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Arquivo para a ‘Etica da Informação’ Categoria

A diferença, as guerras e as calamidades

27 mai

Toda leitura nos posts recentes sobre “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” de Byung Chul Han não é mero exercício filosófico, até porque a filosofia para ter retornado aos sofismas de modo mais sofisticado: a narrativa, é porque a ausência de percepção da dor exacerba a dificuldade em entender a dor do outro e a diferença.

Escreveu sobre a dialética de Hegel: “Heidegger usa a palavra ´diferir` para descrever o movimento trágico-dialético da diferença”, e abre aspas: “Mas, na verdade, em Hegel o ente não existe mais, pois todo ente se dissolveu no movimento do conceito absoluto” (pg. 414), e acrescentou: “A “diferença como diferença”, o “diferir”, é o ponto cego da metafísica” (pg. 415), e assim: “A différance é mais contenciosa do que a diferença de Hegel” (pg. 415) e isto explica como o pensamento idealista é mais aferrado a ressaltar sua diferença política do que capaz de entender o verdadeiro significado de tratar o diferente, em especial os excluídos, os inocentes nas guerras, e as dores de uma trágica enchente se torna mais um jogo no campo do poder, que atingir o coração daqueles que podem socorrer as pessoas atingidas.

A diferença “não se articula em “contradições” que existem no espaço da identidade, mas trabalham para manifestações da identidade” (pg. 415), assim trabalham a dor.

Byung-Chul opõe Hegel além de Heidegger também a Derridá, “a diffferance mantém a discórdia […] sem jamais formar uma terceira expressão”, “mantem o contencioso, “sem jamais dar motivo a uma solução nos moldes de da dialética especulativa” (Han, pg. 416 citando Derridá), e diz “o puro jogo da diferença não é nada, nem sequer se relaciona com seu próprio incêndio” (pg. 417), veja o destaque de Han para a cultura ocidental do “relacionamento”, mas a sagacidade do alemão-coreano chega lá: “A subjetividade se produz sempre em um movimento de ocidentalização” (pg. 417).

A busca da “dialética especulativa” é por uma síntese ontoteológica ou ontoteleológica, diria mais a última já que deus de Hegel é inventado, aquele de um absoluto abstrato, mas não distante do Deus triunfante do maniqueísmo, expresso não só nas justificativas de guerras e na différance, o deus ocidentalizado também julga, condena e exclui e faz das leituras sagradas um jogo de conveniência, o luto, a dor e o sofrimento não tem espaço, tudo é poder, alegria e consumo, o reino na mesmice proclamando differance.

“Em torno de que gira a dor de Derridá?”, pergunta Byung-Chul, “Em torno da falta de um nome sagrado?” (pg. 424), diriam os que sim pois nem mesmo o Absoluto, ou o Todo podem ter uma resposta ontológica, talvez entelógica (no sentido de puro ente), mas o autor aponta seu luto como “provavelmente” como a differance, é banal (Derridá diz banalidade).

É a nosso ver, a incapacidade de luto, de renúncia, de compreensão da dor que nos impede de uma visão completa do todo como sagrado, não nos causa luto as mortes inocentes das guerras, das catástrofes naturais e o respeito das diferenças, sem um Sagrado que referencie estes valores, criamos uma coisa, um ente que o substitua.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

O coração, a dor e a verdade

24 mai

O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser”, ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).

Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute  a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, 2023, pg 336).

A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).

Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.

Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).

“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).

“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).

Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A dor e o Ser

23 mai

Dissemos anteriormente, que o capítulo sobre o tema da Voz poderia ser o final, mas como Heidegger o via, e Byung-Chul Han foi fiel, ele é parte do desenvolvimento do Ser, ao falar da dor, assunto que também Han tratou em a “Sociedade Paliativa: a dor hoje” e já fizemos alguns posts, a maneira como tratamos a pandemia e agora as enchentes que atingiram milhares no vidas no Rio Grande do Sul, deve ser ponto de análise e compreensão, numa sociedade que não quer olhar este lado da vida: o sofrimento e a dor.

