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Arquivo para julho, 2020

Não há cidadania sã sem areté

31 jul

A construção da sabedoria (episteme) e da virtude (o areté grego) no combate a doxa (mera opinião da verdade relativa) e aos sofistas, que apesar de sábios estavam corrompidos pelo gosto do poder, pelas paixões e pelos instintos, fizeram Sócrates, que o conhecemos a partir dos diálogos de Platão, e do próprio Platão construir um modelo novo de cidadania que precisava de educar, sair da Caverna para a luz e de organizar o conhecimento para o verdadeiro Bem.

É fato que o sentido de excelência foi adotado por autoridades do Estado, porém a sua origem etimológica continua válida e defendê-la é sim defender o bem, senão caímos no relativismo sofista, qualquer verdade e qualquer argumentação é válida, a maiêutica socrática é ainda válida e perguntar é dialogar.

Martha Nussbaum, uma das mais renomadas filósofas atuais na antiguidade clássica, apontou em seu livro A fragilidade do Bem: “… a indolência, o erro e a cegueira ética causam inúmeras tragédias”, são aspectos relevantes que os democratas devem lembrar para a defesa da democracia e o risco de que os sofistas modernos tomem o poder e manipulem as opiniões, não se tratam apenas de fake-news, posições equivocadas e autoritárias, é preciso defender valores de verdadeira cidadania, a areté (na figura, a escultura em Éfeso).

Já explicamos o sentido bíblico da rede, da pescaria e o lançar as redes, em outra passagem após retornar do mar da Galiléia Jesus e os discípulos se encontram com a multidão, e sendo o lugar deserto os apóstolos pensam em dispensar a multidão por falta de alimento, mas Jesus diz para ver o que havia de alimento e faz o conhecido milagre da multiplicação dos pães e peixes, a partir de 5 pães e 2 peixes.

É claro que a virtude cristã está além da proposta pelos gregos, estende-se a moral pessoal e a compreensão da misericórdia, porém não exclui a aretê cidadã e de domínio dos instintos e das paixões, nos dias atuais tão afloradas e atingindo mesmo os religiosos, má leitura da multiplicação dos pães e peixes que está mais relacionada a aretê cristã que a polis, pois estavam “num lugar deserto” (Mt 14,15), isto é, uma espécie de “retiro”.

A virtude da compaixão é necessária para a distribuição dos bens, o processo de concentração de riqueza se acelerou com a pandemia, sem recolher os poucos pães e peixes que restam de uma economia em crise para socorrer milhares que estão famintos, sem emprego e muitos sem esperança, esse deverá será a verdadeira nova normalidade se quisermos dias melhores, só se houver dias melhores para todos sem esquecer os milhões que perderam empregos, esperança e familiares nesta pandemia.

 

Areté. virtude e ética do Estado

30 jul

A ética da antiguidade clássica tinha assim duas bases a aretê, a virtude (entendida como formação cidadã mas com valores morais) enquanto a ética dos sofistas que fez a democracia grega entrar em crise defendia uma verdade relativa e o homem entregue as suas paixões e instintos.              

No início do período romano estas duas correntes reaparecem com os neoplatônicos, epicuristas e estóicos de um lado defendendo uma moral ascética e de outro lado pensadores como Cicero e Lucrécio, que vão um conjunto de leis e direitos no período do império romano, do qual o direito moderno tem forte influência, é o que demos o nome de ética do Estado, para diferenciar ao conceito de ética da cidade-estado de Platão e Aristóteles que defendiam também as virtudes, a aretê grega.

Embora não se possa fazer uma clara alusão aos sofistas no período do império romano, seus pensadores são legisladores, os neoplatônicos são correntes fora do poder e se refugiam em pensadores cristãos e muçulmanos, como Santo Agostinho, Alfarabi e alguns pensadores estoicos que trariam influências no poder romano, como Sêneca que foi preceptor de Nero, embora defendam a virtude não defendiam uma moral ascética.

As influências epistêmicas surgem neste período, tais como a querela dos universais de Boécio e mais tarde Abelardo, Duns Scotto e Tomás de Aquino, vão retomar questões sobre o ser e a essência, a existência de Universais (o que chamamos de conceito) ou apenas de particulares.

