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Arquivo para a ‘SocioCibercultura’ Categoria

A questão do espírito em Hegel

10 jul

Byung-Chul Han critica a Fenomenologia do Espírito de Hegel vista “em termos do esquecimento do ser” (tema central de Heidegger) como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, 2023, p. 334), assim não é a resistência do espírito.

Recupera Hegel em parte, na epígrafe do último capítulo “a verdade é o todo”, rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato” (Han, 2023, p. 336).

Esta consciência natural (idealista) “se demora em “perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembra que a autêntica inversão” [ocorre quando] “a verdade da essência se recolhe ao ente” (Han, 2023, p. 336, citando Heidegger).

Em contraste com a dialética de Hegel, este tópico daria um livro, trava um diálogo com Derrida e Adorno na questão sobre o luto e o trabalho do luto, matar a morte, não é apenas algo secreto no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), mas também reverter o negativo do Ser.

Este trabalho da “tragédia” se distingue do “trabalho do luto” da dialética (Han, 2023, p. 385), é aquilo que Han chama em outros trabalhos do excesso de positividade, não entender a dor (na sociedade paliativa por exemplo, analisando a pandemia e a própria dor).

“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, 2023, p. 394), citando Adorno a “Teoria Estética” é o livro das lágrimas e que ao contrário de Kant “o espírito percebe frente a natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (Han, 2023, p. 395).

O absoluto de Hegel é abstrato: “o Absoluto só é absoluto na medida que se sabe como Absoluto, isto é, como autoconsciência” (Hegel no §565 da Fenomenologia do Espírito).

Para a ascese verdadeira ela está além da natureza humana, aquilo leva a uma ascensão, uma nova interioridade que se expresse numa exterioridade mais humana, não a autoconsciência humana (pensada até na religião) e sim aquela que admite a singularidade humana no uno divino e este sim Absoluto.

Han, B-C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. RJ: Petrópolis, Vozes, 2023.

 

Religiosidade e a cultural liberal

27 jun

O liberalismo moderno criou um ambiente onde muitas práticas culturais que eram questionadas anteriores, em especial aqueles que ignoram direitos e deveres sociais, foram aos poucos sendo liberadas, a ideia (no sentido do idealismo filosófico mesmo) de liberdade é aquela que agrada a vontade, no sentido de exigência racional e prática da autoderminação universal, com isto a moral e a ética não são aqueles que impedem o exercício do mal, mas aquela que agrada a razão.

Assim não faz sentido para o liberalismo contemporâneo o combate a usura, juros extorsivos são praticados por bancos sem falar da agiotagem, o combate a imoralidade pública, a nudez e a pornografia público não é mais assunto moral e os diversos tipos de males a saúde, ao bem-estar social tornou-se até mesmo pilhéria em discursos midiáticos.

Não se trata também de moralismo puritano, nem de gosto pessoal em relação a forma de se manifestar e comportar-se socialmente, mas de deboche, de ofensa pública a todos os que querem um mínimo de moralidade pública, Adorno escreveu sobre a “Minima Moralia” na década de 40, no sentido de como a “vida danificada” se desenvolveu numa forma de violência e do horror no mundo contemporâneo.

Também há formas de má cultura religiosa, aquela que carece de uma ascese verdadeira que impulsione o mundo para a empatia, a convivência social saudável (também no aspecto da saúde num mundo embriagado pelo uso de álcool, drogas e substâncias tóxicas), sem esquecer que o mais nocivo e terrível é a ofensa cultural, e a cultura da violência que chega ao limite nas formas de guerras armadas e não armadas no mundo contemporâneo.

Sobre o aspecto religioso, vale lembrar a todos que tentam usar o álibi religioso para a prática antissocial, a passagem bíblica de Mateus 23: “Então eu lhes direi publicamente: Jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal” e na passagem é uma referência clara a pregadores que “expulsaram demônios” e “fizeram milagres” em nome de Jesus. 

As narrativas tóxicas que são usadas para estas práticas via de regra não conseguem fazer uma narração completa, precisam usar falsos exemplos e até testemunhos sem nexo para justificar a insanidade da prática e permissividade em relação a moral pública e social, usam a ofensa e até o xingamento público que deixa clara sua adesão à exclusão e ao comportamento antissocial, a permissividade pública, aquela que se nega à coerção e a punição a atitudes antissociais são também formas de violência pela omissão.

