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O que é de fato a guerra atual
Cada vez mais a guerra Rússia e Ucrânia se revela com os contornos de claros interesses de grandes impérios em choque: de um lado a Rússia que não aceitou a redução de seu território e influência a partir do final da segunda guerra mundial, de outro a OTAN como braço das forças capitalistas e sua influência mundial.
Na verdade, o grande império emergente é a China, e tem raízes na grande revolução cultural, uma tentativa feita por Mao Tse Tung, o primeiro líder da revolução chinesa, porém a tentativa de industrializar o país retirando gente do campo na década de 50 foi um fracasso causando a morte de fome de mais de 20 milhões de pessoas.
Os opositores liderados por Liu Shao-Chi, em 1959, afastam Mao, a família e seus aliados, que estavam isolados dentro do partido Comunista Chinês, e promovem uma reeducação da população preparando uma nova revolução industrial, desta vez atraindo capital e empresas do exterior, a mão de obra barata e a ideia que poderia ser uma abertura ao capitalismo, Hong Kong até recentemente não era controlada pela China, impulsionou este modelo.
Falando sobre o que seria a paz desejada para a Rússia, Putin declarou que seria uma “nova ordem mundial”, e nela estão envolvidas as conversas com a China e explicam as recentes manobras militares da Rússia no Oceano pacífico próximo ao Japão, as ilhas Curilhas que é disputada pelo Japão.
Foi um aceno claro para a parceria com a China, embora ela junto com o Brasil tenta formar um terceiro bloco para negociar a paz, pelo Brics estão mais próximos da Rússia, e isto inclui Índia e África do Sul que são também parte deste bloco econômico.
Do lado do ocidente, os países escandinavos: Finlândia, Suécia e Noruega realizaram manobras em conjunto com as forças da Otan, o quadro geopolítico se desenha com um quadro bélico perigoso.
Há uma fratura no bloco europeu, já que Macron diz que a França não será “vassalo” dos aliados americanos, entretanto pode também ser uma força para o terceiro bloco da “paz”.
Uma paz sem rendição e sem vencedores parece a única saída possível, difícil, porém possível.
O que significa ver
Exploramos muito em nossos posts a cegueira: filosófica (na República de Platão o mito da caverna), lógica (Parmênides, Russell, Hilbert, etc.), religiosa (Feuerbach, Hegel, etc.) e literária (O ensaio da cegueira de Saramago e a Peste de Camus), só para citar alguns, além deles navegamos sobre a linguagem em Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Levinas, Ricoeur e outros.
Agora queremos navegar pelo mundo da visão, dizia Bachelard: “todos os seres são puros porque belos”, já o poeta Alberto Caeiro “o mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos e estarmos de acordo, também o filósofo e místico russo Nicolas Berdjaev (há muitos místicos russos) dizia que no Paraíso não há ética e só há estética, tudo isto para dizer que ver é ter olhos para o belo, por isso muita coisa hoje feia é autoproclamada bela, assim a inversão não é só ética.
O feio era para Platão do ponto de vista ontológico o quase-nada, sendo o mundo sensível o que é o aparentemente real, sendo mera sombras das ideias (o mito da caverna) e o ideal (eidos) o verdadeiramente real, assim o feio é o informe e não tem existência real e não é modelo universal.
Não é pouco natural que num mundo fragmentado, a beira da sua policrise o belo quase desapareça, e assim o homem não vê, o que vê são sombras, rascunhos de ideias difusas e confusas, o modelo universal desaparece e o discurso é meramente o discurso do conflito.
O belo desponta harmonia, sugere fusão onde há divisão, confunde o caótico dando-lhe forma e mesmo o mundo da pura forma não é mais geométrico é fractal, não fracionário, e sim um fracionário natural pertencente ao todo da parte menos significativa ao corpo todo (na foto o fractal de Lorentz e o efeito borboleta).
Gostamos do ponto, reta e plano, mas isto é Geometria de Euclides, o mundo não é reto e plano.
