Arquivo para a ‘SocioCibercultura’ Categoria
Simetria e diversidade
Toda relação de poder é assimétrica, discorrendo sobre o poder das [mídias] de redes sociais, no seu livro-ensaio “No Enxame” escreve o coreano-alemão Byung Chul Han: “o poder é uma relação assimétrica. Ele fundamenta uma relação hierárquica. O poder de comunicação não é dialógico. Diferentemente do poder, o respeito não é necessariamente uma relação assimétrica” (p. 18), então fica a pergunta como o poder poderia ser simétrico e como a comunicação dialógica.
Sociedades coletivas, comunais e originárias sempre tiveram alguma forma de hierarquia e a maioria delas desenvolveram formas de comunicação dialógica, a modernidade talvez seja o momento histórico de maior hierarquia e onde a comunicação tornou-se mais problemático, sendo necessário voltar a conceitos básicos sobre quem é o outro e que forma de poder é lícita”?
O pior dos cenários tornou-se realidade, este é o ponto que Byung Chul Han tem razão: o enxame, porém é preciso compreender o processo de desenvolvimento que vem do racionalismo-idealismo cartesiano-kantiano, onde o centro é a verdade objetiva, sem espaço para a subjetividade, não por acaso os conceitos éticos e morais perderam valor, dizia o imperativo categórico kantiano: age de tal forma que sua conduta seja modelo universal, mas quem é este ser “ideal”, “racional”?
Sabemos que na natureza sempre há alguma assimétria, por exemplo, os lados do corpo humano.
A resposta não é tão difícil se entendermos a diversidade, não há modelo “individual” que seja um padrão para todos, nem há uma forma objetiva de expressar o poder, senão aquela que induza toda uma coletividade ao amor solidário, a proteção dos mais frágeis e a negociação em disputas.
Levamos dois mil anos, se considerarmos o modelo cristão de fraternidade, para entender que o único modelo possível de dialogia é o respeito ao Outro (no conceito de Chul Han o respeito é simétrico, porém não pode anular a diversidade, a simetria perfeita não é natural).
Estamos de tal forma treinados e condicionados a um modelo padrão que o chamamos de “reto”, numa analogia a uma linha ideal, já que qualquer objeto presente na natureza que seja reto terá alguma imperfeição, e assim o imperativo categórico de Kant só é possível no imaginário idealista.
A sociedade, em suas diversas formas de “bolhas”, não instituiu e desenvolveu a confiança, mas o controle, forma de poder para que todos se moldem ao modelo ideal de determinado grupo ideal.
A finalidade humana e sua finitude
Diferente da máquina que tem como finalidade omeio (ver post anterior), a finalidade humana é reafirmar a existência pela perpetuação da vida, e também tudo que é vivo pode e deve defender esta existência, conforme explica Edgar Morin:
“As imposições que inibem enzimas, genes, e até células, não diminuem uma liberdade inexistente a este nível, pois a liberdade só emerge a um nível de complexidade individual onde há possibilidades de escolha; inibem qualidades, possibilidades de acção ou de expressão” (MORIN, 1977, 110), as máquinas não deixam de ter finalidade, mas sejam quais forem são meios.
Mas esta liberdade quando está no nível humano, e é “só ao nível de indivíduos que dispõem de possibilidades de escolha, de decisão e de desenvolvimento complexo que as imposições podem ser destrutivas de liberdade, isto é, tornar-se opressivas” (idem).
É o desenvolvimento da cultura humana que pode desenvolver estas potencialidades, assim diz Morin: “É certamente a cultura que permite o desenvolvimento das potencialidades do espírito humano” (ibidem), depende, portanto, do desenvolvimento de uma cultura de paz, de solidariedade e de preservação da vida dentro do espírito humano.
Dirá Morin no capítulo de sua conclusão sobre a “complexidade da Natureza”, que no universo dito “animista”, ou mitológico no caso dos gregos, “os seres humanos eram concebidos de modo cosmomórfico, isto é, feitos do mesmo tecido que o universo.” (MORIN, 1977, p. 333).