No tratado sobre as virtudes Tomás de Aquino fez a diferença entre virtudes morais e intelectuais, considerando que o santo filósofo fez uma revisão da ética aristotélica, incorporando valores cristãos, enquanto as virtudes morais aperfeiçoam os aspectos especulativos e práticos, as virtudes morais vão aperfeiçoar as potencias apetitivas, nome dado as paixões e instintos cuja discussão vem desde o período dos sofistas.

A moral idealista vai seguir a máxima kantiana: “age de tal forma que possa se tornar uma lei universal”, enquanto cria o sujeito transcendental fora de qualquer característica religiosa, ele possui uma capacidade cognitiva subjetiva tendo: a razão, o entendimento (das categorias) e a sensibilidade (formas puras de intuição, espaço e tempo), a partir desta moral que Hegel vai elaborar a moral do Estado.

Na linha da moral Kantiana, Hegel vai elaborar a eticidade, elaborada sobre a questão da “autodeterminação da vontade”, não mais na subjetividade ou no transcendental, e sim o desdobramento objetivo das vontades livres, assim é o Estado é o regulador das vontades livres, e eticidade é uma qualidade da ética, que fica no campo privado, e que a qual o Estado através de suas leis pode torna-la objetiva, assim as qualidades morais interiores e as virtudes valem apenas para estes aspectos e segundo as determinações do estado que pode interferir na vida subjetiva.

O relativismo moral e da verdade que surge a partir de um direito objetivo e de uma eticidade elaborada segundo leis do direito e estas ligadas aos interesses do Estado.

 

Sofistas modernos e a sabedoria prática

29 jul

Os sofistas acreditavam na educação e no bom, porém o bom era relativo e um código de ética impediria atingir o que satisfaz os instintos e paixões humanas, enquanto que Sócrates vai elaborar a felicidade como um conjunto de virtudes (em grego aretê, que significa ao mesmo tempo excelência moral e política, hoje em campos opostos), e seu método a ironia e a maiêutica.

Os sofistas modernos podem ser vistos em três correntes, os céticos que não acreditam em verdade e pensam a felicidade como bula de remédio (a ética são apenas contra-indicações), os pragmáticos que recuperam o sentido original do “bom” para sofistas sem virtudes, e os retóricos, também a moda dos sofistas originais, numa boa oratória dizer o óbvio (e esconder os problemas e a doxa, mera opinião).

Já explicamos em outro post, que ironia não tem o sentido de hoje próximo ao ceticismo, são exatamente opostos na origem grega, vem da palavra grega eirein que significa perguntar, assim por sucessivas perguntas em uma discussão Sócrates levava seu oponente a contradições, a segunda parte de seu método é a maiêutica que é a arte de parir, então o que no fundo o método socrático queria pela ironia era levar o oponente ao perceber seus pré-conceitos obter a capacidade de refletir, e assim de parir ideias próprias que o conduzissem a verdade.

Mas retornemos a felicidade que os sofistas assim como a verdade diziam não ter formulas, mas apenas maneiras de satisfazer suas paixões instintos, assim a ideia da virtude política e ética ao mesmo tempo pretendida por Sócrates era também ilusória já que era natural a paixão destinada ao poder e a posse de seus benefícios instintivos.

Platão como discípulo de Sócrates, na verdade o que se sabe de Sócrates está em Platão vai refutar o sofista Protágoras, e o diálogo vai se dar em torno da virtude se ela é ensinável ou não, e isto foi ponto fundamental para o nascimento da escola Platônica, segundo historiadores aproximadamente entre 384-383 a.C., localizados em jardins nos subúrbios de Atenas (na foto um mosaico de Pompéia, agora no Museu Arqueológico de Nápoles) .

O objetivo era educar os homens para serem cidadãos e assim combater a decadência da democracia grega provocada pela escola dos sofistas, da mera opinião e da verdade relativa, por baseia-se naquilo que vai do sensível ao inteligível, a dialética da escola platônica baseia-se nisto, onde vai ser essencial a superação da doxa, a mera opinião e a construção da epistéme, o conhecimento organizado construído em verdades universais.