Do ponto de vista lógico é a aproximação da teoria do caos (há lógica caótica), do ponto de vista filosófico é a visão da complexidade (o simples é quase sempre simplista), do ponto de vista religioso pode-se dizer: “Deus criou tudo e viu que era bom” (e belo), do ponto de vista literário penso que a melhor expressão foi a Friedrich Schiller (1756-1805): “Como reconstruiremos a unidade da natureza humana, que parece completamente suprimida por esta oposição originaria e radical?”(pag.71), escreveu em sua obra “Educação Estética do Homem”, a respeito da divisão no interior do homem entre o impulso formal que o arrasta na dimensão do seu tempo.
Visto como poeta é uma obra maravilhosa, como filosofia fica sujeito a crítica pela distância histórica de seu tempo e os muros da ideologia alemã de seu tempo
SCHILLER, F. “Educação Estética do Homem numa série de cartas”, trad. Roberto Schwartz e Márcio Suzuki, São Paulo: Editora Iluminuras, 1989.
Documentos vazados e retórica de tensão
Um documento vazado que conteria supostas informações secretas dos EUA sobre a guerra entre Ucrânia e Rússia pode conter parte das informações verdadeiras e algumas falsas, segundo fontes militares americanas, seria falso a avaliação do número de mortos na guerra na Ucrânia.
Já os jornais como o The New York Times avaliam que é um esforço de Moscou em provocar mais desinformação do que notícias já conhecidas como as entregas antecipadas de armas, assim como a formação de tropas e batalhões conforme as estratégias de guerra, entretanto isto já mostra que há algumas falhas na inteligência dos EUA no esforço de apoio a Ucrânia.
A porta-voz do pentágono Sabrina Singh afirmou “Estamos cientes dos relatos de postagens nas redes sociais, e o departamento está analisando o assunto”.
O departamento de justiça Americano abriu investigações sobre estas divulgações onde também aparecem informações de aliados importantes como Israel, Coreia do Sul e Emirados Árabes.
A retórica americana e de líderes ocidentais segue afirmando que a Rússia tem praticado crimes de guerra, entre eles a “deportação” de crianças ucranianas para a Rússia, condenado pelo tribunal de Haia, enquanto a retórica russa continua sendo a de insegurança em suas fronteiras.
O que os documentos revelam, porém sem dados precisos é uma provável ofensiva ucraniana no próximo mês, a entrada oficial da Finlândia na OTAN cria outra fronteira de conflito e é esperado também lá alguma resposta russa.
No aspecto da paz a proposta brasileira de ceder a Criméia que já era território russo antes da guerra em troca da retomada dos territórios ocupados na guerra atual não foi aceita pela Ucrânia.
Assim tanto Rússia como Ucrânia parecem levar a guerra nos limites do desgaste, da morte de inúmeros soldados e das consequências econômicas que começaram aparecer na economia mundial.
A China rebateu a retórica de que ela não faz o devido esforço para a paz, afirmando que o “ocidente não estão em posição para ditar o que devemos fazer”, disse o embaixador chinês na Rússia Zhang Hanhui à Izvestia.
A esperança que negociações possam avançar a partir de países fora do conflito permanece.
Paixão civilizatória: crise e clareira
Não é a primeira crise civilizatória a que passa hoje a humanidade, se ela tem raízes no pensamento que desenvolveu uma forma de polis nacional e chauvinista, os impérios são a expressão multinacional desta forma de olhar as nações, esta, porém tem um agravante: a possibilidade de uso de armas nucleares e biológicas de extinção em massa.
Porque uma paixão comparando-a com a paixão de Jesus, já traçamos durante toda semana passada a questão da inocência e os aspectos trágicos e jurídicos que ela envolve, o Brasil viveu esta semana um drama na cidade de Blumenau a morte de crianças inocentes, o aspecto mundial é aquele que a partir de concepções e visões de mundo ideológicas se promova uma crise sem limites, este é o lado passional (na foto a tragédia na cidade de Bucha, Ucrânia).