Esta presença do que Morin chama de “generatividade”, os seres animados e animadores, todos existentes no seio do universo, implicava numa comunicação entre as esferas: da physis, da vida e a antropossocial, se ampliarmos estes conceitos para a esferologia de Sloterdijk: antropotécnico.
Mas conforme raciocinamos alguns posts atrás, a separação da physis em natureza (animada) e física (inanimada) não só “desencantou o universo, mas também o desolou”.
Completa seu raciocínio com uma frase que mostra nossas múltiplas crises e noites: “Já não há génios, nem espíritos, nem almas, nem alma; já não há deuses; há um Deus, em rigor, mas noutro sitio (o destaque é do autor); já não há seres existentes, com excepção dos seres vivos, que certamente habitam no universo físico, mas procedem duma outra” (idem).
Assim conclui que a natureza foi devolvida aos poetas e a physis aos gregos, e assim o universo das técnicas (que são meios) dominou a vida (que é finalidade) e então “a ciência e a técnica geram e gerem, como deuses, um mundo de objectos” (MORIN, 1977, p. 334).
Não deixa que o finalismo (ou fatalismo) seja a última palavra: “é da crise desta ciência que saem os novos dados e noções que nos permitem reconstruir um novo universo” (idem), a física quântica, do terceiro incluído (o quantum entre dois quanta) e a entropia/neguentropia se renovam.
Todo universo é “anima”, também o teológo Teilhard Chardin concorda com esta tese, e também que a vida é a complexificação do universo, no qual o fenômeno humano é seu ápice.
Além da interpretação animista ou mitológica para estas finalidades da vida, que é morte e vida em vida em morte, um princípio heraclitiano também citado por Morin, a reflexão cristão sobre as passagens já citadas anteriores sobre quem é Jesus (Mc 8,27 e Mc 9,31), e Ele devia sofrer muito.
Ela se complementa na questão sobre abandonar aquilo que é finalidade transitória da vida (portanto só meios) e se não for útil para a finalidade última (e, portanto, são apenas meios e devem ser relativizados) se tua mão, teu pé ou teu olho te leva a pecar (esquecer o fim último da vida humana que é a eternidade da vida) é melhor perdê-los para ter a finalidade viva.
Mas sua última palavra é a de aceitação aos que veem esta realidade de modo diferente, se não são contra nós é a nosso favor (Mc 8, 40) e (Mc 8,41) e “quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa”, assim muitos podem cooperar com o crescimento da anima humana, com a vida e a Natureza viva da qual todos dependemos.
MORIN, E. A natureza da NATUREZA. Lisboa PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA., 1977.
O fim dos seres e das máquinas
Edgar Morin diz que “estamos pois na pré-história da finalidade”, usando o discurso hegeliano dirá “todo o ´si´ torna-se já quase um para–si” (Morin, 1977, p. 242), e assim a máquina viva (para diferenciar das artificias) desde as células molecadas, até os organismos vivos mais complexos “são quase especializados em função das refas quase programadas que visam realizar fins, e todos estes fins se unem no fim global: viver” (idem).
Pode-se dizer então, expressão do autor, que “este ser vivo que se autofinaliza é o produto é o produto finalizado do acto reprodutor que o originou” (ibidem), e “remontando” isto até a origem da vida, fica a pergunta “como é que a finalidade nasce da não finalidade?” (MORIN, 1977, P. 243).
Vai perguntar então que tipo de “informação” capaz de reproduzir e controlar proteínas com as quais não estavam ainda associadas? A idéia de informação, e portanto de programa, e portanto de finalidade, não podem ser anteriores à constituição dum primeiro anelamento protocelular” (idem), vai concluir a partir daí que deve-se afastar “a ideia de processo finalitário antes do aparecimento da vida”, talvez aqui separamos máquinas artificiais dos seres vivos, seu início.
