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Duas utopias em conflito
Não há espaço para a poesia, para o encanto, para a contemplação, a sociedade da eficiência e da performance transforma o pensamento em sentidos sensuais, comerciais e lucrativos, puro viver num egocentrismo ineficiente e vazio, o Ser se esvazia e busca desesperadamente o aroma e o gosto onde não só há um nada para ser plenificado.
Não há espaço até mesmo para o deificado pensamento, frases soltas arrancam suspiros, “a vaca não dá leite” diz um bom filósofo brasileiro, mas o que é o trabalho e dá sentido ao trabalhar para produzir um leite (veja Arendt no post anterior), que é modificado que e chega alterado nas prateleiras, e atualmente muito caro.
Outro pede professores e diz que “ser louco é a única possibilidade de ser sadio nesse mundo doente”, mas que de qual doença fala, se não houveram pessoas sãs e serenas em quem as pessoas simples podem se inspirar, é preciso ser são para poder falar do saudável e do louvável.
Não há ética sem seres éticos, é verdade que as grandes metanarrativas falharam, mas a polarização obriga os novos sofistas a se justificarem nas narrativas vencidas e datadas historicamente, nenhuma delas foi capaz de evitar a guerra, e qual ciência é capaz de evitá-la?
Li uma frase de Morin, e já postei aqui que a ideia de paz exige uma certa utopia, em entrevista no ano 2000 à Rede Cultura (abaixo), ele fala de duas utopias: uma negativa que promete um mundo perfeito, em que todos se reconciliam e há uma perfeita harmonia, esse é impossível (e diria mentiroso) e a outra a positiva é realizar o mundo mais perfeito, não é “O admirável mundo novo” de Aldous Huxley (não por acaso, o chatGTP escolheu com um dos 10 maiores filmes), ela diz algo é impossível porém pode se realizar: um mundo de paz e um mundo sem fome, são realizáveis.
Sem liberdade e fraternidade a utopia humana não se realiza, autoritarismo é utopia negativa.
Tentar reduzir as desigualdades, aumentar a tolerância entre culturas diferentes, respeitar direitos dos povos, raças e gêneros, o que falta afirma Edgar Morin, é aumentar “o estado da consciência e do pensamento que permita a realização”
Sabe que existem forças extremamente negativas que ao ajudar um país que sofre de inanição a ajuda é desviada pela burocracia e pela corrução, ele explica que a fraternidade deve vir dos cidadãos e diria que a vigilância também, se justificamos a corrupção e a burocracia não ajudamos a resolver problemas essenciais a vida humana.
Há soluções utópicas possíveis, conforme afirma Morin que as chama de positivas.
A Guerra e suas consequências
Já enfatizamos aqui, dando contornos de uma crise (anteriores a guerra) que esta se inicia numa forma de pensar o mundo e consequentemente a economia, a política e a sociedade como um todo, assim não se trata deste ou daquele mundo, mas de todos mundos em conjunto.
A econômica não está separada deles, no entanto é a mais sensível e a que mais é pensada em termos da imprensa e das mídias.
Os oligarcas da Rússia, aqueles que não migraram ou foram mortos em situações estranhas, lembro das notícias de Sergey Protosenya, encontrado enforcado na Espanha e Pavel Antov que caiu do terceiro andar de um prédio na Índia, oligarcas lá em geral não criticam o governo.
Entretanto em reunião do Fórum Econômico de Krasnoyarsk, em março na Sibéria, Oleg Deriaska declarou que a econômica ode aguentar pouco mais de um ano e que depois haverão muitas quebras, no Ocidente não é diferente, a economia Europeia e a americana já sentem os reflexos, como líderes mundiais dos países capitalistas, toda economia deve enfrentar sérios problemas.
A Departamento de Defesa americano, acaba de pedir um orçamento de 842 bilhões de dólares, aumentando os já altos 816 bilhões do ano anterior, que significa um aumento de 3,2% e uma perspectiva de guerra ainda maior no horizonte deste ano, e a economia já acusa sérios danos.
