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A verdade é lógica, ontológica ou poder
Os sofistas diziam que o homem é a medida das coisas (Protágoras), não para afirmar qualquer princípio ontológico, apenas para reafirmar o status quo vigente que em última instância é o poder, usavam para isto a arte da persuasão (Górgias) e por último afirmavam a conveniência do mais forte (Trasímaco), quase todos aparecem nos diálogos de Platão, através dos diálogos de Sócrates) e cuja preocupação era contestá-los para afirmar a democracia da polis.
Depois vivemos vários séculos organizando as leis até fazer a passagem da cidade-estado grega para os burgos pós-idade média, onde o liberalismo vai crescer até tornar-se o Estado moderno, criando o conceito de nação e o contrato social que rege determinado povo.
Para a visão epistemológica moderna, a verdade está ligada ao objeto (a coisa em si) e isto o torna relativa, pois está submetida ao espaço, ao tempo e às categorias, este conceito vem de Aristóteles, mas foi sobre ele que o pensamento da idade média se dividiu entre nominalistas e realistas, mas para ambos e também para Descartes que vai estabelecer a res-extensa (matéria), a res-cogitans (coisa pensante) e a res divina (coisa pensante perfeita, infinita).
É Kant que faz a ligação da coisa pensante sobre o objeto tornando-se relativa, pois tal verdade é ao sujeito cognoscente tendo então uma face subjetiva, própria do sujeito, para ele a “coisa em si” (o objeto) transforma-se em “a coisa em mim” (sujeita a subjetividade).
Isto significa que diante do objeto, a consciência desenvolve o trabalho na produção da verdade de acordo com o espaço em que esse objeto está ocupando, o tempo que ele está situado e em que categoria se encaixa, trata-se então de categorizar e organizar os objetos em torno de conceitos.
Não é difícil entender que isto cria uma estrutura lógica que vai num primeiro instante criar uma lógica positivista e mais tarde um empirismo lógico, ou um neologicismo, em ambas correntes qualquer aspecto metafísico é negado, assim a lógica não é mais função de uma construção argumentativa, mas de um cálculo de proposições que segue uma estrutura lógica, em última instância é também o que justifica o poder e suas maquinações.
Retornamos as narrativas sofistas, a ideia de que é o poder que diz o que é verdade, então trata-se de conquistá-lo muitas vezes numa lógica na qual os fins justificam os meios, assim justifica-se a corrupção, a ausência de virtudes morais e até mesmo a morte.
A verdade ontológica parecia ter sucumbido, mas foi a hermenêutica e a fenomenologia as raízes que recuperam a ontologia moderna, Franz Brentano vai usar uma subcategoria do conceito ontológico de consciência, ao elevar a intencionalidade a uma categoria superior e torná-la “fenômeno mental”.
Husserl aluno de Brentano, vai recriar a intencionalidade e retirá-la do aspecto psicológico ainda com resquício empirista, e vai dizer que só tem sentido chamar de consciência, a “consciência de algo”, isto significa que não existe consciência da coisa-em-si, mas a intencionalidade na consciência de algo.
A intencionalidade distingue a propriedade do fenómeno mental: ser necessariamente dirigido para um objeto, seja real ou imaginário. É neste sentido, e na fenomenologia de Husserl, que este termo é usado na filosofia contemporânea, também por Heidegger, mas que vai recuperar e transformar a ideia do Ser.
Entretanto é necessário lembrar que Heidegger em O meu caminho na fenomenologia, deveu-se a leitura em 1907 da dissertação de Brentano escrita em 1862: “Da múltipla significação do ser em Aristóteles” (Brentano, 1862) e isto significou uma retomada do caminho de seu mestre Edmund Husserl.
Heidegger ao contrário de Brentano nega a caracterização fundamental do ser como substância, uma vez que, Brentano ainda estava ligado à tradição interpretativa medieval, desconsiderando a dimensão do papel na linguagem, por isto dirá com propriedade que é uma “questão nova” o seu Dasein.