 O resultado é um ambiente psicologicamente difícil, uma vida social danificada, como expressa por Adorno, e uma vida em que tudo é transitório como vê Byung-Chul Han.

 

Farisaísmo e Jonas

26 jun

Em que consiste a ausência de espiritualidade nos dias de hoje, mais do que a falta de Deus, diz Byung-Chul Han é o fato que tudo na vida se torna transitório, mas também as consequências de uma forte polarização na qual todos ânimos se concentram e limitam a verdadeira interioridade, a verdadeira espiritualidade fora da bolha, na alegoria explorada por Sloterdijk em Esferas I o sinal de Jonas, lembra um pouco o trecho bíblico (Lucas 11,29-30): “Esta geração é uma geração perversa: pede um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal de Jonas. Assim como Jonas foi um sinal para os habitantes de Nínive, assim o será também o Filho do homem para esta geração”

Sloterdijk via a falta na falta de centralidade uma díade, tanto serve para a polarização como para um policentrismo, isto é uma ausência de situar-se no mundo, lembramos que o ponto central da filosofia dele é o que significa estar no mundo, e Jonas que tenta fugir de sua missão vai parar no ventre da baleia, isto é, seu desejo de fugir do mundo e de sua missão, é a ideia de refugiar-se num puro interior do qual são vítimas aqueles que fazem uma ascese desespiritualizada, tentam não estar no mundo, que é diferente do Ser-no-mundo, categoria que Sloterdijk usa a palavra “vorhandensein”* para explicar sua polêmica sobre o humanismo com Heidegger, que usa o termo dasein para Ser no mundo.

Onde estava Jonas quando estava no mundo? Dentro da baleia. A baleia é parte da consciência de Jonas que lhe provoca a pensar no exterior a partir de um interior. Heidegger já havia pensado neste puro interior de que todos somos vítimas, um espaço radical e intrínseco, nossa habitação única e primeira por onde permeiam todas as nossas impressões, pensamentos e afetos.

O sinal de Jonas, único sinal para esta geração que busca um “sinal de Deus” é, portanto, encontrar esta interioridade mesmo estando no mundo e sujeito a suas díades (polos) ou mesmo o policentrismo (meias-verdades de diversas narrativas) sem conseguir alcançar uma verdadeira ascese, entretanto Jonas sai da baleia e vai a Nínive cumprir sua missão.

Assim, a relação com o exterior é uma constante tensão, e não há como fugir dela, não é um filtro para a verdade, mas a busca da clareira, de um espaço onde cultivamos o nosso interior, assim na visão de Sloterdijk que nos ajuda, o sinal de Jonas é sua vida interior quando estava no ventre da baleia, dentro de sua “esfera” na concepção de Sloterdijk.

Assim não é aquele que grita Senhor, Senhor nem aquele que vive de “boas intenções” exteriores apenas, é preciso viver esta tensão interioridade e ser no mundo este Ser que é.

O farisaísmo é viver de aparências exteriores que não correspondem a interioridade, mas também a interioridade “pura” é ficar no ventre da Baleia sem viver a tensão exterior.

*a tradução ao pé da letra seria: estar disponível (no caso de Jonas para a missão).

SLOTERDIJK, P. Esferas I : bolhas.  Tradução José Oscar de Almeida Marques. Sáo Paulo : Estação Liberdade, 2016.

 

As bolhas e o outro

25 jun

Diversos autores escreveram sobre a questão do Outro, infelizmente ainda há uma ignorância sobre o termo, ele renasceu (a meu ver sempre existiu na filosofia cristã, a patrística trata amplamente do termo como “próximo” e Paul Ricoeur lembra isto), Habermas escreveu sobre a Inclusão do Outro que seriam as fronteiras de comunidades abertas a todos, Byung-Chul Han escreveu A expulsão do Outro, ao refletir sobre a comunicação hoje, entretanto Emmanuel Lévinas e Paul Ricoeur o trataram com originalidade e riqueza.

Já postamos algo sobre Lévinas lido por Byung-Chul Han que lembra seu conceito de “il y a” no qual analisa um aspecto funcional da relação ética, fazendo-a transcender, é preciso dizer que não é a eticidade de Hegel, para ele o princípio da saída do ser para a existência, passando do ser ao seu estado bruto, é sair da solidão do “il y a”, assim dá sentido a existir.