A tentativa de formar um terceiro bloco, do qual o Brasil é um dos protagonistas e Makron da França tenta ser outro, é um fogo cruzado, já que os dois lados querem adesões unilaterais, há analistas, como Rodrigo Ianhez, que afirma que os russos têm uma leitura da posição brasileira que é “superestimada” para uma posição bilateral, a China ao contrário é claramente unilateral.
Não há inocentes nestes fatos, isto é a ação política de nossos dias, confundir ou até distorcer os fatos, uma imprensa realmente séria, arte dela é chamada de imprensa investigativa, por ser independente, procura fazer este trabalho, mas até ali as vezes se encontram notícias suspeitas.
Ninguém é apolítico é claro, porém é preciso encarar a verdade através dos fatos que ela revela.
Se analisarmos as consequências de uma guerra, no aspecto econômico que gera mais pobreza e fome e os mais frágeis são os mais atingidos, começamos a ter uma posição séria diante da verdade.
O que significa ver
Exploramos muito em nossos posts a cegueira: filosófica (na República de Platão o mito da caverna), lógica (Parmênides, Russell, Hilbert, etc.), religiosa (Feuerbach, Hegel, etc.) e literária (O ensaio da cegueira de Saramago e a Peste de Camus), só para citar alguns, além deles navegamos sobre a linguagem em Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Levinas, Ricoeur e outros.
Agora queremos navegar pelo mundo da visão, dizia Bachelard: “todos os seres são puros porque belos”, já o poeta Alberto Caeiro “o mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos e estarmos de acordo, também o filósofo e místico russo Nicolas Berdjaev (há muitos místicos russos) dizia que no Paraíso não há ética e só há estética, tudo isto para dizer que ver é ter olhos para o belo, por isso muita coisa hoje feia é autoproclamada bela, assim a inversão não é só ética.
O feio era para Platão do ponto de vista ontológico o quase-nada, sendo o mundo sensível o que é o aparentemente real, sendo mera sombras das ideias (o mito da caverna) e o ideal (eidos) o verdadeiramente real, assim o feio é o informe e não tem existência real e não é modelo universal.
Não é pouco natural que num mundo fragmentado, a beira da sua policrise o belo quase desapareça, e assim o homem não vê, o que vê são sombras, rascunhos de ideias difusas e confusas, o modelo universal desaparece e o discurso é meramente o discurso do conflito.
O belo desponta harmonia, sugere fusão onde há divisão, confunde o caótico dando-lhe forma e mesmo o mundo da pura forma não é mais geométrico é fractal, não fracionário, e sim um fracionário natural pertencente ao todo da parte menos significativa ao corpo todo (na foto o fractal de Lorentz e o efeito borboleta).
Gostamos do ponto, reta e plano, mas isto é Geometria de Euclides, o mundo não é reto e plano.
Do ponto de vista lógico é a aproximação da teoria do caos (há lógica caótica), do ponto de vista filosófico é a visão da complexidade (o simples é quase sempre simplista), do ponto de vista religioso pode-se dizer: “Deus criou tudo e viu que era bom” (e belo), do ponto de vista literário penso que a melhor expressão foi a Friedrich Schiller (1756-1805): “Como reconstruiremos a unidade da natureza humana, que parece completamente suprimida por esta oposição originaria e radical?”(pag.71), escreveu em sua obra “Educação Estética do Homem”, a respeito da divisão no interior do homem entre o impulso formal que o arrasta na dimensão do seu tempo.
Visto como poeta é uma obra maravilhosa, como filosofia fica sujeito a crítica pela distância histórica de seu tempo e os muros da ideologia alemã de seu tempo
SCHILLER, F. “Educação Estética do Homem numa série de cartas”, trad. Roberto Schwartz e Márcio Suzuki, São Paulo: Editora Iluminuras, 1989.
A policrise e pensar alto
Quando pensamos apenas nas coisas cotidianas, elas são importantes e até fundamentais, muitas vezes deixamos de perceber o que de mais profundo implicam nelas, o pensamento e a cultura que estamos imersos e que apontam aceleradamente para uma policrise.