A evolução dos diálogos, principalmente na República de Platão, mostra a evolução dialética (não é nem poderia ser a hegeliana por razões históricas) dos termos da episteme até se constituir em uma estrutura ética que leva a formulação de leis, porém a ética como conhecemos hoje vem da escola de um dos alunos de Platão, Aristóteles que elaborou “A ética a Nicómaco” uma concepção teleológica e eudaimonista (Eudaimonia era a felicidade para os gregos antigos), em torno de uma racionalidade prática, o que os gregos chamavam de phronesis (Frônese em português) um dos elementos da ética.

Aristóteles elabora então a sabedoria como uma virtude do pensamento prático, ou apenas sabedoria prática, o objetivo é descrever os fenômenos da ação humana através do exame dialético das opiniões, resíduo do método socrático, mas para descobrir neles princípios imutáveis, assim é possível superar a doxa e chegar ao conhecimento a episteme, pode-se descrever esta dialética como conhecer-entender-conhecer.

Mais tarde Aristóteles. um dos alunos de sua escola platônica, vai fazer seu Liceu, que essencialmente era feita caminhando, por isto chamada também de peripatécnica, mas escola tenha um gynasium para exercícios físicos, e também para socializar os conhecimentos adquiridos.

A hermenêutica filosófica de Gadamer vai reelaborar a Frônese sistematizando o círculo hermenêutico de Heidegger, criando uma filosofia hermenêutica.

 

Sofismas e fake-news

28 jul

O sofisma é uma sabedoria usada por conveniência em alguma situação, pode ser por exemplo o politicamente correto, ou pode ser para favorecer grupos de interesses o que tem maior correspondência com a origem histórica da palavra.

Eram contemporâneos de Sócrates, que se opunha a esse saber utilitário, os sofistas eram pensadores que viajavam de cidade em cidade realizando discursos para atrair estudantes e cobravam taxas para oferecer-lhes educação, qualquer semelhança com as mídias modernas não é coincidência.

Os fake News são noticias falsas, teorias da conspiração e mitos que devido a facilidade da comunicação se espalham de maneira muito mais rápida, porém as meias verdades de sofistas que se espalham por vendedores de sabedoria e máximas sem comprovação científica e histórica também existem hoje, é só verificar o preço de alguns palestrantes que falam de tudo, até mesmo do que nunca estudaram.

Os que vendem a felicidade com fórmulas mágicas, o sucesso fácil, modelos de gestão que não consideram a crise pandêmica, embora seja verdade que muitos ganham dinheiro com ela, a felicidade está longe da camada humilde do povo, a maioria honesta terá dificuldades para colocar seus serviços e produtos no mercado, mesmo com uso do virtual, pois a realidade é que a economia está em recessão mundialmente e muitos socorros e solidariedades serão necessários.

O que é preciso dizer é que a notícia fácil, o sucesso fácil e explicações pouco profundas não são muitas vezes verdadeiras, os que buscam facilidades e simplismo caem nesta armadilha, mas isto aconteceu em toda história, Karl Kraus reclamava nos anos 20 que a imprensa construía uma guerra e ela aconteceu, podemos estar construindo outra, e o fermento da crise e das dificuldades humanas vai auxiliar esta guerra acontecer.

Mesmo que desejamos a paz, espalhar noticias falsas é criar radicalizações, estopim para pequenas guerras que polarizadas se tornam grandes guerras, há pessoas bem intencionadas que fazem isto, denúncias infundadas e meias verdades estão aí, assim na origem de um fake-news está um sofisma, muitas vezes construído por gente inteligente que não devia favorecer a ignorância.

Ditadores sabem que a ignorância os favorece, mas também aqueles que sabem o horror das ditaduras e das guerras podem favorece-las com meias verdades, para facilitar a exposição de um posição social, cultural (inclui-se aqui a religiosa) e política é mais fácil atirar uma meia-verdade, todos desta ou daquela posição são corruptos, fascistas ou comunistas, porém isto é início de uma pequena guerra.

A verdade custa um preço pessoal muitas vezes caro, mas favorece a que lá na frente a guerra não seja feita por motivo injusto, por uma pedra ou um tiro atirado que atinja um inocente, as nossas pequenas “guerras” diárias contra a diversidade de opinião, não são diálogos e não favorecem a paz, no pós-pandemia precisarem de muitas solidariedade e a boa vontade de todos para superar as dificuldades, não há felicidade nem paz fácil.