De Paul Ricoeur postamos em alguns trechos a relação entre o “sócio” e o próximo, a primeira é utilitária e a segunda realmente “transcende”, mas sua obra seminal é o Si-mesmo como um outro (publicado em 1990, em português no Brasil em 2014 pela Martins Fontes), ele tem o cuidado de tratar que o si-mesmo não seja deixado de lado, uma vez que é comum ver o Outro eliminando o si-mesmo, ainda que na relação fenomenológica sempre é necessário um “epoché”, mas colocado entre parênteses.

Mas aqui queremos avançar para o conceito de bolhas no Esferas I de Peter Sloterdijk, expõe sua esferologia, forma de definir e problematizar o que significa “estar no mundo”, uma vez que nós viemos de uma esfera que é o ventre materno, e saímos para a esfera do nosso planeta, e ele cria um conceito de imunologia para dar sentido a sua ideia de meio social de comunicação que é a co-imunidade, é curioso que o termo veio bem antes da pandemia.

É curioso que o autor, que não vê religião como algo objetivo, não deixa de analisar em sua obra conceitos vindos na “cultura” do cristianismo ao falar, por exemplo, de uma ascese desespiritualizada que vale para muitos religiosos de hoje, e de Matrix in Gremio (no colo da mãe, uma clara alusão a Maria) e aqui destacamos a eucaristia (não é o conceito ortodoxo, é obvio).

Ao falar das bolhas, um tópico especial é “Do excesso eucarístico”, essa mútua incorporação é descrita em episódios ilustrativos constituintes da tradição europeia da cordialidade ao seu ver, que para nós latinos poderia ser um adjetivo de miseri-cordis, tem um coração que acolhe humildemente o coração do outro, e seu “excesso’ seria melhor compreendido.

Narra três episódios neste tópico, o primeiro é do período da trova cavalheiresca do século XIII pelo poeta Conrado de Würzburg, em que o impossível adultério trovadoresco de um cavaleiro e uma dama é levado à concretude somente com a consumação não ciente do coração do rapaz pela moça, claro trata-se do amor humano aqui, porém o autor também trata do testemunho de Raimundo de Cápua (1330-1399) que ganha coro, no qual Catarina de Siena (uma santa católica muito sábia) que tem seu coração trocado pelo do próprio Cristo revelado, marcando a comunhão esférica do humano com o divino, e aqui se entende a sua adjetivação de “excesso eucarístico”.

O terceiro é mais filosófico e retoma a filosofia clássica de Platão, uma adaptação feita por Marcílio Ficino do Banquete de Platão, com a influência da medicina medieval ele imagina que Fedro penetra, com adaptação clara medieval, com vapores sanguíneos que vieram do seu coração e extrapolaram pelo seu próprio olhar, os outros de Lísias, com isto insufla seu coração tornando-o enamorado de Fedro.

O discurso de Lísias, no diálogo platônico Fedro fala do encantamento provocado pela arte de usar belamente o logos, com intuito de persuadir, ele elabora um belo e “lógico” discurso para dizer que é mais vantajoso entregar-se a um não apaixonado do que um amante, ele exerce ali sobre Fedro um fenômeno chamado apathê.

A questão importante de Sloterdijk é que todos estamos sujeitos a nossas bolhas, aos nossos pré-conceitos e somente com este recurso pensado por Lísias, ver o outro não-amante e não próximo, como uma possível entrega é que podemos iniciar um processo de aproximação, na filosofia de Hans-Georg Gadamer a “fusão de horizontes”.

Que olhar temos sobre o Outro diferente e como podemos realizar um “apathê” que se torne um encontro favorável e interessante, uma comunicação possível.

SLOTERDIJK, P. Esferas I. trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Liberdade, 20 16.

 

A clareira e a floresta

18 jun

A ontologia é aquela visão científica onde o Ser deve estar presente, mesmo que envolto e desenvolto em torno do ente, o ente é aquilo que designa tudo aquilo que “é” ou seja refere-se ao particípio presente do verbo ser, assim Heidegger vai pensar o que é o ser do ente, enfim tudo aquilo que está relacionado ao mundo que vivemos porém nunca se esquecendo que é nele que vive o Ser.

Assim o filósofo pensou a verdade a partir da palavra grega alétheia (a- não, lethe – oculto), assim é o ato de desvelar a verdade do Ser e sua relação com o ente no tempo, a verdade é então distinta do conceito comum que a considera como um estado descritivo objetivo.