Dirá de modo categórico e essencial que “a finalidade biológica, e evidentemente antropossociológica, está mergulhada num processo recorrente de geração-de-si de que faz parte. É o rosto emerso e informacional desta geração-de-si” (ibidem), para aqueles que creem, digo que este é o que penso ser “imagem e semelhança de Deus”, estar num processo originário vital.
As máquinas vivas e as artificiais terão em comum, segundo o autor, “finalidades das origens da vida repercute-se e reflecte-se nos fins globais das máquinas vivas, e até das máquinas artificiais” (MORIN, 1977, p. 243).
Diferenciará mais a frente a máquina artificial da viva, citando Paul Valéry: “Artificial quer dizer que tende para um fim definido e, por isso, se opõe ao vivo”, assim por exemplo, o fim “duma fabricar é fabricar carros, cujo fim é a deslocação, a qual serve para actividades construtivas da vida do indivíduo na sociedade e da sociedade no indivíduo” (Morin, 1977, p. 244).
Assim enquanto a máquina tem uma finalidade extrínseca da vida, e esta finalidade deveria ter o fim intrínseco da vida biológica, estes “fins complementares podem tornar-se concorrentes e antagônicos, como acontece com os fins da existência individual e a reprodução…” (Morin, 1977, p. 245), se tornarem-se antagônicos podem conduzir da exclusão de uma finalidade pela outra.
E assim, conclui este tópico Edgar Morin> “no Homo sapiens, os prazeres gastronômicos e os gozos eróticos tornam-se fins em detrimento das finalidades alimentares e reprodutoras; o conhecimento, meio para sobreviver num ambiente, torna-se, no pensante tornado pensador, à qual subordina a sua própria existência” (MORIN, 1977, pags. 245-246).
Assim as finalidades deslocam-se, degeneram e tornam-se incertas, como o futuro da civilização.
MORIN, E. A natureza da NATUREZA. Lisboa PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA., 1977.
A visada ética de Paul Ricoeur
Em seu texto de 1990, Paul Ricoeur já elaborou o que chamava de uma pequena ética, simplificada em três teses:
- a prioridade da ética sobre a moral, isto é, a prioridade da vida da vida boa (vem do conceito grego de bondade), com e para os outros, em instituições justas, sobre a norma moral;
- A necessidade, no entanto, que a visada ética (aqui opõe-se a eticidade Hegel/kantiana) pelo crivo da norma moral: essa passagem da ética à moral, com seus imperativos e suas interdições, é por assim dizer exigida pela própria ética, na medida em que o desejo da vida boa encontra a violência sob todas as suas formas; e,
- a legitimidade de um recurso da normal moral à visada ética, quando a norma conduz a conflitos e para os quais não há outra saída a não ser a de uma sabedoria prática, à criação de decisões novas frente a casos difíceis, como no direito, na vida cotidiana e na medicina.
Ricoeur esclarece que nem na etimologia das palavras, nem na história do uso dos termos, não há uma distinção clara entre moral e ética, porém há um nuance o termo ética “para a visada de uma vida realizada sob o signo das ações estimadas boas”, e o termo moral “para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo tempo por uma exigência de universalidade e por um efeito de coerção” (Ricoeur, 1991a, p. 256).
Neste sentido deve ser entendida sua “visada ética”, nem se restringe ao campo da liberdade pessoal, já que admite “exigência de universalidade e por um efeito de coerção” nem se limita a ética institucional já que ela deve estar “sob o signo das ações estimadas boas”.
Pode-se assim distinguir mais claramente na sua visada ética, a distinção entre duas heranças, a aristotélica “a ética caracterizada pela sua perspectiva teleológica (de telos, que significa fins), e a herança kantiana deontológica (“a moral é definida pelo caráter de obrigação da norma e, portanto, por um ponto de vista deontológico (deo de “dever”).