O ser-verdadeiro (a verdade ontológica) como ser-descobridor [Wahrsein (Wahrheit) besagt entdeckend-sein] é o modo de aparição da aletheia, é o que Heidegger dá o nome de desvelar, pegando-o ao pé da letra (mas traduzido, o que já é uma interpretação):
“O enunciado é verdadeiro significa: ele descobre o ente em si mesmo. Ele enuncia, indica, “deixa ver” (apophansis) o ente em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (verdade) do enunciado deve ser entendido no sentido de ser-descobridor.” (HEIDEGGER, 2009, p. 289)
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 4ª ed. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: São Paulo, 2009.
A pandemia e a doxa
A mera opinião sobre temas tão complexos quanto o tratamento da pandemia expôs o mundo da mera opinião ou da “doxa” como os gregos chamavam aquilo que era oposto a episteme, ou o conhecimento organizado e sistematizado.
O número de soluções curiosas no combate ao vírus é enorme: usar limão até ozônio, os remédios que são efetivos para outras doenças como o uso da cloroquina para malária, usos de chás e águas quentes, determinadas frutas e legumes, a FioCruz que acompanha o desenvolvimento da vacina de Oxford fez uma pesquisa, que dá como 73% falsas as notícias sobre curas do coronavírus no Whatsapp, em sua grande maioria são receitas caseiras sem efeito nenhum sobre a doença.
Toda a vida no tempo de Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) acontecia em torno da polis, onde já haviam então o cidadão da polis, o político, porém ainda dominavam os sofistas, que buscavam apenas argumentos para favorecer o poder, sem se preocupar com a justiça e a verdade.
No livro República de Platão o termo episteme, que antes suportava a possibilidade de ter habilidade para algo, agora adquire o conteúdo de saber pleno de certeza, um saber evidente que é ligado a realidade do Eidos (a Ideia para os antigos), com isto episteme é conhecimento verdadeiro e totalmente oposto a doxa, reduzida a simples opinião.
É na relação entre epistemologia e ética, que é possível considerar a ação sob um ponto de vista da doxa, embora não signifique um fundamento deste tipo de saber ético em Platão, pois ele aparecerá com Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), em especial no seu livro “Ética a Nicômaco”.
O problema da determinação destes conceitos ligando-os a questões éticas aparecem nos primeiros diálogos até a República, que se mantém depois no diálogos sobre as Leis, tornando possível abordar esta questão em diálogos posteriores.
Platão usa os conceitos de nous (República VI 511d4) e noesis (República VI 511e1), a doxa está no mundo da realidade sensível, enquanto a episteme está no conhecimento dianoético (dianoia, é a forma de pensar menos elevado que a noesis) que tem por objetos os noeta, mas são inferiores a dialética (República VII 533d).
Aristóteles vai negar a existência de eide (pensamento puro) em termos platônicos, assim sua episteme vai designar para ele o conhecimento das causas necessárias (está desenvolvido nos primeiros analíticos) e consiste de na demonstração (apodeixis) e na sensação (aisthesis) tornam-se necessárias para a episteme.
Para não complicar muito, os gregos foram, é na Metafísica (E 1, 1025b-1026a) que o termo episteme vai designar uma organização sistemática dos conhecimentos racionais, chegando assim a apontar para o conhecimento teorético, em sua oposição ao conhecimento prático e poiético (Ética a Nicômaco VI 3, 1139b14-36).
Seja qual for a forma de conhecimento sistemático, a ciência tem seus caminhos e negá-los é colocar toda a humanidade a prova, nem receitas caseiras, nem vacinas sem as condições de testes são aceitáveis, é preciso prudência já pagamos um preço demasiado pelas mortes na pandemia, que a cura seja para eliminar as possibilidades de reinfecção e efeitos colaterais, é a dose do veneno que faz o remédio, porém o inverso é verdadeiro também.
A tragédia da cultura moderna
Theodore Dalrymple, pseudônimo do médico e psiquiatra inglês Anthony Daniels, que propôs uma reflexão sobre o apodrecimento moral da cultura moderna, o efeito do perigoso politicamente correto na sociedade (como se ele fosse uma única posição política) e as consequências para a verdadeira cultura dos povos, o seu livro Qualquer coisa serve (2016) é uma análise “clínica” profunda de que tipo de crise cultural vivemos.