A entrada que anunciamos no início da semana, da Finlândia na OTAN cria uma grande área de fronteira da OTAN com a Rússia permitindo uma guerra por via terrestre em uma área onde é sensível e existem resquícios de intolerância histórica recente, a chamada “guerra do inverno” de 1939.
Se a Rússia fizer o que chama de “contramedida” e ela pode ser no campo militar, já que no campo econômico e de comércio não há nada que possa ser mais grave que o quadro atual entre as nações, uma retaliação militar dispara um gatilho perigoso que terá uma resposta da OTAN.
É possível uma clareira, aquela que Heidegger reivindicava em meio a floresta destas hostilidades, a clareza que não haverá vitórias unilaterais, a própria guerra com a Ucrânia não parece ter final possível este ano, a menos que haja uma rodada de negociação de paz.
A China tomaria posição ofensiva em sua retomada da ilha de Taiwan que julga parte de seu território, o Irã está cada vez mais próximo da Rússia e boa parte da América Latina tem governos mais a esquerda atualmente, enfim este complicado quadro mundial político, pode ser o motivo para abrir uma clareira em meio a floresta de ódio e hostilidades que vai se abrindo a cada passo da guerra.
Será uma grande paixão da humanidade, como todo sofrimento, este numa escala inimaginável trás um trauma e depois uma reflexão ao ver as enormes perdas que a situação envolve, será sem dúvida num possível quadro trágico jamais visto, uma nova “clareira” da consciência civilizatória.
A paz é sempre possível, é sempre possível evitar perdas de vidas inocentes se houver prevenção.
O pensamento do alto e a comunhão
Que tipo de saber é este que engloba um saber “do alto”, do além-do-humano, mas sem contradizê-lo, a resposta de Morin e de outros como Martin Buber, Emannuel Lévinas e Paul Ricoeur parecem conduzir a um mesmo ponto, ir em direção ao Outro sem reservas.
Duas falsificações místicas são possíveis nesta direção, uma que nega a consciência e o respeito ao Outro, aqueles que apelam para uma falsa religiosidade cristã, a Bíblia é clara: “Se alguém declarar: “Eu amo a Deus!”, porém odiar a seu irmão, é mentiroso” (1 João, 4:20-21), mas há os que clamam pelo extremo oposto da materialidade da fé, a estes a resposta bíblica também é clara: “Não só de pão o homem viverá” (Mateus 4,4), curiosamente se opõe e não dialogam.
Curioso porque a visão da ceia derradeira de Jesus com seus discípulos, o seu grande memorial e seu presença eternizada em sua materialidade (carne e sangue), é causa de muita controvérsia e divergência, tanto é verdade que ele fracionou o pão, como é verdade que declarou sua divindade.
Pensar as coisas do alto assim não pode deixar de ter sua concretude, sua materialidade, vejam que o pão não é o trigo, mas o trigo transformado por mãos humanas em pão, assim como o vinho.
Não deixa de ter o aspecto mais sagrado e divino ao pedir aos discípulos que façam isto em sua memória e em seu nome, assim ele é renovado e divinizado pelas mãos humanas que o repetem.
Como entender a comunhão sem a presença do Outro, sem a dialógica com o contrário, sem este paradoxo de entender que mesmo havendo oposição é possível novos horizontes como preconiza o círculo hermenêutico, que pede que antes sejam deixados “entre parêntesis” os pré-conceitos.
Temos uma visão de verdade, de lógica e de racionalidade, porém a verdadeira comunhão só é possível com um passo além, a crença que algo divino também pertence ao Outro, ao diferente e ao oposto a minha visão de mundo, não há comunhão sem isto, há apenas tolerância.
Sempre me perguntei porque guerras, fome, miséria, injustiças entre os homens, minha resposta hoje é que não há verdadeira comunhão entre homens, talvez alguma pequena tolerância, algum respeito que esconde verdadeiros interesses, talvez um respeito até humano porém não divino.
