pensamento, em Sloterdijk destaco a antropotécnica, para ele a modernidade foi uma desverticalização da existência e uma desespiritualização da ascese, enquanto o conhecimento e a sabedoria proposta na antiguidade sair do empírico e do enganoso para ir em direção do eterno e do verdadeiro, como para ele não existe a religião, seria um movimento de sabedoria e conhecimento, e não apenas uma ascese de exercícios, onde a alma imortal foi trocada pelo corpo.
Já na perspectiva de Edgar Morin é o hologramático que pode dar ao homem uma visão do todo agora fragmentada pela especialização e pela particularidade de cada ramo da ciência, paradoxo do complexo sistema no qual o homem é uma parte que deve se integrar ao todo, onde “não somente a parte está no todo, mas em que o todo está inscrito na parte”, a pandemia nos ensinou isto, mas a lição ainda foi mal aprendida, em plena crise pandêmica resolveu-se que está tudo liberado e não há protocolo de proteção de todos em cada um (cada parte), e não há co-imunidade.
A linguagem e a empatia
José Saramago expressou assim sobre a opinião que as pessoas têm sobre diversos assuntos: “O problema não é que as pessoas tenham opiniões, isto é ótimo. O problema é que tenham opiniões sem saber do que falam”, em tempos de mídias sociais é muito comum repetir ilustres desconhecidos porque disseram uma frase de impacto, porém quando se coloca num contexto adequado ou se penetra no assunto em questão, pode-se ter uma opinião mais sensata.
Tudo é polêmico hoje e de certa forma quase tudo tornou-se mera opinião, a doxa dos gregos, neste contexto o problema da linguagem se extrapola e a empatia é cada vez mais rara na linguagem cotidiana, se o problema na origem da sociedade moderna na antiguidade clássica era o sofisma, tudo se argumentava apenas para agradar o poder vigente, o problema hoje é ver isto disseminado na linguagem cotidiana, o cuidado com a linguagem, o respeito ao outrem e a escuta respeitosa devem fazer parte da linguagem empática.
Não é a política central apenas que se deteriorou, ou a democracia que entrou em crise, as escolhas de líderes salvadores da pátria, a pouca discussão dos problemas de fato que atingem a população, em plena expansão pandêmica pouco se fala de medidas efetivas contra ela, só para dar um exemplo grave, todo o problema parece ser a vacinação das crianças, que é urgente sem dúvida, porém todos tem diversos casos de infecção familiar ou próxima nas vizinhanças onde mora.
Reeducar a linguagem cotidiana, reintroduzir o respeito a qualquer cidadão, de qualquer raça, cor ou religião, deveria ser um esforço comum para melhorar a empatia social.
Até mesmo na linguagem religiosa, antes extremamente respeitosa e amorosa parece evoluir uma concepção mais separatista e isolacionista onde o diferente é isolado e malvisto.
É preciso encontrar espaço, tempo e local onde as verdades primeiras possam ser ditas, onde as culturas originárias possam se manifestar e serem ouvidas.
Em muitas culturas, religiões e teorias há um nó central lá onde as verdades mais profundas estão ditas.
A passagem bíblica em que Jesus revela quem de fato é e a que veio deveria ser o ponto central de análise de sua linguagem e sua missão, foi a Nazaré cidade onde fora criado e podia ser visto como uma pessoa comum, uma atitude empática, indo a sinagoga em dia de sábado deram o livro do profeta Isaías (Is 61,1-2) e ali Ele leu: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-Nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação dos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos, enviou-me para proclamar um ano de graça da parte do Senhor”, fechou o livro e depois surpreende a todos ao dizer: “hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 1,14-21). (Na foto a assinatura do profeta Isaías, National Geographic).
Linguagem verbal, mista e mística
Linguagem verbal é aquela que encontramos somente palavras (pode ser a oralidade primária, secundária ou a escrita), enquanto a linguagem não verbal envolve gestos, signos visuais, imagens, figuras, desenhos, fotos, cores e até mesmo música, porém a comunicação pode se realizar além do gesto e então torna uma comunicação mística.
Não é específica das religiões, pessoas próximas, amantes e mesmo crianças podem se comunicar com esta perfeição sem o uso exclusivo da linguagem verbal ou escrita, ela é além da autossugestão envolve o tema que desenvolvemos mais atrás da empatia, o vigor de uma relação amorosa ou simplesmente uma abertura grande de alma.
Porém a linguagem mística para se fazer revelar para muitos e ser compreendida usa de recursos míticos, figuras de linguagens, parábolas e até mesmo a poesia, como já pensava Heidegger que considerava ela uma “outra função” da linguagem, os versos são ricos em metáforas, símbolos e estórias como a da passagem do samaritano que socorre uma pessoa que foi assaltada e agredida na estrada para explicar que o socorro ao Outro, a misericórdia com quem sofre e a ajuda é sempre uma “vontade” divina para o homem.