A palavra cunhada por Morin foi retomada em uma entrevista ao Le Monde, onde ele enfatizou: “A crise da saúde desencadeou uma engrenagem de crises que se concatenaram. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, passando pela economia, do individual ao planetário, passando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um minúsculo vírus em um vilarejo ignorado na China desencadeou a perturbação de um mundo”(Le Monde, em 20 de abril de 2020).
Em seu livro VI do Método: a ética, ele explica: “Nossa civilização separa mais do que liga. Estamos em déficit de religação e esta se tornou uma necessidade vital”, assim não como não pensar em coisas do alto: a empatia, a civilidade, a cordialidade e outros valores que aos poucos foram se perdendo e nos embrutecendo como civilização.
Como pensador complexo o seu pensamento é antidisciplinar (no sentido de especialidades rígidas) e transdisciplinar (no sentido de recuperar o todo perdido em fronteiras rígidas do pensamento que definem apenas um aspecto da vida).
Os operadores do pensamento complexo (o livro Introdução à Complexidade é fundamental) é como diz a própria palavra intrincado e abrangente, porém destaco dois pontos essenciais ao seu método, o aspecto dialógico e hologramático.
O dialógico considera a união de termos opostos e contraditórios como complementares, por exemplo vida e morte, este paradoxo é vivido no sentido sagrado nesta semana de Páscoa, embora não se limite ao religioso, pode e deve ser pensado no existencial e político.
O hologramático destaca que o aparente paradoxo dos sistemas são partes componentes de um todo (na figura a formação do universo), assim como cada parte tem prefigurado um aspecto do todo, o exemplo mais comum é o do caleidoscópio, porém o do corpo humano também é interessante, cada parte é viva pelo funcionamento do todo e auxilia o todo a funcionar.
Nos comportamos como torcidas fanáticas e desinteressadas do todo por exercer de modo demasiado uma cultura material, puramente terrena e humana que torna o todo, o alto e o divino inconcebíveis no dia a dia.
A justiça política e a inocência
A moral do estado foi desenvolvida junto com a concepção contratualista histórica através de Thomas Hobbes (1588-1679) em especial no seu Leviatã, John Locke (1632-1704), fundador do empirismo e Jean Jacques Rousseau (1712-1778), para ele o homem nasce bom e a sociedade o corrompe.
No contrato social os direitos individuais são transferidos ao poder estatal por um contrato e assim pode-se afirmar que é a raiz do princípio in dubio pro societate (na dúvida defende-se a sociedade), não há presunção da inocência.
A transferência de poderes para o estado transfere também o fim da inocência que implica não permitir o desenvolvimento emocional da criança e do adolescente em ambiente familiar, e assim a discussão da idade penal passa a fazer sentido, e todo conceito de justiça torna-se político.
O desenvolvimento contemporâneo do contratualismo está no filósofo John Rawls (1921-2002) para o qual não é possível uma concepção metafísica da moral, ele desenvolve o conceito de “justiça como equidade (justice as fairness) apresentado em seu livro “Uma teoria da Justiça”.
John Rawls influenciou profundamente o pensamento de Michael Sandel que é um dos pensadores atuais mais influentes na cultura de justiça do ocidente e assim herdeiro do contratualismo, e ambos são herdeiros da concepção kantiana de moral.
Um dos raros autores a analisar esta posição foi Paul Ricoeur (1913-20050 em seu livro O Justo (Vol. I), dedicando boa parte do texto a análise de John Rawls e desenvolvendo a ideia do direito em sua posição peculiar, um meio caminho entre a moral e a política, sem a qual ela é utilitária e não por acaso sofreu profunda influência do pensamento utilitarista de John Stuart Mill (1806-1873).
Não é possível equidade sem relação humana pessoal, afirmou Ricoeur: “A virtude da justiça se estabelece com base numa relação de distância com o outro, tão originária quanto à relação de proximidade com outrem ofertado em seu rosto e em sua voz” e isto não é exato nem pragmático.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997
RICOEUR, P. Le Juste 1. Paris : Éditions Esprit, 1995.
SANDEL, M.J. Como fazer a coisa certa. São Paulo: Civilização Brasileira, 2013.