O autor colabora com vários periódicos The times, The Daily Telegraph, The Observer e The Spectator, é um ponto de vista conservador que olha a história sem dúvida, mas nem por isso deixa de ser importante algumas observações que faz da vida contemporânea e vê como muitos outros o desgaste da cultura atual.
Ganhou o primeiro Liberdade em Flandres em 2011, região que fala o flamengo dois terços da Bélgica, depois de elogiá-la como culta vai criticar seu nacionalismo: “solicitei um quarto … a recepcionista me respondeu em inglês, mas não por conta do meu sotaque com minha esposa, que é parisiense, fez ela o mesmo. Fomos assim apresentados ao nacionalismo flamengo, que demonstra que país nenhum é excessivamente pequeno para o separatismo nacional” (pag. 30), a outra região é a Valônia que fala o francês, mas em Flandres só mesmo o flamengo, ainda que conheçam o francês.
Ele revela sua verdadeira identidade no livro ao dizer “como médico e psiquiatra, passei um terrível período de minha carreira tentando levar pessoas por um caminho que se me afigurava adequado e benéfico a eles” (pag. 81) e depois confessa seu fracasso, diz que seus pacientes eram “autodestrutivos que, se encarados de maneira imparcial e com mínimo de bom senso, não poderiam conduzir a nada além da angústia” (idem), mas não é seu ponto alto.
Noutra linha, mas também em defesa da cultura que se erigiu entre os povos do planeta, com raízes originárias claras e inconfundíveis, Byung-Chul Han, um filósofo coreano migrado para a Alemanha, também critica a cultura do liso, da ausência de imperfeições e ranhuras que se confunde na arte com o politicamente correto.
Escreveu Byung-Chul escreveu que a beleza hoje é lisa, não apresenta resistência, não quebra e exige likes, a distância convida somente ao toque, não há negatividade que é oposta, sem ela, desaparece a surpresa e o maravilhamento: “sem distância não é possível haver mística, a desmistificação torna tudo fruível e consumível.”, não há alteridade do Outro, há só espaço para uma diversidade estetizada e homogeneizada, e assim consumível e explorada.
Não se trata da defesa da tradição, bons críticos e bons reformadores sempre fazem um diálogo com o lado oposto, porém o que se trata é o esquecimento e até o desprezo pelas raízes originárias de cada cultura e uma massificação que quer tornar tudo uniforme e disforme.
É apenas um lado da cultura que atinge o pensamento que tornou-se vulgar e sofista, da religião que tornou-se ideológica ou fundamentalista, e da cultura da qual todos descendemos que é ignorada, as consequenciais sociais e morais são apenas a parte visível do que ocorre nos fundamentos da sociedade moderna.
DALRYMPLE, Thedore. Qualquer coisa serve. trad. Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2016.
Divisão da cultura grega e a judaico-cristã
Foi Karl Popper que chamou a atenção para a origem do iluminismo moderno, assim não é possível uma crítica ao idealismo e empirismo iluminismo contemporâneos sem uma releitura atenta da história do pensamento ocidental.
Primeiro porque é a história do pensamento, grande parte da noite civilizatória está na crise do pensamento, alerta Morin, e também Marx ao fazer a Crítica em Teses sobre Feuerbach (1845) apontou na verdade ao idealismo presente no cristianismo moderno, porém a raiz judaico-cristã é outra, a divisão se dá em dois pontos da história a libertação pelos Macabeus (167 a.C. – 37 a.C.) e as incursões do apóstolo Paulo.