 

Como viver a crise e o platô estável

27 jul

Edgar Morin e Patrick Viveret escreveram em 2010 “Como viver em tempo de crise” (edição em português da Bertrand de 2013), e certamente não pensavam numa pandemia, porém já viam um horizonte difícil para humanidade, e certamente este horizonte foi agravado.

Assim filósofos e outros tipos de visionários que tentam ver um futuro tranquilo não tem um fundamento, ou até podem ter, mas baseados em filosofias e pensamentos já superados, a pandemia exigirá ainda mais dos grandes estrategistas e pensadores humanitários.

Na página 37 do livro mostra os sintomas da crise: “Wall Street conhece apenas dois sentimentos, a euforia e o pânico”, mesmo sem saber é assim que pensam os que prometem “felicidade”, mas é falsa e a ela se seguirá a depressão, uma análise mais sensata pode preparar o desafio que vem.

O platô estável chegou, em termos de mortes pois os dados de infecção são imprecisos, mostram estes picos, agora caminhando para um platô estável não só no Brasil, mas no mundo como um todo, isto porque o ciclo de infecção chegou a todo planeta, e no Brasil a todo país.

O ciclo pode ser realimentado porque não como isolar polos de infecção, mesmo países sem novos ciclos poderão ser afetados, mas observe-se que Nova Zelândia e Taiwan são ilhas, então com o isolamento por mar, são mais controláveis, porém o comércio também pode afetar estes países.

Edgar Morin e seu colaborador citam no livro “três mutações” importantes na crise e que valem para a situação social da pandemia, pois elas representam o mundo antigo, o mundo “estados-nação, da sociedade industrial, de uma organização segmentada (veja os conflitos EUA x China) … o desafio ecológico coloca a pergunta sobre o que vamos fazer com nosso planeta?” (pag. 57).

A revolução industrial colocou a vida num modo de viver frenético, “a sociedade industrial clássica se organizava em torno do sésamo clássico ´o que você faz da sua vida?´”, e que continua a ser uma pergunta que nos interroga a todos, o recém lançado em português “Tens de mudar sua vida” de Peter Sloterdijk coloca isto em torno da antropotécnica, trazendo ao debate a questão técnica.

Ambos apontam para a dupla face da crise: perigo e oportunidade, com respostas diferentes, no entanto o que devemos pensar indicam Morin e Viveret: “o que faremos do planeta, com nossa espécie e com nossa vida” (pagina 54), e dá uma resposta universal e possível: “na esfera de desenvolvimento da ordem do ser, mais que de um crescimento na ordem do ter” (pag. 55), enquanto Sloterdijk indaga se o humanismo não morreu.

O livro apesar da defasagem história é muito atual, e aponta para questão do além pandemia.

MORIN, E.; VIVERET, P. Como viver em tempo de crise? Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2013.

 

A escatologia do bem

24 jul

Assim como qualquer cosmovisão tem alguma alegoria para o princípio e fim, no caso da cristã o Genesis e o Céu e Inferno, e outras propõe que nascemos de plantas ou animais, ou que voltamos a vida através da reencarnação, o bem possui sua escatologia, enquanto o mal uma “estrutura” simbólica.

Não é definição de visões religiosas apenas, também na filosofia clássica Platão na República e Aristóteles na Ética a Nicômaco trataram da questão e já fizemos alguns posts aqui, porém foi Demócrito que definiu de maneira mais próxima a nossa atual, ao dizer que o bem depende do desejo interior do homem, o homem bom não apenas pratica o bem, mas o deseja sempre.

Assim é na história humana também, sem determinismo ou romantismo histórico caminhamos para o bem se exercitamos a partir do interior de cada homem, mas praticando socialmente, aquilo que os gregos chamaram de “virtude”, mas também temos o ciclo vicioso do mal.

O ciclo vicioso do mal leva a uma “crise” do bem, o mal simbólico pode se estruturar de tal forma que determinada estrutura social pode levar a um fim, pode ser o fim de uma época que é muito trágico, mas pode também levar a uma crise civilizatória grave se não se encontra uma saída.