Bem vindo a policrise
Isto foi escrito o artigo de Adam Tooze, professor de história da Universidade de Yale (EUA) escrito no Financial Times em 2022 que chamou bastantes a atenção: pandemias, secas, inundações, mega tempestades, incêndios florestais, guerra na Ucrânia e preço elevado de combustíveis e alimentos, como é próprio da revista e do mundo atual o aspecto econômico se sobressai.
Mas a policrise de Edgar Morin via mais a fundo, o autor reconhece a origem do termo, mas desconhece o que de fato é o pensamento de Edgar Morin e de muitos outros filósofos que apontam para a raiz mais fundamental destes males: o nosso modo de pensar e a visão de mundo que criamos a partir dele e implantamos em nossas sociedades.
O termo citado por Morin foi dito a primeira vez em 1990, porém em entrevista ao Le Monde em 20 de abril 2020 o educador francês atualizou a palavra: “A crise da saúde desencadeou uma engrenagem de crises que se concatenaram. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, passando pela economia, do individual ao planetário, passando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um minúsculo vírus em um vilarejo ignorado na China desencadeou a perturbação de um mundo”.
Em sua visão a policrise atravessou os nossos modos de ser, de conviver, de produzir, de consumir e de estar no mundo, desafiando a pensar todos os nossos paradigmas, muito do que escreveu fala em métodos novos como hologramático e o perigo da hiperespecialização da ciência que conduz “a um novo obscurantismo” que é nossa incapacidade de enxergar o todo na modernidade.
É verdade que atravessamos outras crises, mas o artigo de Tooze mostra as implicações da guerra da Ucrânia e da pandemia em acelerar estas crises (Mapa), no aspecto pragmático do econômico ela é clara, no aspecto espiritual e ontológico ela ainda não é tão clara, porém poderá estar mais clara em breve.
Um perigoso limiar da guerra
Com o envio de armamento para a Ucrânia OTAN prolongou a guerra da Ucrânia com a Rússia no campo tático pelo menos para mais um ano, isto dizem analistas do Ocidente e russos, porém outro front está ameaçado já que a Finlândia está prestes a ingressar na OTAN faltando apenas detalhes burocráticos.
Na irrita mais a Rússia do que ver seus países de fronteira ingressando na OTAN, este foi inclusive o limite alegando para a guerra com a Ucrânia e a Finlândia possui a maior fronteira dos países da OTAN com a Rússia, mais de 1.300 km, comparável a distância entre Porto Alegre no Rio Grande do Sul até Queluz na fronteira do Estado de São Paulo com Rio de Janeiro.
A Finlândia ergue uma cerca de cabos de aço na fronteira (foto), e os países já viveram uma guerra chamada de Guerra do Inverno (tem este nome porque foi iniciada no final de novembro de 39 e finalizado em 12 de março de 1940 com um tratado no qual perdeu parte do território e boa parte de sua capacidade industrial).
Embora a Finlândia tenha um pequeno exército, na época ainda menor e agora está se armando, resistiu heroicamente, porém perdeu parte significativa de seu território (veja nosso post) e se sente ameaçada pela atual guerra no leste europeu.
Há outro provável alvo da guerra que seria a Moldávia, já há uma pequena região separatista chamada Transnístria, porém no aspecto geopolítico é a entrada da Finlândia na OTAN que mais atinge a Rússia e cria um forte polo de tensão e agora fica mais evidente a nova cortina de ferro.
A Suécia é maior e tem maior população, praticamente mais que o dobro da Finlândia e também vem se armando e o processo de entrada na OTAN é mais lento, porém a guerra pode acelerar este processo e seria inevitável uma ajuda militar á Suécia.
Um apelo da Belarus, aliada da Rússia, a um acordo de paz e a recente visita de Xi Jinping a Rússia, que se esperava um maior empenho pela paz permanece uma incógnita e é possível que Putin tenha exposto seus planos, e isto entra o Brasil por fazer parte dos BRICS e ter adiado a viagem à China por uma pneumonia do presidente Lula, porém a China espera a visita.