Não por acaso, Heidegger trata isto ao elaborar sobre Parmênides, onde a ontologia está reduzida ao Ser é e não-Ser não é, para uma lógica A e não-A, não havendo terceira hipótese, ali Heidegger fala de “certa morte (sacrificial) do ser humano: “Mas a forma suprema da dor é o morrer da morte, que sacrifica o ser humano pela preservação da verdade do ser” (pg. 321), assim não estão o sacrifício não é aqui, pois “o sacrifício tem em si sua própria essência e não precisa de objetivos nem de proveito? ” (idem).

No post anterior abordamos o sono idealista, aqui Han cita Foucault indagando “trata-se aqui de certa agonia despertar o pensamento de um “sono antropológico”?” (idem), talvez um despertar antropotécnico ou ainda como preferimos um despertar onto-antropotécnico, uma vez que o esquecimento do ser não é categoria filosófica apenas. 

Ao abordar o vazio do homem moderno, a partir também da leitura de Foucault, Han lembra que Heidegger ao retomar a categoria metafísica “subjectum” que em “sua essência é o homem moderno é o “sujeito” e é exatamente aqui que Heidegger “critica implicitamente o pensamento antropológico” (pg. 322), ela é segundo Heidegger: “a continuação do cartesianismo”, Han citando-o: “Com a interpretação do homem como subjectum. Descartes cria o pressuposto metafísico para a futura antropologia do todo tipo e orientação” (pg. 323).

Assim não é a oposição do homem ao ente, mas a oposição equivocada da modernidade à linguagem: “a preocupação pela linguagem seria preocupação pela morte. Devolver a linguagem ao homem significaria, portanto, devolver-lhe a morte, a sua mortalidade” (pg. 324), e também não se trata do ‘ser’ ou ‘não-ser’ do ser humano” (pg. 325-326).

Para Heidegger o sujeito se reflete no mundo; “a imagem do mundo é de certa forma sua própria imagem especular” (pg. 326), por isso ela esconde o ser, já a dor “dilacera a interioridade subjetiva. Não se perde totalmente. Á dor está associada uma concentração peculiar, que, no entanto, não se estabelece como uma interioridade subjetiva” (pg. 327), embora o autor e Heidegger não o digam é por isto que existe o “sono idealista”, subjectum e ente estão divididos, e “na dor, o pensar se concentra naquilo que dá a pensar … na dispersão concentrada da dor, o pensar voltando-se para fora aprende de cor o exterior – deste lado de cá do saber e da ciência, os quais possibilitariam um aprendizado interiorizante assimilador” (pg. 327).

É importante ressaltar a economia calculista vista por Heidegger: “A dor é do ´por´, não do ´devido a” … o luto não lamenta, não procura preencher o lugar que ficou vazio … o luto sem enlutar só é concebível fora da economia (VIII.3)” (pg. 328).

A dor não é a resignação da interioridade absoluta: “o sujeito que trabalha na identidade, retornando a si mesmo na sua interioridade, assimilando o mundo, é incapaz da dor” (pg. 329), enquanto outros pensadores pararam na angústia ou na busca pela diferença ou ainda pelo sujeito destinado a um “espírito absoluto”, Heidegger vê na dor uma “tonalidade afetiva fundamental da melancolia” (pg. 329), é a tonalidade do ser … da finitude … do pensamento finito, “é o traço idêntico que, como base certa maneira formal, sustenta toda tonalidade fundamental ocupada por algum conteúdo, o traço principal que, enquanto o mesmo, está na base do modo como respectiva afinação” (pg. 330).

Assim a dor, para Heidegger e suponho para Han (ele trata-a de modo um pouco diferente na sociedade paliativa), “a dor não é o olho que chora, ou o rosto contorcido pela fome ou pela tortura”, a dor abre um espaço em que o pensar se torna possível pela primeira vez … um espaço sem traços antropológicos, e do qual o sujeito desapareceu … pensar seria, um dom da dor” (pg. 331).