Voltando ao iluminismo pré-socrático, raiz do pensamento ocidental, Popper fez uma incursão pelos três maiores filósofos deste período Xenófanes, Parmênides e Heráclito: “maior e mais inventivo período da filosofia grega”. O autor constata que a “aventura do racionalismo crítico grego”, e identifica um princípio de crise já em Aristóteles que após desenvolver sua episteme: “matou a ciência crítica, para a qual ele mesmo fez uma contribuição capital.”,
Conforme desenvolve Popper “foi essa concepção de conhecimento demonstrável, apresentada por Aristóteles, que eclipsou a atitude crítica desenvolvida pelos pré-socráticos, e assim toda a herança moderna desta “lógica” demonstrável, porém admitindo-se o desenvolvimento de Popper como este iluminismo tendo raízes ontológicas (e não lógicas), a famosa máxima de Parmênides: “o ser é e o não ser não é”, não havendo terceira hipótese além da lógica dual e um terceiro incluído, além do clássico terceiro excluído, não há terceira hipótese T (na figura).
Também no cristianismo há uma terceira pessoa, na relação entre Pai e Filho há o Espírito Santo, e não é só espírito.
Somente no século XX com a física quântica formulando a hipótese já comprovada de um terceiro estado da matéria chamando de “tunelamento”, e a proposta de Barsarab Nicolescu do terceiro incluído, é que pode-se pensar em um ser e não ser simultâneos.
Não se trata de afirmar o paradoxal da existência de algo e seu contrário, haveria uma anulação recíproca evidente, não haveria nenhuma possibilidade de previsões e a própria abordagem científica do mundo seria colapsada, o que a Física Quântica admite, e nisto se fundamenta Barsarab, é que existem inúmeras conexões imutáveis sobre as quais se pode realizar uma experiência ou interpretar os resultados, é ao mesmo tempo o “princípio da incerteza” de Heisenberg e o método da “falseabilidade” de Popper.
Ela não abole a lógica do Sim e Não de Parmênides e Aristóteles, apenas admite uma terceira hipótese, as consequências filosóficas, sociais e políticas são evidentes, a científica é o que foi formulado como transdisciplina-ridade, enquanto estamos confinando a uma teoria disciplinar especializada a terceira hipótese parece infundada ou inexistente, se olhar de um outro ângulo ela aparece, porém o idealismo reduziu este olhar e tornou-o especialista.
A cultura jadaico-cristã também se viu reduzida e confundida com este simplismo, e com isto tornou-se idealista também, apesar de uma origem diferente.
O pensamento complexo de Edgar Morin vai na mesma direção, mas deixemos isto para o próximo post.
POPPER, K. O mundo de Parmênides: o iluminismo pré-socratico. Tradução: Roberto Leal Ferreira. SP: UNESP, 2014.
A origem história de conflitos em pandemias
A ideia de esconder dados sobre a pandemia já havia ocorrido na gripe espanhola,que recebeu este nome apenas por razões políticas visto que a Espanha manteve-se neutra durante a primeira Guerra Mundial, o nome original era gripe das trincheiras por ter afetado muitos soldados e enfraquecido alguns exércitos.
A ideia de esconder a doença foi até mesmo sustentado por instituições de prestígio, como a Royal Academy of Medicine de Londres, até o final e 1918 poucos acreditavam na gripe.
O nome de influenza espanhola também é antigo, jornais brasileiros (houve um artigo da revista A Careta, n. 537) usavam o nome porém como agora o início do combate a doença foi conturbado, e as medidas coercitivas defendida pelo sanitária Oswaldo Cruz foi vista como uma tirania sanitária no país e os grupos políticos de oposição ao governo Wenceslau Braz (na figura) viam a gripe como um pretexto do governo para intervenção na vida da população.
Também o uso político foi feito, porém neste momento grave da história, é desejável que os verdadeiros espíritos humanitários se desarmem para defender a vida da população, a ação dos médicos, dos grupos de socorro e os esforços para a vacina.
A insistência em polarizar num momento tão trágico revela apenas a decadência dos mais caros valores de compaixão e solidariedade, até mesmo por grupos que deviam estar mais empenhados em unir esforços, e curiosamente encontramos mesmo em lados opostos tanto aqueles que se solidarizam como os que procuram desviar a atenção do verdadeiro inimigo: a pandemia que afeta a todos.