Para Heidegger entretanto, há uma diferença fundamental entre o Ser e o Ente, o Ser se refere ao fundamento da existência e dos modos de existir, enquanto o Ente corresponde à existência concreta, ou, a realidade humana, enquanto presença no mundo, assim geralmente pensamos no Ser do Ente (a cacofonia é proposital aqui) e não o Ser enquanto Ser.

O Ser enquanto Ser é esse ser-aí (o dasein sem uma tradução exata, ao meu ver, para o português), esse que “existe” sendo o único ente que ek-siste, os outros são, mas não existem (enquanto consciência, ou de modo mais atual enquanto senciência) ainda que os animais possam ter emoções e reações de afetividade.

Ou seja, senciência é a capacidade dos seres de sentirem sensações e sentimento de forma consciente, assim podem evitar reações negativas, violentas ou temperamentais.

Assim a clareira é aquele encontro com sua própria verdade, em meio a floresta, há um espaço onde tudo se desvela e nosso verdadeiro Ser se encontra e encontra o Outro.

O ser do ente, projetado sobre as coisas apenas mundanas: dinheiro, facilidades e conquistas, encontra um espaço para sua vida ativa e contemplativa, tudo em volta se desvela, se reencanta e tem significado, não é fácil nem simples porque a floresta continua ali e continuamos a desbravá-la em busca dos “entes” e até os encontramos, mas novamente temos que ir em busca de novos porque ainda não é a clareira, é diferente do mito de Platão porque ali existe um mundo dual: o mundo das ideias e o mundo dos sentidos.

O homem moderno precisa se colocar  no centro do seu Ser e ter uma relação de posse transitória com os entes, as coisas do dia-a-dia e do mundo real.

Na narrativa bíblica devemos amar sempre o Outro, até mesmo pedir e orar por aqueles que não querem nosso bem, isto nos limita de atirar sobre os entes como sendo Ser.

 

O outro como categoria política

11 jun

Na história da filosofia o Ser, o Ente e a Essência foram três categorias metafísicas fundamentais, como a filosofia moderna jogou a “agua suja com a criança dentro da bacia”, além do esquecimento do Ser como aponta Heidegger e seus interpretes e diálogos (Hannah Arendt, Hans-Georg Gadamer, Peter Sloterdijk, Byung-Chul Han e outros), há também uma categoria redescoberta, ou até mesmo nova de fora da cultura religiosa: o Outro, visto como o “próximo”, o “irmão” ou o “fiel”.

Paul Ricoeur escreveu sobre o próximo e o sócio, para diferenciar na relação utilitária moderna as relações entre ambos, mas também Lévinas (O tempo e o outro), Martin Buber (Eu e Tu) e Byung-Chul Han, em análise mais contemporânea escreveu A Expulsão do Outro, mas a obra de Junger Habermas “A inclusão do Outro – Estudos de Teoria Política” é aquela, como diz o título, que trata de incluir esta análise no seio da polis moderna, diz na introdução:  “defendo o conteúdo racional de uma moral baseada no mesmo respeito por todos e na responsabilidade solidária geral de cada um pelo outro” (Habermas, 2002, p. 7) e condena a desconfiança de um universalismo marcado mais pelo apelo a diferença do que “o mesmo respeito para todos se estende àquelas que são congêneres, mas à pessoa do outro ou dos outros em sua alteridade” (idem).

Diz o autor: esta comunidade moral não é apenas a mera inclusão do Outro (pg. 8)”, mas a “inclusão do outro” significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos – também e justamente àqueles que são estranhos que são estranhos um ao outro – e querem continuar sendo estranhos e constitui exclusivamente pela ideia de discriminação e sofrimento” (pg. 8 e toda primeira parte do livro se refere a esta questão.

Na Segunda parte refere-se a uma réplica e uma discussão com John Rawls, que foi convidado pelo editor do Journal of Philosophy, onde analisa em termos de conceitos, as instituições morais que norteiam Rawls e esclarece que sua réplica também serve ao intuito de esclarecer “as diferenças entre o liberalismo político e um republicano kantiano como eu o entendo” (pg. 8), lembro que também Paul Ricoeur “O justo ou essência” escrito em dois volumes, também abortou as ideias de John Rawls.

A terceira parte do livro “pretende contribuir para o esclarecimento de uma controvérsia que voltou a surgir na Alemanha depois da reunificação. Continuo a fiar a linha que iniciei outrora num ensaio sobre `Cidadania e Identidade Nacional’ “(pg. 8), mas sabia o autor que o tema seria tão atual para os dias de hoje.