A conclusão deste tópico: “a fenda da dor arrasta a velada marcha da graça até um advento inutilizado da clemencia” (pg. 332), por isso veneramos o poder, a violência e a falta de visão da verdadeira paz, amor fora das bolhas, egoísmo e enfim falta de “clemência”, pode parecer assunto religioso só, mas é a busca da essência do Ser.

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Espera de esperança é maior que a pressa

22 mai

Alguém escreveu que esperança não seria do verbo esperar, porém Alexandre Dumas escreveu: “toda sabedoria humana se resume em duas palavras: espera e esperança”, assim esperança se articula com espera como confiar com confiança, sinônimo de esperança, como já dissemos em outro post ela se opõe ao medo, a angústia e ao vazio do nihilismo moderno, temas já desenvolvidos na leitura de Byung-Chul sobre Heidegger.

Queremos reler a releitura de Han sobre a Espera ou contenção, o VII 2.3 que começa na página 302, como já dissemos anteriormente este é o ensaio mais longo do autor e talvez (eu penso assim) seus primeiros escritos realmente filosóficos, já que conjuga Heidegger com sua visão de Kant, Hegel, Derridá e Lévinas, este último parece ao gosto do autor.

Chul-Han afirma que este é a tonalidade afetiva inicial do autor, ao escrever seu poema de juventude, em 1910: “em frente ao portão do jardim de primavera / esperamos e escutemos / até que voem as cotovias / até que os cantos e os violinos / o murmúrio das fontes / os prateados / sinos dos rebanhos / se tornem coro universal de alegria” (Han, pg. 302 citando Heidegger), como diz o autor parece “cantada em imagens ingênuos” porém Heidegger tardio parece esperar “o dia do Ser” que também ressoa ingênua, mas “a espera em Heidegger não está ligada a uma data cronológica nem a um evento empírico” … é “um movimento singular, em uma (não) intencionalidade plana, em uma (não-) economia peculiar” (pag. 303), “não espera a reparação de uma deficiência” (idem).

No seminário sobre Heráclito, escreveu Byung-Chul ele faz a diferença entre esperar e ter esperança: “ter esperança sempre inclui contar com algo, enquanto esperar – se nos atemos à palavra – é atitude de conformar-se […] Ter esperança significa “ocupar-se firmemente com algo”, enquanto na espera há o resignar-se, a reserva” (pg. 304) assim penso, na esperança há uma confiança daquilo com que me ocupo.

Porém completa a ideia de espera com contenção, escreverá: paciência e espera são “traços básicos da contenção” (pg. 305), assim ela é articuladora frente a “ausência infinita da contraparte tangível”, “ela é o traço básico da serenidade”, a falta de serenidade contemporânea deve-se em grande parte a falta de espera, de contenção e paciência.

Existe assim uma articulação entre o “ainda não” e o “já”, assim “a espera de Heidegger não pode ser descrita como a intencionalidade de esperar até o fim” (pg. 306), “o nada se dá apenas na espera, que se distancia do impaciente pôr-diante-de-si, da intencionalidade da representação” (pg. 307), nisto Heidegger irá explicar como “a renúncia é uma medida contraeconomica”, afirma citado por Han: “A verdadeira renúncia – isto é, sustentada e lograda por uma tonalidade afetiva fundamental genuinamente expansiva -, é criadora e geradora. Ao permitir que sua posse anterior se vá, ela recebe, e não posteriormente como uma recompensa; suportar em luto a necessidade de renúncia do ceder é em si um recebimento” (Han, pg. 307 citando Heidegger).