Uma eventual guerra com a Finlândia abriria um polo delicado da guerra, já que é praticamente membro da OTAN e as retaliações militares poderiam entrar em cena de forma explosiva.
O horizonte de uma possível paz vai ficando cada vez mais distante e as possibilidades remotas.
Pertencimento, inclusão e inocência
A questão levantada por Michael Sandel transcendente os limites do direito, da vida e da própria ontologia, são estes os argumentos que justificam a morte de um inocente, a violência e por fim a guerra, enquanto o argumento de um simples espectador que lembra que alguém vai morrer e pode ser doador dos órgãos livremente e por uma morte natural.
O pertencimento também podem ser argumento tanto para a morte de um inocente, quanto a recusa dela, não são poucos os casos numa guerra em que por algum motivo alguém que poderia matar um “inimigo” em alguma situação inusitada se recusa a fazê-lo.
O aspecto do contrato social onde o estado tem o “monopólio” da violência, assim é justo matar para defesa da sociedade, é justo até mesmo usar de requintes de crueldade (como a tortura por exemplo) para obter informações e combater o “mal” do grupo oposto também é questionável.
O fato que não abandonamos tais métodos e princípios é o mais grave testemunho do pequeno avanço que socialmente ainda caminhamos no processo civilizatório, o fato que retornamos aos poucos aos graves períodos da guerra fria indica que estamos ainda em compasso de espera.
Quantos inocentes e civis que pouco ou nada tem de apoio a determinadas guerras, como a menina russa que fez um inocente desenho sobre a guerra, mostra que ao lado da perversidade de lutas imperiais e processos colonizadores estão longe de terem sido banidos da civilização.
Porém o que significa a morte de um inocente, qual o significado ontológico e teológico deste símbolo, o cordeiro que Abrão imolou no lugar do filho que seria imolado, lembremos que há três grandes religiões abramicas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, o que significa
Com certeza está longe da lógica do direito, longe da lógica racional, significa que só a inocência e o pacifismo podem contribuir num verdadeiro processo civilizatório que dignifique o homem, quantos inocentes ainda precisarão morrer?
A semana Pascal que se inicia no próximo domingo embora seja festa cristã pode e deve levar a humanidade a refletir sobre a verdadeira paixão civilizatória, que apesar de todo sofrimento humano causado por guerras e injustiças podem sonhar com uma nova civilização.
Contratualismo e inocência
A grande discussão dos contratualistas era sobre a não inocência da pessoa, todos eles são defensores dos poderes do estado e em última análise do in dubio pro societate (na dúvida, a favor da sociedade e não do réu), Hobbes via o homem como mau e o estado devia policia-lo, Locke via como limitava os poderes do estado e dava direito ao povo de rebelião e Rousseau via o homem como bom, a sociedade é que o corrompia.
Nenhum deles nega a necessidade e a prioridade dos poderes do estado, assim foram pilares de todas as modernas constituições dos países, e sua atualização está em John Rawls e seu sucessor Michael Sandel.
Ambos foram idealistas kantianos e utilitaristas, porém há uma pequena diferença que Sandel criticava o voluntarismo de Rawls, segundo o qual princípios políticos e morais se legitimam partir do exercício da vontade individual através da escolha ou do consentimento.
Reivindicava para isto o empirismo de Locke: “somos todos, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém pode ser excluído dessa situação e submetido ao poder político de outros sem que tenha dado seu consentimento” (1988, seção 95).
Para entender a posição de Sandel é necessário ler ao menos a obra que indicamos ou entender claramente seus exemplos, os quais procura tornar práticos e claros seus conceitos, em relação ao pertencimento de grupos, como garantia de interesses coletivos (ele rejeita o termo comunitarismo) cita dois casos: o de um piloto da resistência francesa que durante a Segunda Guerra Mundial se recusou a bombardear a sua cidade natal, mesmo sabendo que isso contribuiria para a libertação da França (2012, p. 279), o pertencimento a sua cidade natal.