A humanidade sempre encontrou saídas, isto dá esperança, porém as tragédias fazem parte da mudança, e a gravidade da tragédia depende da resiliência do bem, embora frágil é ele que pode indicar o caminho novo, uma saída para a cidadania terrena, para o futuro civilizatória humano.

A leitura bíblica indica três metáforas para a escatologia do bem, e compara o “reino dos céus” (Mt 13, 24-43) com o plantio do joio e do trigo que crescem e que só no final escatológica deve ser colhido e separado do mal (o joio), a segunda parábola o grão de mostarda, a menor das sementes, que dá uma arvore bela e frondosa onde “os passarinhos vem fazer seus ninhos”, e a terceira é uma receita de pão, uma mulher mistura três porções de farinha.

A terceira “parábola” a mulher mistura três porções de farinha, uma parte só deve ser fermentada, seriam aqueles que tem a virtude do bem e ela deve ser praticada de forma a produzir boa fermentação no resto da massa, as outras duas porções, então o fermento é o bem.

O final da leitura diz que um pai tira de seus tesouros coisas boas (a parte fermentada boa) e más então sempre tem-se um “mal simbólico”, é preciso saber se parte boa foi “fermentada”.

 

O bem e o poder

23 jul

O bem é aquele que é um bem comum, é praticamente inconciliável com o poder temporal, aquele que submete o outro pela força, seja de que forma esta submissão, praticas coletivas de impor valores, modos sutis de fazer exclusão e principalmente o exercício da força bruta.

Vale uma definição de Max Weber: “como cada chance de impor, dentro de uma relação social, a vontade própria mesmo contra relutância, não importando em que essa chance se baseia” (Weber, 1922) está no primeiro capítulo do livro “Economia e Sociedade” cuja edição alemã é de 1922, outra definição interessante é a de Hanna Arendt: “Conceitualmente falando, isso significa: o Poder é, de fato, essencial a todos os estados, inclusive a todos os tipos de grupos organizados, ao passo que a violência não o é” no seu livro de 1960 que é sobre a “Vita Activa”, mas que na tradução para a língua portuguesa e inglesa tornou-se “A condição humana”.

Se é possível que o bem comum se estabeleça, aceitando a condição de Hanna Arendt, não será pela violência, e sim pelo poder não-violento, e um breve olhar pela história pode-se observar as consequências da violência como forma de poder, quase sempre novas formas de exclusão e de submissão de alguma parcelas da população, como a unanimidade é impossível, é preciso conviver com a diferença, eis a formula que precede a qualquer bem digno do nome e sustentável.

O ressurgimento do nacionalismo, da polarização ideológica, e principalmente o retorno a formas de violência que pareciam aos poucos banidas da sociedade, mostram a crise do humanismo, que não se iniciou hoje, mas no início do século passado e tendo como testemunha duas guerras.

Imaginar que algum bem comum possa se estabelecer pela força é portanto contraditório com o que legitima alguma forma de poder razoável e capaz de influenciar a parcela consciente da sociedade, toda outra forma é destrutiva e dificilmente poderá se sustentar, mas os limites da força são hoje assustadores: as possibilidades nucleares e o uso de máquina “inteligentes”.

Apostar no confronto e no conflito mostrou-se no passado de duas guerras e de várias guerras coloniais desastroso e insustentável, e num futuro mais próximo aquele que levou ao poder os líderes mais violentos e truculentos.

Em tempos de pandemia, e já com um futuro visível de uma vacina, poder-se-ia pensar um total desarmamento e quem sabe com os bilhões gastos em guerras teríamos fundos para reativar as economias e os perigos de um futuro sombrio poderiam ser afastados.

As lições sobre a não-violência e a solidariedade ainda não forma aprendidas, nem na luta comum contra a pandemia, embora sempre permaneça uma esperança por alertas tão claros e definitivos.

 

O mal e a crise do humanismo

22 jul

O idealismo continua a defender seu ideário de Estado, de Ética (moral e virtudes são outras coisas, por exemplo, acabar com as corrupções), agora defender as nações, um Estado mais forte (esquerda e direita no fundo desejam isto) e por isto pode-se falar do zoon politikon, o animal político de Aristóteles, é preciso então entender o que é o animal político.