O pensar aprende a agradecer aprendendo a renunciar, escreveu Han e citando Heidegger: “A renúncia é um agradecer no não se negar, ai reside a renúncia. Renuncia é ter de agradecer e, portanto, uma gratidão” (pg. 308), teorizamos aqui em inúmeros post a questão do poder, a renúncia é seu posto e oposto, “apenas o dom, que só é possível além da economia, torna o agradecimento concebível” (pg. 309) e assim é uma “retribuição simbólica” “um pensamento não econômico, que se distancia do “entendimento calculista” (pg. 309), “o pensamento grato questiona radicalmente a autonomia do sujeito sem instalar uma instância transobjetiva de poder” (idem) e conclui a “estrutura” “autônoma e transobjetiva restituiria a economia” (pg. 309).

Confiar é assim uma articulação da contenção da espera com paciência na esperança, quem confia é capaz de renunciar e agradecer, e tem nestes dons o seu pagamento.

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A ontologia e a tonalidade afetiva

09 mai

Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista e substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.

Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.

Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.

A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.

Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).

Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.

Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).

Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coação de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.

Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Pluralidade, polifonia e tonalidade

08 mai

Embora Byung Chul Han em sua leitura de Heidegger e sua tonalidade afetiva, descreva apenas de passagem a democracia plural, ao comentar a “polifonia” que Derrida opondo-se à “totalidade não exclui a tonalidade. A justaposição de notas seria equivalente à monotonia de um coração perturbado, que certamente seria distinto do coração atonal” (Han, 2023, pg. 16).

Para desenvolver melhor a questão do estado e de sua pluralidade, aproxima Heidegger da “arte de viver … limitada onde o mundo começa a se povoar com os corações dos outros, onde não nos encontramos mais na proximidade do estético” (pag. 17).

Vai explorar o conflito dos corações de Hegel que pretendia resolver dialeticamente e não aparece em Heidegger (pg. 18), sua “poética” não se identifica “à política do coração” (idem).

Após o fracasso do sujeito do prazer faustiano (Hegel cita Fausto de Goethe), Hegel ao opor o particular com o universal não se reencontra na “ordem universal”, esta abertura imediata do coração para o universal, a universalização do coração faz que a autoconsciência “enlouqueça” e causa uma colisão frontal entre o universal e o particular que fende a consciência (pg. 18).

Gerar esta “singularidade da consciência, que quer imediatamente universal” resultam em esquizofrenia (pgs. 18-19), é um trecho fundamental de Byung-Chul Han capaz de explicar até mesmo as grandes guerras e o momento bélico mundial.

Ela mostra o que acontece com os corações com o “pulsar do coração” para o universal, que se transforma em “fúria de uma presunção desvairada”, postula “o desvario da ordem mundial” (pg. 19), o coração efetivado é repressivo, se efetiva ao reprimir outros corações.

A circuncisão do coração do particular por parte do “espirito” (reivindicado por Hegel), suprassume o particular em favor do universal, “saber a lei do coração como lei de todos corações, e a consciência do Si como a ordem universal reconhecida” (Han citando Hegel, pg. 20).

Heidegger opõe a lei da casa (oikos), do fogo doméstico para além da economia dialética, ela “não deve pisar no palco dos discursos” (Han, pg. 21), esta “disputa sem guerra” (na visão de Hegel) não tem nenhuma semelhança familiar com o conflito dos discursos (pg. 21).

“O coração de Hegel, que na terceira parte da Enciclopédia se torna a sede das sensações, carece de toda objetividade e universalidade” (Han, pg. 22), nela o “coração cego de Hegel só sabe expressar algo “singularizado, contingente, unilateralmente subjetivo” … “é uma reação meramente subjetiva a sensação externa” (pg. 22), e Han dá o antídoto, chamando-o de dom.

O Ser com dom é o “singular por excelência, que, na sua singularidade, é unicamente o uno unicamente unificador, antes de todo o número”, a impossibilidade do número anula a economia da troca (pg. 25).

O que deve ser retomado deve ser dado como um dom, é preciso manter este dom afastado da economia da troca, soltá-lo do circulo econômico da troca”, isto é princípio do afetivo.

Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023

 

A ontologia, Kant e a tonalidade afetiva

07 mai

Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista e substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.

Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.

Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.

A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.

Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).

Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.

Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).

Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.

Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados, aqueles que agora se comovem com a tragédia do Sul (foto).

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

O homem-mundo e o provinciano

03 mai

É possível que alguém tenha um sentimento capaz de abraçar a humanidade em suas diferenças e contradições, se for capaz de abraçar as enfermidades e feridas do outro.

Aquele que é capaz de entender o mundo como um todo, entendendo a complexidade das culturas, dos sentimentos e dos sistemas culturais diferentes, é capaz de abraçar e se solidarizar com as dores da humanidade, este é um homem-mundo.

O provinciano não é capaz de ver além de sua aldeia, pode-se até elogiar o espírito de aparente paz e deleite daquele que vive em um mundo pequeno, ou numa bolha, porém é dali que partem os piores preconceitos, as piores xenofobias e a incapacidade de ver além.

Se Honoré de Balzac dizia: na província se vive em público, agora na aldeia global todos vivemos em público, cada cidadão é portador de uma câmera que pode registrar tudo.

Para ser no mundo um sinal de esperança, em um tempo cada vez mais conflituoso é preciso ir além dos próprios conceitos (que são pré-conceitos) e entender que a lógica da vida social vai se mudando desde que passamos a viver numa aldeia global, a cultura entre pela TV, pelo rádio e pelas mídias sociais, e não há como retroceder, vieram para ficar.

Os pecados e incompreensões que elas deram vazão não são novos, apenas deu-se agora uma visibilidade maior e nos chocamos com uma sociedade com dificuldades de ver o outro com respeito e compreensão.

Aqueles que querem liberdade, apressam em limitá-las, aqueles que proclamam o amor, não querem o mesmo amor fora de suas bolhas, não resolvemos as nossas dificuldades e feridas e ao mesmo tempo aumentamos o clima de incompreensão na humanidade.

Os grandes impérios contemporâneos trabalham culturalmente estas dificuldades, ódio ao diferente, intolerância a cultua do outro, e assim alimentamos no microcosmo a política de um belicismo crescente e que ameaça tomar toda humanidade.

Nunca foi tão urgente o amai-vos uns aos outros, há até os que o proclamam, mas para sua pequena aldeia ou sua bolha provinciana.  

 

Impérios modernos e o trabalho

01 mai

O início da modernidade marcou por uma ruptura entre o mundo prática, objetivo da razão, chamado pelo idealismo de objetivo, e um mundo sensível, do amor, da esperança e da vida equilibrada, onde a natureza humana pode se expressar e se desenvolver, chamado de modo incorreto de subjetividade (o que seria próprio do sujeito).

Não foram poucos autores que a partir do início do século XX passaram a questionar esta divisão do homem em vita activa e vita contemplativa, Hannah Arendt e atualmente Byung Chul Han são os mais lembrados, porém a ideia da contemplação vem da antiguidade, de estóicos e de alguns místicos estudados na Patrística, como Gregório de Nazianzo, (329-390) um dos mestres da contemplação sendo citado por Chul Han.

A palavra trabalho vem de tripalhium, surge de torturas medievais que fazem alusão a tirar as “tripas” ao esforço contínuo sem descanso que vai mercar o início da revolução industrial até a conquista do limite de horas de trabalho e algumas leis mínimas de respeito a vida humana.

Na idade média, é nos mosteiros que nascem os primeiros ofícios, as técnicas de culinária (como os embutidos feitos para preservar a carne), e também as bibliotecas e os copistas que iniciam uma do trabalho humano contemplativo (não é subjetivo), como o lema entre monges beneditinos: ora et labora (medita e trabalha).

É bom lembrar que o trabalho pesado até o surgimento dos mosteiros eram feito por homens “livres” e que muitos monges tinham origens nobres e iam para o mosteiro aprender a trabalhar e também a ler e escrever porque grande parte da humanidade daquele tempo era analfabeta, e também deve-se lembrar o impedimento da miopia e hipermetropia, já que os óculos e as lentes são do final da idade média.