No país, perdida a oportunidade de fazer um #lockDown quando a doença ainda estava localizada em algumas regiões, agora se alastrou por todo país e apenas as medidas já conhecidas devem continuar a serem adotadas, vejo equipes médicas e os serviços de apoio atingirem o esgotamento, os casos de infecção deste verdadeiros heróis continuam crescendo.
O que há de novo é uma tensão mundial em limites verdadeiramente preocupantes, o desvario do abandono dos fundamentos básicos da sociedade e atitudes que variam entre o conformismo e o simples abandono de qualquer medida de proteção e isolamento social, como a marcha de milhares de pessoas na Alemanha.
Os patamares da pandemia no Brasil continuam estáveis, nem é verdade que a pandemia esteja sobre controle, nem é verdade que existe um genocídio no país, simplesmente as medidas que podiam ser tomadas não foram, e o tempo passou e a doença se espalhou.
Resta-nos a esperança da vacina, a de Oxford uma das mais confiáveis pelos critérios científicos, pela transparência dos cientistas que trabalham (um artigo detalhado foi publicado na revista The Lancet) e pelo rigor das etapas de liberação da vacina, sem atropelos.
O pós-pandemia assusta porque não há mesmo em setores conscientes da sociedade atitudes de sobriedade e equilíbrio, fica a impressão de um humanismo mais política que verdadeiro
Não há cidadania sã sem areté
A construção da sabedoria (episteme) e da virtude (o areté grego) no combate a doxa (mera opinião da verdade relativa) e aos sofistas, que apesar de sábios estavam corrompidos pelo gosto do poder, pelas paixões e pelos instintos, fizeram Sócrates, que o conhecemos a partir dos diálogos de Platão, e do próprio Platão construir um modelo novo de cidadania que precisava de educar, sair da Caverna para a luz e de organizar o conhecimento para o verdadeiro Bem.
É fato que o sentido de excelência foi adotado por autoridades do Estado, porém a sua origem etimológica continua válida e defendê-la é sim defender o bem, senão caímos no relativismo sofista, qualquer verdade e qualquer argumentação é válida, a maiêutica socrática é ainda válida e perguntar é dialogar.
Martha Nussbaum, uma das mais renomadas filósofas atuais na antiguidade clássica, apontou em seu livro A fragilidade do Bem: “… a indolência, o erro e a cegueira ética causam inúmeras tragédias”, são aspectos relevantes que os democratas devem lembrar para a defesa da democracia e o risco de que os sofistas modernos tomem o poder e manipulem as opiniões, não se tratam apenas de fake-news, posições equivocadas e autoritárias, é preciso defender valores de verdadeira cidadania, a areté (na figura, a escultura em Éfeso).
Já explicamos o sentido bíblico da rede, da pescaria e o lançar as redes, em outra passagem após retornar do mar da Galiléia Jesus e os discípulos se encontram com a multidão, e sendo o lugar deserto os apóstolos pensam em dispensar a multidão por falta de alimento, mas Jesus diz para ver o que havia de alimento e faz o conhecido milagre da multiplicação dos pães e peixes, a partir de 5 pães e 2 peixes.
É claro que a virtude cristã está além da proposta pelos gregos, estende-se a moral pessoal e a compreensão da misericórdia, porém não exclui a aretê cidadã e de domínio dos instintos e das paixões, nos dias atuais tão afloradas e atingindo mesmo os religiosos, má leitura da multiplicação dos pães e peixes que está mais relacionada a aretê cristã que a polis, pois estavam “num lugar deserto” (Mt 14,15), isto é, uma espécie de “retiro”.
A virtude da compaixão é necessária para a distribuição dos bens, o processo de concentração de riqueza se acelerou com a pandemia, sem recolher os poucos pães e peixes que restam de uma economia em crise para socorrer milhares que estão famintos, sem emprego e muitos sem esperança, esse deverá será a verdadeira nova normalidade se quisermos dias melhores, só se houver dias melhores para todos sem esquecer os milhões que perderam empregos, esperança e familiares nesta pandemia.