Há duas condições que pode não tornar-se político: ser degredado (diríamos hoje excluído) ou ser sobre-humano (ou divino, assim de ordem superior as leis e regras humanas).

Esta é a primeira premissa para entender “Regras para o Parque Humano – uma resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo”, não se trata por tanto de ver o homem como “bicho” do zoológico, mas como animal “natural” porém que seu humanismo encontra-se em cheque.

A polêmica que seguiu-se a sua palestra no castelo de Elmau, na Baviera, significava que a tentativa (desde as escolas de Platão e Aristóteles) de programar a história e o humanismo por meio de uma engenharia social faliu, outro tema importante é a questão da “domesticação”.

A domesticação também não é nova, o filósofo recebeu de uma influência direta de Nietzsche, e Foucault também tratou o tema, sua proposta na Conferência que depois virou livro, era a de inverter a prioridade de Heidegger da dimensão ontológica sobre a ôntica (Sloterdijk, 1999,).

A polêmica causa é porque o filósofo se perguntou se não passaríamos da fatalidade “do nascimento ao nascimento escolhido e seleção pré-natal” (Sloterdijk, 2000) que foi o ponto principal da polêmica tentando mostrar isto as ideias nazistas e fascistas do período da guerra.

As questões de manipulação genética, que na Alemanha sofreram restrições rigorosas até 2002 e a liderança da Escola de Frankfurt por Haberrmas foram o pano de fundo desta polêmica, porém o fundamental que é o humanismo de Heidegger e Levinas, tema da conferência de Elmau  é um aspecto principal, esquecido por muitos comentaristas, pois o humanismo está mesmo em crise.

Quanto a resposta de Sloterdijk, ele próprio retorna ao tema de em Esferas I de forma diferente ao falar de manifestação aórgica, o inorgânico sobre o orgânico, afinal o homem veio da Terra até mesmo pela metáfora bíblica, assim do inorgânico barro Deus “soprou” as narinas e introduziu o espírito, gostem ou não, o tema é metafísico e não religioso, e se algo aórgico acontecer.

Hora não será a primeira vez na história, o homem veio depois dos céus, da terra e das águas, novamente também nas diversas cosmogonias (mesmo não cristãs) e também a própria terra já teve outras manifestações, como a que eliminou os dinossauros, porque uma nova não pode ocorrer, e ela nos ajudar a enfrentar a crise de época (ou civilizatória) que enfrentamos.

O tempo é diferente do nosso, o cometa volta depois de 6.800 anos a nos visitar, nem registro dele tínhamos, e quando voltar depois de outros 6.800 anos o que encontra, só Deus sabe, afinal neowise significa “agora”.

 

SLOTERDIJK, P. Regras para o Parque Humano – resposta a Carta sobre o Humanismo de Heidegger, São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

 

O mal civilizatório, além do simbólico

21 jul

Já comentamos em um post o “Mal simbólico”, obra de Paul Ricoeur que deve ser lida em conjunto com “O mal: um desafio à filosofia e a teologia e“, o mal simbólico existe e pode se tornar estrutural, porém numa boa leitura da filosofia significa tornar-se um vício pessoal ou social, assim como a virtude também.

O filósofo Aristóteles diz que a virtude se adquire pelo hábito, se pratica de novo e de novo, até que ela torna-se atitude natural ou social se muitas pessoas a praticam, quando os valores sociais e humanos se confundem o mal se difunde, e assim uma sociedade ou civilização entra em ruina.

Voltar as virtudes é voltar as nossas raízes como seres humanos, por isto não se trata de maniqueísmo, uma luta perene entre bem e mal, porém se o mal simbólico se instala é preciso que retornemos a nossa raiz mais profunda como seres humanos, o fato que quase toda a filosofia contemporânea reconhece um mal estar civilizatório, na psicologia Freud (Freud, 1969) e de Jung (JUNG, 1988), até contemporâneos como Sloterdijk e Byung Chull Han, quase todos também nesta pandemia alertam para atitudes numa crise civilizatória.