Inocência e direito
Em outra postagem já traçamos diferenças entre inocência, ingenuidade e ignorância, a primeira que é algo que desconhecemos, entretanto percebemos o mal (ou bem) que há no ato, a ingenuidade é quando desconhecemos o efeito de um ato que pode provocar e a ignorância é quando desconhecemos que existe um mal em um ato praticado.
Tratamos em um post feito a algum tempo esta situação, e no post anterior sobre a guerra atual.
A violência é o mal praticado com intencionalidade, e neste caso vai além de um dolo e em geral é vitima de algum ódio, vingança ou mero destempero, há na violência sempre algo de ignorância.
Alguns autores trataram isto filosoficamente e aí há quem veja na inocência um “perigo” no qual seria possível alguma adesão a algum mal praticado, Nietzsche via desta forma, porém para autores atuais isto é visto a partir da ideia jurídica de presunção da inocência, in dubio pro reo (na dúvida, em favor ao réu).
O pensamento que se opõe a este é o in dubio pro societate, neste caso o promotor de algum ato ilícito deve oferecer denuncia em favor da sociedade, os argumentos contrários estão na decisão dos valores da dignidade e direito a liberdade, e aqui está a presunção da inocência.
Para idealistas como Kant, o indivíduo é dotado de razão e dignidade, assim realizar uma ação por um motivo exterior às suas causas e não por ser o certo a se fazer e isto vai a favor da liberdade.
Por isto Bauman vai discutir a mixofobia, isto é, o desejo de opor-se aos diferentes, estranhos ou as minorias, quanto mais o mundo se torna global e plural isto deve aparecer em doses maiores.
Na visão de Bauman isto estaria aumentando o medo nas cidades, se vivesse estes tempos de pandemia e polarização talvez percebesse com maior clareza que há um problema de base maior, aquele que vem de culturas e ambientes onde é incentivado o desejo de isolar-se do diferente.
Um dos maiores conferenciais neste tema, reúne grandes públicos em suas palestras é Michael Sandel, veremos depois, porém Freud de certa forma antecipou isto no Mal estar da civilização: “Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como método mais tentador de conduzir nossas vidas, isso porem, significa colocar o gozo antes da cautela, arrecadando logo seu próprio castigo.”
Vive-se sobe riscos globais, nela tudo pode transformar-se em situações explosivas e violentas.
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Traduzido do alemão por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986
SANDEL, Michael. Justiça: O que é fazer a coisa certa. 17 ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2015.
Serenidade e o pensamento que calcula
O livro “A Serenidade” de Heidegger vai dividir o pensamento contemporâneo entre o que calcula e o que medita, sobre o que calcula afirma:
“O pensamento que calcula (das rechnende Denken) faz cálculos. Faz cálculos com possibilidades continuamente novas, sempre com maiores perspectivas e simultaneamente mais econômicas. O pensamento que calcula vai de oportunidade em oportunidade. O pensamento que calcula nunca para, nunca chega a meditar.” (p. 13).
Ele argumenta que não se trata de uma meditação “elevada”, todo homem pensa e o pensamento pode levar a meditação, basta meditar sobre o aqui e agora que está a nossa volta.
Heidegger lembra que todos devemos pensar sobre nossas raízes, dito de modo mais contemporâneo não negar nossas origens e suas influências em nossa visão de mundo, mesmo que limitada, afirma: “o enraizamento (die Bodentändigkeit) do Homem actual está ameaçado na sua mais íntima essência. Mais: a perda do enraizamento não é provocada somente por circunstâncias externas e fatalidades do destino, nem é o efeito da negligência e do modo superficial dos Homens. A perda do enraizamento provém do espírito da época no qual todos nós nascemos” (p. 17).
É isto que faz Heidegger e outros filósofos atuais analisar os fundamentos do pensamento atual, Edgar Morin também fala desta necessidade de superar este pensamento alertando para a visão contemporânea da educação.
A mais atual e surpreendente visão de Heidegger, publicada em 1955, é a característica de nossa época onde “a mais atormentadora é a bomba atômica”, ele percebe que o pensamento que calcula vê apenas as possibilidades industriais e liberação das energias da natureza, porém o filósofo medita sobre o que significa este domínio.