A quarta parte, foi uma das motivações desta postagem, já que Byung-Chul Han fala da paz eterna de Kant, o autor fala sobre os direitos humanos a nível global e nacional (na Alemanha evidentemente), por ocasião do bicentenário texto sobre a Paz pérpétua de Kant, “A luz da nossa experiência histórica”.

O livro terá a quinta parte não menos instigante sobre a “a teoria do discurso a respeito da concepção de democracia e de Estado de direito” (pg. 9) e isto tudo é apenas o prefácio do autor, e o primeiro tópico é sobre o aspecto cognitivo da moral, que deve ser anterior aos demais capítulo, pois apresenta seus fundamentos.

Escreve o autor: “as manifestações morais trazem consigo um potencial de motivos que pode ser atualizada a cada disputa moral” (pg. 10) e assim “as regras morais operam fazendo referências a si mesmas” (idem) e estabelecerá “para isto dois níveis acoplados de modo retroativo entre si” (pg. 12).

No primeiro nível, elas dirigem a ação social de forma imediata, na medida em que comprometem a vontade dos atores e orientam-na de modo determinado” (pg. 12).

No segundo nível, “elas regulam os posicionamentos críticos em caso de conflito … não diz apenas com os membros da comunidade devem se comportar … coloca motivos para dirimir consensualmente os respeitos conflitos de ação” e vê isto de modo muito análogo aos jogos de linguagens de Wittgenstein onde se estabelece uma polifonia.

O tema se aproxima da Crise da Narração de Byung-Chul Han porque ambos, e isto inclui também John Rawls e Martin Buber ainda que de modo bastante diferente, pois Han esclarece: “o rosto exige distância. Ele é um Tu, e não um Isso disponível” (pg. 96), e penetrando na Teoria Comunicativa, grande tese Habermas, Han vê tanto na sua ideia de psicopolítica no Enxame na perspectiva digital, que a única possibilidade de simetria é o respeito, as relações de poder são assimétricas, e para ele também as comunicativas.

Quem é o Outro, aquele com que me encontro e que muitas vezes é muito diferente de mim, se ele me deseja a paz, diz a passagem bíblica, sentaremos e cearemos juntos,

HABERMAS, J. A inclusão do outro – Estudos de Teoria política. Trad. Georg Sperber, Paulo Astor. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2002.

HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: ed. Vozes, 2023.

 

O desencantamento do mundo e a esperança

10 jun

A guerra é o ápice do desencantamento, mas ela se reproduz nas narrativas, nas intolerâncias e pequenas guerras do dia a dia que provocam a expulsão do Outro, principalmente quando há interpretações e visões diferentes do que são os “fatos”, mas se valem de pequenas guerras ocultas em suas narrativas e num contexto restrito onde ela é válida.

O desencantamento do mundo, agora retomado pela crise da narração de Byung-Chul Han, já foi tema de Max Weber que referiu-se ao fenômeno como um processo no qual o sujeito moderno passou a se despir de costumes e crenças baseados em tradições herdadas ou aprendidas sob os pilares fixos das religiões ou da “magia”, nada mais convergente com Han, porém é importante entender como isto penetrou na linguagem.

Para ser coerente com o tema, o capítulo final da Crise da narração (há outro em sei que é o Storyselling, mas opto pela resistência do espírito), o qual postamos anotações a semana passada, começa com a narração de Peter Nadás, de uma aldeia que se reunia ao redor de uma grande pereira selvagem, e ali contam história uns aos outros, ela forma uma comunidade narrativa “que carregam valores e normas, vinculam intimamente valores e normas” (Han, 2023, p. 121), nela a aldeia se entrega a “contemplação ritual”.

Nadás fala ao final de seu ensaio: “anda me lembro como, nas noites quentes de verão, a aldeia costumava cantar baixinho […] sob a grande pereira selvagem […] Hoje não há mais dessas árvores, e o canto da aldeia emudeceu” (Há, 2023, p. 122 citando Nadás), e “essa comunidade sem comunicação dá lugar à comunicação sem comunidade”.

Ele imagina como outros autores, cita até a Pax Eterna de Kant, porém também sua filosofia construiu a narrativa moderna, e diz como sonhou Edgar Morin e imagina um universalismo radical “uma família mundial” para além da nação e da identidade (pg. 125) e diz “a poesia eleva cada indivíduo por meio de uma conexão peculiar com todo o resto” citando Schriften Novalis, e esta comunidade narrativa rejeita a excludente narrativa da identidade.