Assim sua análise ao invés de excluir uma ou outra tese da ética moderna, faz um complemento tanto da obra a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática de Kant, mas sem a necessidade de ser fiel à ortodoxia a nenhuma das duas, não é uma saída evasiva, mas sim inclusiva.
RICOEUR, Paul. Éthique et morale, Lectures 1: Autour du politique. Paris, Seuil, 1991, p. 256-269.
Crise do pensamento e a razão cínica
O pensamento moderno ainda está fortemente atrelado ao idealismo, há vários pontos a colocar em questão a Crítica da Razão Pura de Kant, dois pontos que considero centrais: o dualismo sujeito e objeto (chamado de dicotomia infernal por Bruno Latour) e a transformação do eidos grego em ideia abstrata, quase toda filosofia ocidental contemporânea é herdeira de Kant.
A crise da “democracia” grega (questionável porque escravos e mulheres não participavam) aconteceu em meio a crise do pensamento sofista, fundado no relativismo e na justificativa do poder, valia a arte da retórica e da oratório e o poder da argumentação, mais que a verdade.
Também lá nasce outra dicotomia infernal: entre natureza (phýsis) e cultura (nómos), afinal o que é natureza e o que queremos dizer que é cultura quando a distanciamos da vivência e da techné.
Sloteridjk é um dos raros filósofos ocidentais que vai questionar sem perder o cunho racionalista e progressista, tanto os clássicos moldes atuais da argumentação como de Adorno e Horkheimer, de Sartre e de Foucault, não escapa nem Heidegger do qual de certa forma é também herdeiro, ao questionar sua Carta sobre o Humanismo, e pensar o que é de fato humanismo hoje.
O que chama de cultura, por exemplo, pode mostrar a contradição, dando o exemplo da China onde pode-se comer carne de cachorro e na Índia não se pode alimentar de carne bovina que é um animal sagrado.
O ponto que considero mais central é a explicação do relativismo moderno, já que este também era o fundamento dos sofistas gregos, lá tudo que se referia a vida prática podia ser modificado, assim tanto a religião como a política, eram considerados fatores culturais e podiam ser modificados, é convergente, segundo Sloterdijk com o pensamento moderno, segundo sua análise dos conceitos de cinismo e kynismós, seu fundador Antístenes de Atenas (445-365 a.C.) pregava uma vida simples como uma vida selvagem (na natureza, a palavra kynós significa cão), a figura de Diógenes em seu barril é a mais emblemática (na pintura acima de Jean-Leon Gerome, 1860).
Embora discípulo de Sócrates, diferentemente de Platão optou apenas pelo estereótipo do mestre, ao contrário de educar e organizar uma “episteme” ele vai tornar tudo simples e relativo.
O contexto destes sofistas era a cidade-estado e a democracia de Atenas que se encontrava em crise.
A segunda parte do livro de Sloterdijk é uma crítica ao cinismo aplicado, estruturado em quatro partes: fisionômica, fenomenológica, lógica e histórica.
Sloterdijk, P. Crítica da Razão Cínica, trad. Marco Casanova e outros, SP: Estação liberdade, 2012
A parição aórgica
Como o conhecimento moderno poderá parir um novo mundo,superar a crise humanitária (que é além da pandêmica), superar a crise do pensamento alertada por tantos pensadores Bachelard e a nova ciência, Husserl e a crise do pensamento científico, Morin e a crise do pensamento humanitário, que também Sloterdijk criticou revisando a “Carta sobre o humanismo” de Heidegger.
Repassando as três mudanças, na antiguidade Sócrates através de Platão pariu a episteme que superava o modelo sofista e Platão organizou o modelo da cidade-estado, com as limitações que não dava direito as mulheres e aos escravos, modelo que entra em colapso junto com o império romano, herdamos deles o direito, mas em que se traduziu o direito natural: no contrato social.