“O poder oculto na técnica contemporânea determina a relação do Homem com aquilo que existe. Domina a Terra inteira. O Homem começa já a sair da Terra em direção ao espaço cósmico …” (p. 19), que além de ser incrivelmente atual tinha também um presságio sobre o futuro.
Mas não deixou de ver o perigo destas “grandes energias atómicas”, e assim: “assegura à humanidade que tais energias colossais, subitamente, em qualquer parte – mesmo sem ações bélicas -, não fogem ao nosso controle, e “tomam o freio nos dentes” e aniquilam tudo ?” (p.20).
Vimos os acidentes de Chernobyl e Fukushima (foto) esta perda de controle, agora vemos a uma guerra que aponta para o uso bélico destas forças, Heidegger tem razão ao pedir serenidade e meditação.
HEIDEGGER, M. Serenidade. trad. Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
Clareira: método e contestação
É através da fenomenologia que é possível retomar a positividade do ente em relação à única transcendentalidade possível, onde a coisa se abre na dimensão do transcendental aquela que no post da semana passada desenvolvemos e que de certa forma é oposta ao transcendente de Kant, que vai em direção ao conhecimento do objeto e por isto se confunde com a subjetividade.
Na fenomenologia há uma consciência intencional em seu “a priori”, tomado de forma parecida ao subjetivo (próprio do sujeito), porém a consciência como fenômeno deixa transparecer o que está encoberto, o que os gregos chamavam de “alétheia”, porém naquele momento a ciência e toda a consciência dela era inicial.
Na experiência fenomenal da clareira (lichtung) ocorre a verdade do ser que se doa com uma espécie de “arqui-fenômeno” (Ereignis), esta é a coisa mesma da fenomenologia, onde está a sua intencionalidade, mas também esta permanece oculta.
Se fazemos um vazio na consciência de forma fenomenal (o époche fenomenológico), nos abrimos a nossa verdade podemos entrar numa clareia antes mesmo de uma evento externo nos aclarar, esta é a razão do humanismo tanto em Heidegger como em Sloterdijk estarem presos ao histórico, presos a nossa cosmovisão limitada.
Foi Hans Georg Gadamer que desenvolveu “A questão da consciência histórica” em sua contestação da verdade histórica romântica que é uma quase-determinismo defendido por muitas variantes do pensamento de esquerda (Marx não a defendia), porém há a questão do “tempo natural” em oposição ao “tempo humano”, uma autopercepção da própria consciência.
O método do círculo hermenêutico é uma forma de romper esta concepção de consciência apenas “temporal”, porém se esbarra no que deve ser o “além do humano”, envolto de mistério e vícios de interpretação histórica.
Diz Rüsen (2011) que há um tipo de consciência histórica feita por meio da “transformação intelectual do tempo natural em tempo humano”, entendendo o tempo natural como eventos contingentes e tempo humano como representações humanas da própria vida.
Poucos conseguem ver nas próprias representações falseamentos da verdade, interpretações e sentimentos reprimidos que não “clareiam” a consciência, isto visto num panorama civilizatório transforma conceitos autoritários, desumanos e destrutivos em obscurecencia da consciência, para não usar novamente a alethéia grega.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Tradução Estevão de Rezende Martins. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2001.
A civilização e a clareira
O mérito de Heidegger ter escrito sobre a clareira em pleno período pós guerras mundiais, foi o de voltar a contemplar aquilo que essencialmente estava obscurecido: O Ser, não só o ser humano, já que suas Cartas sobre o Humanismo foi polemizada por Peter Sloterdijk (bem mais tarde), mas principalmente por retomar a questão da Vida do Ser.
Diz a leitura Heideggeriana: “O destino se apropria como a clareira do ser, que é, enquanto clareira. É a clareira que outorga a proximidade do ser. Nessa proximidade, na clareira do Da lugar, mora o homem como ex-sistente, sem que ele já possa hoje experimentar e assumir esse morar” (em Cartas sobre o Humanismo, 1967).