“A ação política em sentido enfático pressupõe uma narrativa” (pg. 126) e pressupõe uma coerência narrativa, relembra Hannah Arendt “pois a ação  e o discurso, cuja estreita interrelação na concepção grega de política já discutimos [neste blog também], são de fato as duas atividades que, em última instância, sempre resultam em um história, ou seja, em um processo que, por mais arbitrário e por acaso que seja em seus eventos e causas individuais, ainda assim tem coerência suficiente para poder ser narrado” (Han, 2023, p. 127), lembro em posts anteriores a ideia de Arendt também utilizada por Byung-Chul de vita activa e vita comtemplativa.

Do capítulo final aproveito o seu “Viver é narrar. Os seres humanos, como animal narrans, diferem dos animais por serem capazes de realizar novas formas de vida por meio da narração. A narração tem o poder de um novo começo” (pg. 132) que é um sinal de esperança para a humanidade em uma crise crescente.

Han, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: ed. Vozes, 2023.

 

Desencantamento, narração e dor

07 jun

Chul Han lembra de um hábito muito conhecido em muitas sociedades que é o fato de contar histórias para as crianças dormirem, lembro que é antigo, pois são famosas As fábulas de Esopo (Grécia antiga), os contos dos Irmãos Grimm, as histórias organizadas por Charles Perrault e muitos outros, Han vai escolher uma história pouco conhecida (pelo menos aqui no Brasil) de Paul Maar do jovem Konrad que não sabia narrar e sua irmã Susanne que pede que ele conte uma história para ela dormir.

Os pais por outro lado gostavam de narrar, eram “quase viciados nisto” e quando o pai termina de contar uma história a mãe escreve R de Roland no papel e quando a mãe termina de contar história o pai escreve um O de Olivia, mas os pais percebem que Konrad não consegue narrar história e o mandam para um certa senhorita Muhse, ele chega a uma casa pequena e a senhorita que sabe que ele veio aprender a contar histórias pede que ele suba uma escada e leve um pacotinho para a irmã, mas a escada parece infinita até que encontra uma parede que se abre como uma porta.

Lá dentro está tudo escuro e vê uma coruja com voz e conversas estranhas e percebe que não tem piso e cai num longo encontrando ao final a senhorita Muhse que lhe dá outro pacote e pede que leve ao irmão dela no térreo pois não entregou o primeiro, Konrad fica confuso pois pensava ter caído para o térreo, e ele novamente cai nas “estranhas escuras” da casa e novamente chega a senhorita Muhse, que agora fuma um charuto fino, sabe que ele não entregou o pacote e lhe dá outro novamente, ele diz “não estou aqui para entregar pacotinhos, estou aqui para aprender a narrar”, ela vê que é um caso perdido, abre uma porta na parede e diz: “Boa triagem e tudo de pão” (ela sempre muda os ditados) e desta vez está de volta a casa dos pais (páginas 74 a 77).

Os pais e irmãzinha estão tomando café da manhã e ele diz animado: “tenho que contar para vocês. Vocês não vão acreditar no que vivi …”, o mundo de Konrad agora é outro e agora os pais escrevem K (de Konrad) no papel que eles anotavam suas narrações.

O desencantamento do mundo é quando tudo é reduzido a causalidade, a facticidade (as narrativas de hoje dizem os fatos não mentem, mas sob uma interpretação parcial), Walter Benjamin diz que “as crianças são os últimos habitantes do mundo encantado” (pg. 79), diria não há mais no mundo “adulto”: leveza, empatia e imaginação.

“As crianças de hoje caçam informações como ovos de Páscoa digitais” (pg. 80), hoje a “falta de interioridade narrativa distingue as fotografias das imagens de recordação … as fotografias retratam o dado sem internalizá-lo … não querem dizer nada … “  e é por isto que concluo que dados podem não ser, e quase sempre não são, informações.

Mais difícil ainda é entender o que é conhecimento como vivência: “a narrativa se opõe a facticidade cronológica” (pg. 81), lembra Han lendo Marcel Proust e também Benjamin que a aura é justamente a “distância do olhar que desperta no objeto observado” (pg. 82) e lembrará também Karl Kraus citado em Benjamin: “quanto mais de perto se olha para uma palavra, mais distante ela parece estar” (pg. 83).