Areté. virtude e ética do Estado
A ética da antiguidade clássica tinha assim duas bases a aretê, a virtude (entendida como formação cidadã mas com valores morais) enquanto a ética dos sofistas que fez a democracia grega entrar em crise defendia uma verdade relativa e o homem entregue as suas paixões e instintos.
No início do período romano estas duas correntes reaparecem com os neoplatônicos, epicuristas e estóicos de um lado defendendo uma moral ascética e de outro lado pensadores como Cicero e Lucrécio, que vão um conjunto de leis e direitos no período do império romano, do qual o direito moderno tem forte influência, é o que demos o nome de ética do Estado, para diferenciar ao conceito de ética da cidade-estado de Platão e Aristóteles que defendiam também as virtudes, a aretê grega.
Embora não se possa fazer uma clara alusão aos sofistas no período do império romano, seus pensadores são legisladores, os neoplatônicos são correntes fora do poder e se refugiam em pensadores cristãos e muçulmanos, como Santo Agostinho, Alfarabi e alguns pensadores estoicos que trariam influências no poder romano, como Sêneca que foi preceptor de Nero, embora defendam a virtude não defendiam uma moral ascética.
As influências epistêmicas surgem neste período, tais como a querela dos universais de Boécio e mais tarde Abelardo, Duns Scotto e Tomás de Aquino, vão retomar questões sobre o ser e a essência, a existência de Universais (o que chamamos de conceito) ou apenas de particulares.
No tratado sobre as virtudes Tomás de Aquino fez a diferença entre virtudes morais e intelectuais, considerando que o santo filósofo fez uma revisão da ética aristotélica, incorporando valores cristãos, enquanto as virtudes morais aperfeiçoam os aspectos especulativos e práticos, as virtudes morais vão aperfeiçoar as potencias apetitivas, nome dado as paixões e instintos cuja discussão vem desde o período dos sofistas.
A moral idealista vai seguir a máxima kantiana: “age de tal forma que possa se tornar uma lei universal”, enquanto cria o sujeito transcendental fora de qualquer característica religiosa, ele possui uma capacidade cognitiva subjetiva tendo: a razão, o entendimento (das categorias) e a sensibilidade (formas puras de intuição, espaço e tempo), a partir desta moral que Hegel vai elaborar a moral do Estado.
Na linha da moral Kantiana, Hegel vai elaborar a eticidade, elaborada sobre a questão da “autodeterminação da vontade”, não mais na subjetividade ou no transcendental, e sim o desdobramento objetivo das vontades livres, assim é o Estado é o regulador das vontades livres, e eticidade é uma qualidade da ética, que fica no campo privado, e que a qual o Estado através de suas leis pode torna-la objetiva, assim as qualidades morais interiores e as virtudes valem apenas para estes aspectos e segundo as determinações do estado que pode interferir na vida subjetiva.
O relativismo moral e da verdade que surge a partir de um direito objetivo e de uma eticidade elaborada segundo leis do direito e estas ligadas aos interesses do Estado.
Sofistas modernos e a sabedoria prática
Os sofistas acreditavam na educação e no bom, porém o bom era relativo e um código de ética impediria atingir o que satisfaz os instintos e paixões humanas, enquanto que Sócrates vai elaborar a felicidade como um conjunto de virtudes (em grego aretê, que significa ao mesmo tempo excelência moral e política, hoje em campos opostos), e seu método a ironia e a maiêutica.
Os sofistas modernos podem ser vistos em três correntes, os céticos que não acreditam em verdade e pensam a felicidade como bula de remédio (a ética são apenas contra-indicações), os pragmáticos que recuperam o sentido original do “bom” para sofistas sem virtudes, e os retóricos, também a moda dos sofistas originais, numa boa oratória dizer o óbvio (e esconder os problemas e a doxa, mera opinião).
Já explicamos em outro post, que ironia não tem o sentido de hoje próximo ao ceticismo, são exatamente opostos na origem grega, vem da palavra grega eirein que significa perguntar, assim por sucessivas perguntas em uma discussão Sócrates levava seu oponente a contradições, a segunda parte de seu método é a maiêutica que é a arte de parir, então o que no fundo o método socrático queria pela ironia era levar o oponente ao perceber seus pré-conceitos obter a capacidade de refletir, e assim de parir ideias próprias que o conduzissem a verdade.