A república moderna, vem justamente de uma discussão do que é a natureza humana, o modelo antropocentrista ignorou o Ser e sua relação com o Ente, não se trata só da relação com a Natureza, mas com a própria natureza humana, que é também um fenômeno.
Já postamos aqui sobre a mudança aórgica, a relação com a própria natureza e com a nossa própria, que Sloterdijk chama de “matrix in grêmio” (figura), nome apropriado para a escatologia cristã, onde há a figura feminina como a promotora desta mudança aórgica, a relação tensa com a natureza que trará mudanças profundas no planeta e na relação humana.
O que desenvolvemos em nosso post anterior sobre a mutação aórgica, foi a necessária superação do antropocentrismo, é a natureza da natureza (desenvolvida no Método I de Edgar Morin), o lugar do homem na natureza (o título de um dos livros de Teilhard Chardin) e outros autores apontam que o antropocentrismo é um paradoxo, somos codependentes e coparticipes da Natureza.
Mas a natureza dá sinais de agonia, a mudança climática é apenas um sintoma, a própria estrutura do planeta (vulcões, terremotos etc.) pode alterar profundamente e perigosamente o planeta, lembremos dos desastres de Fukushima e de Chernobyl, e a polarização trás o perigo da guerra.
Na escatologia cristã, no livro do Apocalipse de São João lê-se (Ap. 12-19a-12): “Abriu-se o Templo de Deus que está no céu e apareceu no Templo a Arca da Aliança. Então apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”.
Embaralham-se teólogos e exegetas sobre esta passagem, claro que a figura de Maria vem a tona, mas o templo de Deus não é nada mais que o universo e a natureza, incluindo a natureza humana, e a coroa de doze estrelas, as dose tribos de Israel, mas curiosamente a bandeira da Europa tem dose estrelas também, e metaforicamente diria que representa um mundo mais unido, no modelo inicial europeu porque ele também sofreu fissuras como o Brexit inglês.
A mudança aórgica é uma possibilidade não uma fatalidade, e tudo depende da ação humana, como diz o centenário filósofo Morin dá para ter esperança e para acreditar numa mudança.
A metáfora e a especulação
Não há no discurso filosófico (ou do pensamento bem estruturado) que seja livre de pressupostos.
Na metáfora viva, Paul Ricoeur esclarece que isto é “pela simples razão de que o trabalho do pensamento pelo qual se tematiza uma região do pensável põe em jogo conceitos operatórios que não podem, ao mesmo tempo ser tematizados” (Ricoeur, 2005, p. 391).
Estes postulados são fundamentais para compreender o discurso, a retórica e a mera especulação.
Paul Ricoeur faz este estudo em torno das questões: “Qual a filosofia está implicada no movimento que conduz a investigação da retórica à semântica e do sentido â referência? “(idem).
Será na resposta a estas questões, e “sem chegar à concepção sugerida por Wittgenstein de uma heterogeneidade radical dos jogos de linguagem” (Ricoeur, 2005, p. 392) é possível reconhecer: “em seu princípio, a descontinuidade que assegura ao discurso especulativo sua autonomia” (idem).
Não explicitado por Ricoeur, mas Edgar Morin fala sobre o discurso moderno duas raízes que levam o discurso especulativo a uma forma moderna de obscurantismo: o fechamento em áreas do saber demasiadamente especializadas, que ele chama de hiperespecialização.
Aqui a metáfora pode ser confundida com a mera especulação e a filosofia estaria “induzida pelo funcionamento metafórico, caso pudesse mostrar que ela apenas reproduz no plano especulativo o funcionamento semântico do discurso poético” (idem).
Ele esclarece que a pedra de toque deste equívoco é “a doutrina aristotélica da unidade analógica das significações múltiplas do ser, ancestral da doutrina medieval da analogia do ser” (idem) que voltaremos no próximo post para entender as limitações metafísicas da ontologia aristotélica.