Porém ocorre que muitas passagens são lidas e analisadas fora do contexto ou fora do significado hermenêutico de sua realização, se no passado foram necessários vários recursos linguísticos para ler documentos místicos, entre eles a Bíblia, o Alcorão ou o livro de Vedas, não significa que eles possam ser lidos sem a hermenêutica necessária.
Também atualizá-los apenas para fazer uso política, seja qual for a tendência ideológica que o realize é uma hermenêutica suspeita porque depende de determinada concepção histórica, e sabemos que o texto sagrado, salvo sua leitura contextual, deve remeter a uma realidade divina atemporal e aespacial (embora o termo não exista), mas considerando a vida terrena de todos que a leem, é nisto que deve-se fundamentar uma boa hermenêutica.
A Bíblia não significa outra coisa senão aquilo que foi escrito a partir de uma palavra verbal, os evangelhos cristãos representam uma revisão e uma releitura dos fatos e relatos verbais dos primeiros tempos dos cristãos que se iniciou com a vida pública de Jesus, período de domínio do império romano e no qual além dele muitos outros se diziam profetas.
A linguagem mística encontra correspondência quando determinada alma está em sintonia com a “vontade divina”, no dizer cristão, atenta ao Espírito Santo e tendo uma graça especial para isto, o que é muito diferente de influenciadores comuns em nossos dias devido aos poderes midiáticos e aos apelos as nossas necessidades humanas, deve-se estar atendo ao divino, claro que isto é para aqueles que creem, embora também uma comunicação não verbal perfeita possa perfeitamente acontecer entre os que não creem, mas será desprovida de qualquer revelação divina.
Empatia e a Verdade
A construção do conceito de verdade pode, grosso modo, dividir em três etapas como tendo uma elaboração ou uma narrativa, excluo o período de evolução natural do homem porque considero o início da linguagem oral elaborada por oráculos/profetas/mestres um marco importante, antes o que havia era o homem natural e sua “busca”, as três etapas então são: a mítica, a oralidade mista (retórica e escrita) e a linguagem escrita a partir da imprensa de Gutenberg.
Estamos numa quarta etapa que é chamada de pós-verdade, portanto não sua superação, mas sua crise, o iluminismo combinou experiência e lógica cartesiana (a kantiana é apenas a que mostra os limites da razão pura) e agora entendemos, é uma das possibilidades apenas, a fenomenologia filosófica, última etapa após Husserl, Heidegger e Gadamer.
O círculo hermenêutico pressupõe aquilo que argumentamos nos posts desta semana, uma relação com o Outro, propõe que há sempre pré-conceitos, ou seja, há verdades que até podem ter convenções, e reconhece-los ainda que diferentes, sendo possível após estas visões uma fusão de horizontes, é importante e não secundário que Gadamer e Heidegger pressupõe a existência do texto, isto é, uma linguagem escrita a qual seja referencia para a etapa seguinte que é ouvir o Texto, na oralidade entretanto, seria ouvir o Outro.
O que chamamos então de pós-verdade é o simples fechamento em uma verdade egóica, o ego transcendental, como desenvolvido no tópico V das Meditações Cartesianas de Husserl, e que sumarizamos no post anterior, assim é impossível a fusão de horizontes, prevalece a lógica dualista e/ou a ideia da experiência para se estabelecer um fato.
Também a filosofia antiga tinha estas ideias embrionárias, Sócrates afirmou (segundo Platão): “A verdade não está com os homens, mas entre os homens” e Aristóteles afirmou que a verdade é elaborada na relação da coisa com suas causas: Causa material: de que a coisa é feita? por exemplo uma casa construída. Causa eficiente: o que fez a coisa? A construção com materiais. Causa formal: o que lhe dá a forma? A própria casa. Causa final: o que lhe deu a forma? ou a intenção inicial do construtor ou arquiteto.
A diferença entre o princípio fenomenológico de dirigir-se a “coisa” e Aristóteles é que sua lógica é dual: só existe A ou não A, e de A para B é preciso passar por C intermediário, na fusão de origem é possível um T (a teoria do terceiro incluído e a física quântica também admitem isto) que não é A e nem não A, e pode-se ir diretamente de A para B.
A cosmovisão cristã estabelece como verdade a existência de uma realidade sobrenatural, acima dos dogmas e mistérios da ciência (eles mesmo descobertos são verdades provisórias) e há um critério ontológico para a verdade, uma pessoa, que é o Deus-terreno sua manifestação (epifania), o homem-Deus: Jesus.