Mas retornemos a felicidade que os sofistas assim como a verdade diziam não ter formulas, mas apenas maneiras de satisfazer suas paixões instintos, assim a ideia da virtude política e ética ao mesmo tempo pretendida por Sócrates era também ilusória já que era natural a paixão destinada ao poder e a posse de seus benefícios instintivos.
Platão como discípulo de Sócrates, na verdade o que se sabe de Sócrates está em Platão vai refutar o sofista Protágoras, e o diálogo vai se dar em torno da virtude se ela é ensinável ou não, e isto foi ponto fundamental para o nascimento da escola Platônica, segundo historiadores aproximadamente entre 384-383 a.C., localizados em jardins nos subúrbios de Atenas (na foto um mosaico de Pompéia, agora no Museu Arqueológico de Nápoles) .
O objetivo era educar os homens para serem cidadãos e assim combater a decadência da democracia grega provocada pela escola dos sofistas, da mera opinião e da verdade relativa, por baseia-se naquilo que vai do sensível ao inteligível, a dialética da escola platônica baseia-se nisto, onde vai ser essencial a superação da doxa, a mera opinião e a construção da epistéme, o conhecimento organizado construído em verdades universais.
A evolução dos diálogos, principalmente na República de Platão, mostra a evolução dialética (não é nem poderia ser a hegeliana por razões históricas) dos termos da episteme até se constituir em uma estrutura ética que leva a formulação de leis, porém a ética como conhecemos hoje vem da escola de um dos alunos de Platão, Aristóteles que elaborou “A ética a Nicómaco” uma concepção teleológica e eudaimonista (Eudaimonia era a felicidade para os gregos antigos), em torno de uma racionalidade prática, o que os gregos chamavam de phronesis (Frônese em português) um dos elementos da ética.
Aristóteles elabora então a sabedoria como uma virtude do pensamento prático, ou apenas sabedoria prática, o objetivo é descrever os fenômenos da ação humana através do exame dialético das opiniões, resíduo do método socrático, mas para descobrir neles princípios imutáveis, assim é possível superar a doxa e chegar ao conhecimento a episteme, pode-se descrever esta dialética como conhecer-entender-conhecer.
Mais tarde Aristóteles. um dos alunos de sua escola platônica, vai fazer seu Liceu, que essencialmente era feita caminhando, por isto chamada também de peripatécnica, mas escola tenha um gynasium para exercícios físicos, e também para socializar os conhecimentos adquiridos.
A hermenêutica filosófica de Gadamer vai reelaborar a Frônese sistematizando o círculo hermenêutico de Heidegger, criando uma filosofia hermenêutica.
Como viver a crise e o platô estável
Edgar Morin e Patrick Viveret escreveram em 2010 “Como viver em tempo de crise” (edição em português da Bertrand de 2013), e certamente não pensavam numa pandemia, porém já viam um horizonte difícil para humanidade, e certamente este horizonte foi agravado.
Assim filósofos e outros tipos de visionários que tentam ver um futuro tranquilo não tem um fundamento, ou até podem ter, mas baseados em filosofias e pensamentos já superados, a pandemia exigirá ainda mais dos grandes estrategistas e pensadores humanitários.
Na página 37 do livro mostra os sintomas da crise: “Wall Street conhece apenas dois sentimentos, a euforia e o pânico”, mesmo sem saber é assim que pensam os que prometem “felicidade”, mas é falsa e a ela se seguirá a depressão, uma análise mais sensata pode preparar o desafio que vem.
O platô estável chegou, em termos de mortes pois os dados de infecção são imprecisos, mostram estes picos, agora caminhando para um platô estável não só no Brasil, mas no mundo como um todo, isto porque o ciclo de infecção chegou a todo planeta, e no Brasil a todo país.