A memória desnarrativizada é como uma “loja de sucatas” aqui o autor lembra Paul Virilio (Informação e Apocalipse) sendo o “depósito abarrotado de todo tipo de imagens completamente desordenadas, mal preservadas e de símbolos desgastados” (pg. 84), onde se torna “amontoado de dados ou informações [que] não tem uma história. Ele não é narrativo, mas cumulativo” (pg. 84).

Termina este capítulo de forma muito agradável e sensível, depois de citar trechos das obras de Susan Sontag, Adorno e Gershom Scholem, parafraseando este último escreve: “O fogo mítico na floresta foi esquecido. Não sabemos mais fazer orações. Também não somos capazes de meditações secretas” (pg. 89) e diria aproveitando o tópico Dor do livro “Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade” (veja posts anteriores) não sabemos mais o significado da dor, do afeto e perdemos qualquer noção do “todo”.

Han, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023. 

 

Narração, cultura digital e oralidade

06 jun

Ainda no trecho sobre a Pobreza e experiência, citando Walter Benjamin escreveu Byung-Chul: “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ´atual’. A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra a próxima guerra” (Han, 2023, pg. 37-38, citando Pobreza e Experiência de Benjamin), era o limiar da 2ª. guerra mundial.

Em que a modernidade resume a felicidade, esclarece o autor “a felicidade não é um acontecimento pontual (pg. 43), hoje “quando tudo nos lança em um frenesi da atualidade, quando estamos no meio da tempestade de contingências, somos infelizes” (pg. 44), relembra Marcel Proust “Em busca do tempo perdido” que entendeu o “resgate do passado como tarefa do narrador” (pg. 45) e a vida moderna como “uma atrofia muscular”.

Discordando de Heidegger para reafirmar sua importância contextual (também para hoje): “Ser e tempo não é uma análise atemporal da existência humana, mas um reflexo da crise temporal da modernidade” (pg. 45), “o ser-si-mesmo de Heidegger é anterior ao contexto narrativo da vida produzido posteriormente. O ser-a-i se assegura de si mesmo antes de narrar a si mesmo uma história coerente referente ao mundo da interioridade” (pg. 47) e isto explica o livro que postamos anteriormente aqui O coração de Heidegger.

Após um discurso de algumas páginas sobre as novas mídias:  Phono sapiens, os selfies, o Facebook, é uma fixação do autor ainda que reconheça Benjamin anterior a isto, ainda que diga de modo correto: “eles são alinhados de forma sindética, sem nenhum nexo narrativo” (pg. 51), reconhece que sempre “A memória humana faz escolhas. Nesse aspecto, ela se diferencia de um banco de dados”, uma precisão técnica fundamental, por há quem confunda e as vezes ele também, com dados sem informação e informação sem conhecimento.

É anterior até mesmo ao surgimento da prensa de Gutenberg e pertence à cultura oral: “a narração autobiográfica pressupõe uma reflexão posterior sobre o que foi vivido, um trabalho de recordação consciente” (pg. 53) enquanto “a qualidade dos dados é melhor quanto menos consciência eles contêm” (idem), porém é preciso lembrar a busca semântica, a ligação dos dados (linked data) e o uso da Inteligência Artificial para a narração (é possivel com ética e supervisão humana) que tornem possível uma consciência além do “consciente libidinal” (idem) sem ética nem moral, sem o esquecimento do ser.

Sem citar a cultura oral, mas o trecho lembra ela: “se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação reaparece” (pg. 56) e acrescenta: “uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro” (ibidem) e lembra que quem quiser narrar ou recordar “precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa” (pg. 57) e não pode estar falando de outra coisa que não seja a cultura escrita, pois a oral é capaz de esquecer detalhes porém vai sempre recordar o que é vivido e através dela lembrar o essencial e lembrar a tradição.

Lembrar os mestres das culturas, seus ensinamentos e vivencias não é outra coisa senão a cultura oral, a cultura escrita é um “banco de dados”, uma memória sem reflexão.

Sem citar a cultura oral, mas o trecho lembra ela: “se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação reaparece” (pg. 56) e acrescenta: “uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro” (ibidem) e lembra que quem quiser narrar ou recordar “precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa” (pg. 57) e não pode estar falando de outra coisa que não seja a cultura escrita, pois a oral é capaz de esquecer detalhes porém vai sempre recordar o que é vivido e através dela lembrar o essencial e lembrar a tradição.