Depois da concepção da moderna indústria e do estado, que também é patrão de empresas estatais, monopólios em países socialistas, que não diferente em exigir eficiência e esforço máximo encarcerando o homem na “vita activa” sem espaço para serem e elaborarem sua vida plena, com espaço para a meditação e o lazer.

Já na revolução industrial inglesa, o Gin (que é a pinga lá) movimentava a capacidade máxima dos modernos escravos industriais privados da vida doméstica, do lazer e da cultura.

O que será a sociedade pós-industrial, pós-modernista ainda é uma incógnita, por hora, os impérios querem o monopólio das forças produtivas para garantir o poder sobre a força de trabalho e não dar liberdade para o pleno desenvolvimento humano, a vida plena é adiada.

O grande dom divino que é a vida e vive-la em abundancia dependerá de grandes mudanças, os impérios lutam para garantir que isto não acontecem, embora digam que é pela liberdade.

 

Os grandes impérios na antiguidade

30 abr

Há sempre uma narrativa histórica e outra bíblica, as datas coincidem, mas as batalhas não.

Um dos grandes impérios da antiguidade foi a Assíria, do século VII a.C. (aproximadamente 721 a.C. até o século 630 a.C. o início de sua queda, eles dominaram grande parte da arábia, conquistando as terras babilônicas, que dominavam o povo hebreu e os caldeus, o Egito, os medos e elamitas.

A narrativa bíblica concentra-se principalmente no período de Sargão e Senaquerib (745-661 a.C.) é desta época que o profeta Isaías narra as palavras de Senaquerib para Ezequias: “eis o que direis a Ezequias: Assim fala o grande rei, o rei da Assíria de onde te vem tanta Confiança , o rei ironiza-o pela aliança que possuía com o Egito e conquistará também aquele povo.

Em Isaías 37, há a seguinte narrativa sobre os anos de sofrimento, seguido da vitória, “este ano se comem restolhos; o ano que vem, aquilo que nascer sozinho; no terceiro ano porém, plantarei e colhereis; plantareis vinhas e comereis seus frutos” e depois mais a frente narra uma batalha na qual “o anjo do Senhor apareceu nos campo dos assírios e feriu centro e oitenta e cinco mil homens”, mesmo para os dias de hoje um número bastante alto.

O certo é que no ano de 630 a.C. os assírios se retiram do Egito e depois da Babilônia, que dominará também as terras hebraicas em Isaías 39, inicialmente o rei da Babilônia, Merodac-Baladã, envia ao rei Ezequias que estava doente mensagens e presentes, mas depois alerta o profeta Isaías ao rei Ezequias: “Escuta a palavra do Senhor dos Exércitos! Aproxima-se o tempo em que se levará para a Babilônia tudo aquilo que há em teu palácio, tudo o que se acumularam os teus pais até este dia”, e assim aconteceu nos 50 anos do exílio da Babilônia.]

Quem libertou os judeus. Foi o rei Dario, que governou o Império Persa e que era inimigo da Babilônia, através do profeta Daniel a quem venerou por suas profecias, concede ao povo judeu reconstruir seu templo e retornar a sua terra.

O império Persa durou até o ano 330 a.C. sendo bastante conhecido pela historiografia oficial por causa das guerras “médicas” entre os gregos e os persas, mas veja que historicamente os medos eram um povo ao leste da Assíria, enquanto os gregos a oeste e já no continente europeu, acontece que foram simultâneas no período de 500 a 448 a.C. mais de 50 anos.

Entre guerras e desafios, oráculos e profetas auxiliaram o povo a caminhar nestes períodos.

A lição histórica possível é grandes impérios ruíram por sua soberba e opressão, a lição espiritual é não se intimide o vosso coração, o mal morre por sua própria maldade.