O ciclo pode ser realimentado porque não como isolar polos de infecção, mesmo países sem novos ciclos poderão ser afetados, mas observe-se que Nova Zelândia e Taiwan são ilhas, então com o isolamento por mar, são mais controláveis, porém o comércio também pode afetar estes países.
Edgar Morin e seu colaborador citam no livro “três mutações” importantes na crise e que valem para a situação social da pandemia, pois elas representam o mundo antigo, o mundo “estados-nação, da sociedade industrial, de uma organização segmentada (veja os conflitos EUA x China) … o desafio ecológico coloca a pergunta sobre o que vamos fazer com nosso planeta?” (pag. 57).
A revolução industrial colocou a vida num modo de viver frenético, “a sociedade industrial clássica se organizava em torno do sésamo clássico ´o que você faz da sua vida?´”, e que continua a ser uma pergunta que nos interroga a todos, o recém lançado em português “Tens de mudar sua vida” de Peter Sloterdijk coloca isto em torno da antropotécnica, trazendo ao debate a questão técnica.
Ambos apontam para a dupla face da crise: perigo e oportunidade, com respostas diferentes, no entanto o que devemos pensar indicam Morin e Viveret: “o que faremos do planeta, com nossa espécie e com nossa vida” (pagina 54), e dá uma resposta universal e possível: “na esfera de desenvolvimento da ordem do ser, mais que de um crescimento na ordem do ter” (pag. 55), enquanto Sloterdijk indaga se o humanismo não morreu.
O livro apesar da defasagem história é muito atual, e aponta para questão do além pandemia.
MORIN, E.; VIVERET, P. Como viver em tempo de crise? Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2013.
A escatologia do bem
Assim como qualquer cosmovisão tem alguma alegoria para o princípio e fim, no caso da cristã o Genesis e o Céu e Inferno, e outras propõe que nascemos de plantas ou animais, ou que voltamos a vida através da reencarnação, o bem possui sua escatologia, enquanto o mal uma “estrutura” simbólica.
Não é definição de visões religiosas apenas, também na filosofia clássica Platão na República e Aristóteles na Ética a Nicômaco trataram da questão e já fizemos alguns posts aqui, porém foi Demócrito que definiu de maneira mais próxima a nossa atual, ao dizer que o bem depende do desejo interior do homem, o homem bom não apenas pratica o bem, mas o deseja sempre.
Assim é na história humana também, sem determinismo ou romantismo histórico caminhamos para o bem se exercitamos a partir do interior de cada homem, mas praticando socialmente, aquilo que os gregos chamaram de “virtude”, mas também temos o ciclo vicioso do mal.
O ciclo vicioso do mal leva a uma “crise” do bem, o mal simbólico pode se estruturar de tal forma que determinada estrutura social pode levar a um fim, pode ser o fim de uma época que é muito trágico, mas pode também levar a uma crise civilizatória grave se não se encontra uma saída.
A humanidade sempre encontrou saídas, isto dá esperança, porém as tragédias fazem parte da mudança, e a gravidade da tragédia depende da resiliência do bem, embora frágil é ele que pode indicar o caminho novo, uma saída para a cidadania terrena, para o futuro civilizatória humano.
A leitura bíblica indica três metáforas para a escatologia do bem, e compara o “reino dos céus” (Mt 13, 24-43) com o plantio do joio e do trigo que crescem e que só no final escatológica deve ser colhido e separado do mal (o joio), a segunda parábola o grão de mostarda, a menor das sementes, que dá uma arvore bela e frondosa onde “os passarinhos vem fazer seus ninhos”, e a terceira é uma receita de pão, uma mulher mistura três porções de farinha.
A terceira “parábola” a mulher mistura três porções de farinha, uma parte só deve ser fermentada, seriam aqueles que tem a virtude do bem e ela deve ser praticada de forma a produzir boa fermentação no resto da massa, as outras duas porções, então o fermento é o bem.
O final da leitura diz que um pai tira de seus tesouros coisas boas (a parte fermentada boa) e más então sempre tem-se um “mal simbólico”, é preciso saber se parte boa foi “fermentada”.