Lembrar os mestres das culturas, seus ensinamentos e vivencias não é outra coisa senão a cultura oral, a cultura escrita é um “banco de dados”, uma memória sem reflexão.

HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023. 

 

Experiência, narrativas e visão de futuro

05 jun

No capítulo que Byung-Chul Han trata da pobreza da experiência da modernidade, lembrando que não se trata apenas da vida digital pois é anterior a ela, ele conta a fábula de um homem no leito de morte que conta aos seus filhos que há um tesouro escondido em seu vinhedo (pg. 31), e depois de cavarem muito finalmente entendem que as vinhas daquelas terras produziam que qualquer outra (Han, 2023, pg. 31),  em um detalhe importante explica que “é característico da experiência que ela possa ser narrada de uma geração para a outra” e isto é o que se perdeu na narrativa do storytelling.

A narração pressupõe tradição e continuidade (Han, pg. 34) e é ela que “cria um contínuo histórico” enquanto a pobreza de experiência é “animado pelo páthos do novo” que “generaliza a nova barbárie e a transforma no princípio do novo: A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza – penso, logo existo – e dela partiu” (pags. 34 e 35).

Lembra Paul Scheerbart que em seu ensaio Arquitetura de vidro “fala da beleza que surgiria na Terra se o vidro fosse usado em todos os lugares” (pg. 38) e curiosamente a arquitetura moderna está cheia desta “metáfora” (lembro aqui também a arquitetura do plástico de Jeff Koon com seu ballon Vênus de plástico do livro de Han A salvação do belo), agora o vidro: “um mundo cheio de edifícios de vidros brilhantes, coloridos e suspensos, [onde] as pessoas seriam mais felizes” (pg. 38), e elas conferem uma aura especial como um meio para o futuro, porém conforme explica Han: “o futuro é uma aparição de algo longínquo” (pag. 39) que só o presente não pode conferir, isto é um ‘sentimento de iniciante”, que não fica na superfície e que concebe uma “forma de vida diferente”.

A exausta modernidade tardia é alheia ao “sentimento de iniciante” (pag. 40), “não professamos nada”, estamos “confortáveis” à conveniência e ao like (idem), “as informações fragmentam o tempo … reduzido a uma faixa estreita das coisas atuais”, acrescentaria que não temos leitura, conhecimento e reflexão sobre as coisas anteriores e que fizeram a história da cultura e do próprio conhecimento, não este reduzido a fração cartesiana da razão.

Estamos numa cultura de “solução de problemas … na forma de um tempo compactado” (pag. 41), porém o autor não deixa escapar uma visão de futuro: “ a vida é mais do que a solução de problemas … aqueles que só solucionam problemas já não possuem futuro … a narração desvela o futuro, somente ela nos dá esperança” (pag. 41).

A narração está presente no fundo de diversas culturas das religiosas às sociais e políticas, os povos as construíram mais que seus governantes e imperadores que a elas sucumbiram, Napoleão não deixou uma França imperial, mas resignada, Bismark e Hitler não deixaram uma Alemanha soberba, mas sábia onde a filosofia encontrou raízes, a submissão colonial das Américas e da África, do Oriente onde ainda há lapsos de colonialismo, deixaram povos mais resilientes e em busca de sua própria narração, há vida debaixo do pó que ditadores e colonizadores nos quiseram reduzir, também lembro as culturas orientais e ocidentais de narração religiosa, não são menos importantes, as sustentam.

Claro há neste meio também storytelling, falsos profetas e “pastores” que buscam a escravização religiosa, porém o ensinamento bíblico e oriental é diferente e sendo uma narração não pode ser confundido com leitura estereotipadas e segmentadas, também elas sofreram com o cartesianismo e idealismo, quando estes “religiosos falsos” que exigem uma “narrativa moderna” e que dê conta do storytelling atual.

Já naquele tempo indagavam Jesus sobre a existência da vida eterna, Ele lembra a passagem da sarça ardente em que Moisés falara diretamente com Deus (Mc 1,26): “Quanto ao fato da ressurreição dos mortos, não lestes, no livro de Moisés, na passagem da sarça ardente, como Deus lhe falou: ‘Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’?” e ao contrário de negar a narração antiga reafirma que ela é parte da tradição e que ali já se escrevia uma nova realidade.

HAN, B.C. A crise da narração, trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023.