O segundo esclarecimento, mais fundamental é o discurso categorial, onde “não há nenhuma transição entre a metáfora poética e a equivocidade transcendental” que é a conjunção entre teologia e filosofia “em um discurso misto” que cria confusão entre analogia e metáfora” (Ricoeur, 2005, p. 393), e isto implicaria em “uma sub–repção, para retornar uma expressão kantiana?” (idem), por isto é necessário retornar a questão metafísica e nela a questão ontológica.
Cita como epígrafe a afirmação de Heidegger de que “o metafórico só existe no interior da metafísica”, é aqui o coração desta obra de Ricoeur, e ele chama de uma “segunda navegação”, alusão a “Mytologie blanche” de Jacques Derridá, passar da metáfora viva para a metáfora morta.
Ricoeur, P. Metáfora viva. trad. Dion David Macedo. BR, São Paulo: Edições Loyola, 2005.
Espiritualidade e cosmovisão
Espiritualidade é a busca de um sentido para a vida, ela pode parar na physis, que para os gregos era a natureza ou pode ir além e contemplar a meta-physis, que significa μετα (metà) = depois de, além de tudo; e Φυσις [physis], ou seja, além da natureza e da física.
Assim uma espiritualidade que para na natureza, a explicação por exemplo da origem do universo, ainda que seja uma cosmovisão física, carece de uma cosmovisão escatológica que explique a origem e o fim de tudo, cairá em algum ponto nos sofismas e no niilismo, conforme o sofista Górgias (485-380 a.C.) nada existe.
Se nada existe o sentido da vida é sem sentido, muito se explora superficialmente o sentido da vida, para muitos é ser feliz apenas, ainda é uma cosmovisão limitada, dores e sofrimentos são parte da vida, assim é preciso passar por eles para que a vida de fato tenha sentido.
A espiritualidade necessidade de uma cosmovisão, ou se preferir o termo mais filosófico, de uma visão de mundo (Weltanschauung), usada de maneira quase oposta por Kant e Heidegger, enquanto Kant usa-a como transcendência idealista (do sujeito ao objeto), Heidegger retorna a tradição metafísica, com o propósito de dela se distanciar.
O conceito de eidos (no grego é forma e essência) transformado em ideia, e a separação do sujeito com o objeto, relegou as questões do espírito (nem espiritualidade pode ser chamada) ao campo da subjetividade, marco inicial do movimento filosófico denominado idealismo alemão foi a publicação da Crítica da razão pura em 1781 por Immanuel Kant (1724-1804), terminando cinquenta anos mais tarde com a morte de Hegel (1770-1831).
Martin Heidegger inicia pelo questionamento do sentido de ser do ser-aí. Isso porque “não se compreende por esse termo apenas a concepção da conexão entre as coisas naturais, mas, ao mesmo tempo, uma interpretação do sentido e da finalidade do ser[1]aí humano e, com isso, da história [Geschichte]” (HEIDEGGER, 2012, p. 13).
Grande parte do que se chama de espiritualidade é na verdade apenas uma busca de sentido pela vida, um exercício mental que é diferente do espiritual, carece de uma ascese, de uma verdadeira “ascensão”, por isto retorna sempre a physis, a natureza ou ao chão.
Uma cosmovisão completa deve ir além do fato e chegar a intencionalidade, tudo existe com uma intenção, ter consciência é “ter consciência de algo”, conforme pensa a fenomenologia de Husserl, então consciência do “universo” portanto tem uma intenção de existência do universo, que é em parte metafísica e em parte espiritualidade, algo ou alguém tem (e não teve) uma intenção primária, algo grande, infinito, superior a natureza, ao universo e a tudo que conhecemos, algo inefável.
HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Trad.: Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2012.
Mal-estar da civilização e do ser
A frase bastante usada na literatura, as vezes no domínio público é de uma obra de Freud: O Mal estar da civilização, no entanto, não é apenas no campo da psicologia que ela se confina, diz o autor ser: “impossível desprezar até que ponto a civilização é construída sobre a renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa “frustração cultural” domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. … Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Isso não se faz impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso”. (Freud, 1930/1997, p. 118).