O segundo exemplo é o de uma operação de resgate organizada pelo governo de Israel para salvar judeus etíopes de campos de refugiados no Sudão (2012, p. 280), o pertencimento ao povo judeu.
Porém em uma de suas famosas palestras na qual dá outros exemplos, e faz vários diálogos com a plateia, é pego em contradição ao dar o exemplo de 6 pacientes chegam a um pronto socorro e 1 está em estado grave enquanto os 5 pacientes que precisam de doação de diferentes órgãos para sobreviverem e o paciente em estado grave exige muito tempo de cuidados, faz a pergunta se o deixaria morrer para ajudar os outros.
A maioria das pessoas concordaram em deixá-lo morrer, mas um jovem (na foto) disse que tinha outra solução, dos 5 que estavam para morrer, o que morresse primeiro doaria os órgãos para os outros, o que deixou Sandel constrangido e chegou a admitir: “é uma boa ideia, exceto pelo fato que destruiu o ponto de vista filosófico” (vejam o vídeo abaixo).
Há relações interpessoais e ontológicas que ultrapassam a mera subjetividade é algo entre seres e não apenas dos seres e suas culturas ou pertencimentos, está numa espécie de alma coletiva, numa noosfera onde tudo é mais do que lógico, é onto-lógico.(155) Justiça com Michael Sandel O Lado Moral do Assassinato – YouTube
LOCKE, J. (1690). “Second Treatise of Governement”. In: Two Treatises of Government Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
SANDEL, M. “Justiça – o que é fazer a coisa certa”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
A justiça política e a inocência
A moral do estado foi desenvolvida junto com a concepção contratualista histórica através de Thomas Hobbes (1588-1679) em especial no seu Leviatã, John Locke (1632-1704), fundador do empirismo e Jean Jacques Rousseau (1712-1778), para ele o homem nasce bom e a sociedade o corrompe.
No contrato social os direitos individuais são transferidos ao poder estatal por um contrato e assim pode-se afirmar que é a raiz do princípio in dubio pro societate (na dúvida defende-se a sociedade), não há presunção da inocência.
A transferência de poderes para o estado transfere também o fim da inocência que implica não permitir o desenvolvimento emocional da criança e do adolescente em ambiente familiar, e assim a discussão da idade penal passa a fazer sentido, e todo conceito de justiça torna-se político.
O desenvolvimento contemporâneo do contratualismo está no filósofo John Rawls (1921-2002) para o qual não é possível uma concepção metafísica da moral, ele desenvolve o conceito de “justiça como equidade (justice as fairness) apresentado em seu livro “Uma teoria da Justiça”.
John Rawls influenciou profundamente o pensamento de Michael Sandel que é um dos pensadores atuais mais influentes na cultura de justiça do ocidente e assim herdeiro do contratualismo, e ambos são herdeiros da concepção kantiana de moral.
Um dos raros autores a analisar esta posição foi Paul Ricoeur (1913-20050 em seu livro O Justo (Vol. I), dedicando boa parte do texto a análise de John Rawls e desenvolvendo a ideia do direito em sua posição peculiar, um meio caminho entre a moral e a política, sem a qual ela é utilitária e não por acaso sofreu profunda influência do pensamento utilitarista de John Stuart Mill (1806-1873).
Não é possível equidade sem relação humana pessoal, afirmou Ricoeur: “A virtude da justiça se estabelece com base numa relação de distância com o outro, tão originária quanto à relação de proximidade com outrem ofertado em seu rosto e em sua voz” e isto não é exato nem pragmático.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997
RICOEUR, P. Le Juste 1. Paris : Éditions Esprit, 1995.
SANDEL, M.J. Como fazer a coisa certa. São Paulo: Civilização Brasileira, 2013.