Numa leitura rápida de Freud, com a possibilidade de ser um tanto superficial, o mal estar da civilização está igualado ao da cultura, afirma o autor que existe uma dicotomia entre os impulsos pulsionais e a civilização, ou seja, os indivíduos e a sociedade, assim o bem da civilização o indivíduo manifesta em pulsões e vive um mal-estar.

Já Jung aponta para a massificação do homem ocidental, esmagado pelo Estado, e sobre a defesa que cada um tem buscando através da própria personalidade ou da atitude religiosa.

A obra de Morin desde a década de 70 está toda vinculada a ideia de um novo humanismo, e este texto específico sobre o assunto, ele aprofunda o que considera uma ética necessária a este retorno ao humanismo, sua obra essencialmente aponta para os fundamentos perdidos, a instituição do método complexo e uma visão de uma cidadania planetária, nesta texto sobre a responsabilidade pessoal de cada um.

O que Morin, Freud e Jung apontam é a responsabilidade pessoal não pode e não deve depositar nas estruturas sociais, sejam boas ou más, as responsabilidades de cada um.

FREUD, S. O mal-Estar na civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

JUNG, C.G. Presente e futuro. Petrópolis, Vozes, 1988 (tradução Márcia Cavalcanti).

MORIN, E. “A ética do sujeito responsável”. In: Ética, solidariedade e complexidade. São Paulo, Palas Athena, 1998.

 

A pandemia mudou a consciência humanitária ?

20 jul

Em seu livro Ciência com consciência, Edgar Morin lançou a pergunta: “A aventura científica nos conduz à catástrofe ou a um mundo melhor?”, substituímos saberes espirituais e populares e, entretanto, não conseguimos evitar guerra, combatemos uma pandemia, mas e nossa relação humanitária irá melhorar? Quis acreditar que sim, mas parece que não.

Chegamos no Brasil ao prolongamento do Platô, que anunciamos desde o início de maio (post), mas só agora as grandes mídias e as organizações mundiais a reconhecem, e não deve cair até que o platô se estenda por todo território nacional, o que já está acontecendo, vai até o final de julho.

Muitas reflexões surgiram sobre melhorar as relações em família, e muitas melhoraram, diminuir o ritmo acelerado da vida moderna, até diminuiu, mas poucas pessoas parecem dispostas a um novo estilo de vida, a um “novo normal”, a maioria quer voltar a vida anterior: festas, consumo e vícios.

É claro a pandemia apenas acelerou o que já estava em curso, famílias com dificuldades, com a forçada convivência diária pioraram, mas aquelas que não encontravam tempo, agora tem tempo, ajudar as tarefas diárias, mudar a lógica dos relacionamentos polarizados e encontrar o Outro.

Fizemos várias postagens na semana que passou sobre o bem, indicando que sua fragilidade (a filósofa Martha Nussbaum escreveu um livro sobre isto no pensamento na filosofia clássica), mas a fragilidade do bem é diferente da frivolidade, não é nem fútil nem superficial.

Tanto ainda é possível mudar a tendência da pandemia por uma maior consciência e cuidados com a pandemia, como também é possível (antes que seja tarde) a consciência dos problemas sociais e que são de fundo humanitários, respeito aos direitos, a diversidade de opiniões, raças e credos, etc.

Imaginamos que poderia ser mais curto o ciclo da pandemia, e também que o vírus se atenuaria ou outras falsas visões sobre uma pandemia, antes mesmo há quem acredite que ela não exista, no entanto o problema humanitário de fundo é o mais grave e para ele a consciência deve atentar.

Vale a máxima da fenomenologia não existe consciência num sentido abstrato, embora o “mal simbólico” possa criar bolhas nas quais alguns grupos sobrevivem, este é o perigo de uma consciência abstrata não fenomênica, a consciência a pandemia pode nos ajudar a melhorar a nossa percepção e sensibilidade do problema humanitário, que já é epocal (transição de épocas) e poderá tornar-se civilizatório, como riscos de uma desumanização ainda mais grave.

É possível uma mudança que comece a partir de cada atitude, de cada ação pessoal sobre os grandes problemas e cada um deles exige uma consciência fenomenológica, isto é, a dirigindo a interação a aquele problema com seus contornos, limitações e fragilidades.

Podemos inverter a curva humanitária, mas o tempo urge e a pandemia o acelerou.