João Batista, o último e o maior dos profetas, não há profetas hoje a menos de uma revelação direta do próprio Deus (assim todos os profetas atuais são falsos) e João Batista quando questionado em seu tempo afirmou (Lc 3,16): “Por isso, João declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo” ” e esta é a verdade na cosmovisão cristã.
Desempatia ou destreino
Claro o termo não existe, criei para dizer que não é nem antipatia nem desamor, é um sentimento tão grande quanto a empatia que domina os pensamentos, a cultura e os hábitos de um determinado tempo, oposto a empatia, para desenvolver o tema tomo uma frase de Margareth Thatcher citado no filme A Dama de Ferro (direção Phyllida Lloyd, 2011).
No filme Margareth Thatcher, interpretada por Meryl Streep (Oscar merecido de melhor atriz) afirma: “Cuidado com seus pensamentos eles tornam-se palavras. Cuidado com as elas podem se tornar ações, pois elas se tornam hábitos. Cuidados com os hábitos porque eles se tornam seu caráter”, isto para entender como é possível destreinar os neurônios para que eles não sejam empáticos e tornem-se antipáticos e destrutivos, infelizmente estamos treinando o lado oposto ao nosso lado natural empático.
Assim como dissemos no post anterior é possível treinar a empatia, é possível destreiná-la (outro neologismo, algo natural que se corrompe por um hábito oposto ao instintivo) e induzir um sentimento de repulsa e ódio, mesmo que dissimulado ou velado e até mesmo disfarçado em uma forma de “amor” que corrige o outro, devemos corrigir tudo aquilo que não é ágape ou empatia, isto sim, os outros são hábitos ou cultura.
Vamos seguir o percurso proposto por Thatcher segundo o filme que pretende uma biografia (não é, isso foi a principal crítica), então as coisas começam com o pensamento, algo já deve ser corrigido de cara nas teorias e ideologias contemporâneas que dizem que tudo começaria pelo “meio”, lembre-se o discurso dos contratualistas, Thomas Hobbes do Leviatã (1651) indica que o homem é lobo o homem, ou seja é anti-empático, já John Locke (Ensaio sobre o entendimento humano, 1690) defendeu que o individuo deve renunciar ao estado da natureza e fazer um contrato (que o Estado regula) e assim defende sua liberdade, é famosa sua frase: “onde não há lei, não há liberdade” pai do liberalismo e de certa forma do empirismo (penso que nasceu embrionariamente antes com a visão de Francis Bacon).
Somente Rousseau abandonou em parte estes conceitos criando o “bom selvagem”, o homem é bom a sociedade o corrompe, é um princípio do destreino, mas também ele foi favorável ao contrato, assim faz parecer que entregar a liberdade nas mãos do Estado é condição “natural”.
Assim não apenas pelo contratualismo, mas por todo percurso histórico nosso pensamento está vinculado as suas raízes contemporâneas e é claro ao que está dentro de cada cultura, religião ou grupo ideológico, somente através da leitura pode-se desvincular do pensamento corrente, e o exercício de interiorizar leva a segunda etapa: as palavras.
As palavras assim são discursos ou como se diz atualmente narrativas, que em grande parte são permeadas na cultura contemporânea, somente os que leem não ficam vinculados ao sabor desta cultura em sua atual polarização, lembremos que o primeiro ato mental é o da imitação (a neurociência fala do neurônio-espelho), e ele pode ser destreinado, isso é, pode tanto ser levado de volta ao seu curso natural da empatia ou ao oposto que chamei de desempatia.
São a partir delas que desencadeamos nossas ações, muito já se falou da reflexão ou da vitta activa como a chamou Hannah Arendt, e foi retomada por Byung Chull Han em seu livro A sociedade do cansaço, ali defende que devemos ter também uma vida interior, reflexiva e assim podemos retornar ao nosso curso inicial da empatia (conclusão minha).
Por fim as ações transformam-se em hábitos, boa parte da linguística e semiótica começa a análise a partir daí, sim é fato que fala também da secundidade (algo que existe) e terceiridade (aquilo que é), categorias de Pierce, mas o tema é longe e requer uma maior profundidade que humildemente digo não possuir.
Chegamos do hábito ao caráter, da etimologia da palavra deriva do grego “charaktér, éros”, ou do latim “character, eris”, com o sentido de “gravado”, portanto é aquilo que vai sendo esculpido, e é possível tornar-se uma desempatia, isto é, o rompimento com o caráter original empático, no discurso corrente ausência de Subjetividade (próprio do sujeito), individualismo (não olhar o Outro) e uma série de subcategorias que são rupturas com a empatia.