Vejam que “opressão, repressão ou algum outro meio” é do autor, que mal imaginaria um mundo digital capaz disto, e frustração cultural colocada em aspas pelo autor domina os relacionamentos, e que afirma ainda mais curiosamente, que a busca da “compensação econômica” é um refúgio.
Mas isto foi registrado também em outras áreas, escreveu Edmund Husserl sobre a crise das ciências: “Na urgência de nossa vida – ouvimos dizer – esta ciência nada nos tem a dizer. Ela exclui de um modo inicial justamente as questões que, para os homens dos nossos desafortunados tempos, abandonados às mais fatídicas revoluções, são as questões prementes: as questões acerca do sentido ou ausência de sentido de toda existência humana” (A crise das ciências europeias), também pode-se falar da crise ou noite de Deus, da identidade e o esquecimento do Ser.
Assim na Pós-modernidade, se dispensamos os recursos superegoico no sentido freudiano, o que nos assegura uma máscara cultural é a disputa entre nações e uma nova forma de defesa da honra, por exemplo que são disfarces para os diversos tipos de violência urbana, a drogadição, a nova presença agora da psicopolítica que nos impulsiona ao consumo e a polarização e nos encoleriza.
Esta onipresença da violência camuflada nas diversas relações sociais, é o que caracteriza o fim do respeito que caracteriza uma distância saudável entre Eu e o Outro, ou incluímos o igual que é o meu espelho, ou repelimos violentamente como um Outro.
FREUD, S. (1997). O mal-estar na civilização. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. 21, pp. 75-174). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1930).
Topologia da Violência
O livro a Topology of violence (não há ainda tradução em português), pode-se considerar uma sequencia da análise da Sociedade do Cansaço, em que mostra porque a sociedade está a beira de um colapso, e mostra que ao mesmo tempo um tese geral sobre seu desaparecimento, uma tendência de guerra que agora dá lugar ao outro, mudando a sua maneira de operar.
Suas ideias sobre a violência são inovadoras e fogem do senso comum, que pensa sempre na concepção moderna da sociedade em liberdade, individualidade e sua realização pessoal, vai em busca do lado obscuro do assunto, onde ele se inicia.
Essa violência é aquela que tende a eliminar o outro, anônimo, “subjetivado” e sistêmico, que não é relevado à medida que aceita a liberdade do antagonista.
Seu conceito de violência é então aquele que define como funcionando numa individualidade livre, motivado pela atividade de perseverar e não fracassar, e com a ambiência da eficiência renuncia até mesmo faz sacrifícios ao mesmo tempo, mas que entra num redemoinho de limitação, auto-exploração e colapso.
Tudo isto tem uma relação com a sedução, que ele explicou numa entrevista ao jornal El Pais que a sedução não pode ser confundida com compra: ““Penso que não apenas a Grécia, mas também a Espanha, estão em estado de choque após a crise financeira . O mesmo aconteceu na Coréia, após a crise asiática. O regime neoliberal instrumentaliza radicalmente esse estado de choque . E aí vem o diabo, que é chamado liberalismo ou Fundo Monetário Internacional , e dá dinheiro ou crédito em troca de almas humanas.”
Tudo isto para aumentar o crédito e dar maior incentivo a uma suposta eficiência, e ele explica que no final: “estamos todos exaustos e deprimidos. A sociedade da fadiga na Coréia do Sul está agora em um estágio mortal”, revelando o lado pouco conhecido do país de onde veio e que fala com propriedade.
E não é uma sociedade mais feliz, explica, “o invisível não existe, então tudo é entregue nu, sem segredo, para ser devorado imediatamente, como disse Baudrillard”, explica que tudo deveria ter um véu ainda que fino, uma interioridade.
Arroyo, Francesc. Aviso de derrumbe. entrevista de Byung Chul Han ao diário El País, Espanha.