Esta clareira é diferente de qualquer ideia sobre a modernidade, como iluminismo ou algum processo místico de iluminação, diz Heidegger: “”… o claro, no sentido do livre aberto, não possui nada de comum, nem sob o ponto de vista linguístico, nem no atinente à coisa que é expressa com o adjetivo luminoso’, que significa ‘claro'”, em outro escrito seu sobre a tarefa do pensamento.
Volta a ser importante em meio a ameaças de guerra (veja nosso post anterior), o pensar e o desejo de transformação política e social não pode deixar submergir a ideia do “Ser”, o fato que somos e que a morte e a guerra escondem este verdadeiro propósito, que é a vida do Ser.
Este livre aberto significa que podemos diante de uma situação de negação do Ser, ter a visão do que é ex-sistente, não como iluminação, mas coo visão real daquilo que está em nossa presença, na filosofia grega o nosso “ón”
Não se trata de revelação, mas sim de “desvelação”, isto é, algo que está sempre presente em nós, mas oculto e quase dormente, retomando a leitura de Parmênides sobre o Ser, escreveu Heidegger: “Na medida em que o ser vige a partir da alétheia, pertence a ele o emergir auto-desvelante. Nós denominamos isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira “, entendendo iluminação aqui como visão e não como “esclarecimento” e aletéia como não-esquecimento (a-lethe).
A crescente barbárie não é fruto só das questões sociais emergentes ou da disputa política territorial, mas da ocultação do Ser.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 61.
O poder na concepção atual: finitude
Sem dúvida um dos livros mais esclarecedores sobre a questão do poder foi escrito por Byung Chul Han, não só por estar no contexto atual como ela excelente revisão filosófica que faz.
Embora passe por diversos outros autores: Nietzsche, Hegel, Heidegger e Luhmann, entre outros, é sua oposição a Foucault que estabelece a melhor relação, sua psicopolítica se opõe a biopolítica de Foucault, não há dúvida que a sociedade atual há (pela propaganda midiática) forte pressão.
No entanto, no início do livro ele usa uma definição de Max Weber que penso ser mais exata, e a desenvolve assim: “poder significa na oportunidade, no interior de uma relação social, de impor a própria vontade também contra uma resistência, não importante em que tal oportunidade esteja baseada” (Han, 2019. 22, citação de Economia e sociedade, de Weber).
Depois disto conclui que o conceito de poder é sociologicamente “amorfo”, então o substitui elo conceito de “dominação” (já postamos aqui algo sobre isto), que é “obediência a uma ordem, que é sociologicamente “mais preciso”.
Porem será quando recupera o conceito “espacial” (ou territorial) e “temporal” (um mandato por determinado tempo que de fato esta precisão é, ao nosso ver, realmente alcançada.
Para entrar na questão do poder do ponto de vista de religião retoma-a a partir de Hegel, e o que ele considera como “espírito”, e que na concepção do filósofo esta totalmente dominada pela questão do poder: “Deus é poder” (pg. 121), e o que define como espírito não é outra coisa senão a subjetividade humana (vem do dualismo idealista) e assim encerra-se também dentro da finitude do próprio homem, não há nada além e maior que a finitude tempo-espacial humana.
Diz Hegel que a religião baseia-se “no anseio por uma ausência de limites, por uma infinitude que, entretanto, não seria o poder infinito” (pg. 123), e o que lhe retira o pecado da ignorância é que ele afirma, dizendo dos seus verdadeiros limites não é uma vontade ilimitada por poder: “A religião é fundamentalmente profundamente pacífica. Ela é bondade” (pg. 124).
Entretanto vê isto como uma “pura concentração de poder”, quanto é o contrário, lembram várias leituras bíblicas “Lembra-te que és pó e ao pó voltaremos” (Genesis 3,19) e assim nem é difícil ver que Deus fez o homem do barro (claro, eram estruturas metabólicas capazes de duplicação, mas a água é elemento vital) e nem é difícil saber que ao retornar a um outro plano fisicamente voltamos a ser poeira inorgânica.
A quarta-feira de cinzas, no rito cristão, é para lembrar esta finitude humana e dar humildade ao poder que o homem julga ter, ele será sempre finito e espacial.
HAN, B.C. O que é poder. Trad. Gabriel Salvi Philipson. RJ: Petrópolis, Vozes, 2019.