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Farisaísmo e Jonas
Em que consiste a ausência de espiritualidade nos dias de hoje, mais do que a falta de Deus, diz Byung-Chul Han é o fato que tudo na vida se torna transitório, mas também as consequências de uma forte polarização na qual todos ânimos se concentram e limitam a verdadeira interioridade, a verdadeira espiritualidade fora da bolha, na alegoria explorada por Sloterdijk em Esferas I o sinal de Jonas, lembra um pouco o trecho bíblico (Lucas 11,29-30): “Esta geração é uma geração perversa: pede um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal de Jonas. Assim como Jonas foi um sinal para os habitantes de Nínive, assim o será também o Filho do homem para esta geração”
Sloterdijk via a falta na falta de centralidade uma díade, tanto serve para a polarização como para um policentrismo, isto é uma ausência de situar-se no mundo, lembramos que o ponto central da filosofia dele é o que significa estar no mundo, e Jonas que tenta fugir de sua missão vai parar no ventre da baleia, isto é, seu desejo de fugir do mundo e de sua missão, é a ideia de refugiar-se num puro interior do qual são vítimas aqueles que fazem uma ascese desespiritualizada, tentam não estar no mundo, que é diferente do Ser-no-mundo, categoria que Sloterdijk usa a palavra “vorhandensein”* para explicar sua polêmica sobre o humanismo com Heidegger, que usa o termo dasein para Ser no mundo.
Onde estava Jonas quando estava no mundo? Dentro da baleia. A baleia é parte da consciência de Jonas que lhe provoca a pensar no exterior a partir de um interior. Heidegger já havia pensado neste puro interior de que todos somos vítimas, um espaço radical e intrínseco, nossa habitação única e primeira por onde permeiam todas as nossas impressões, pensamentos e afetos.
O sinal de Jonas, único sinal para esta geração que busca um “sinal de Deus” é, portanto, encontrar esta interioridade mesmo estando no mundo e sujeito a suas díades (polos) ou mesmo o policentrismo (meias-verdades de diversas narrativas) sem conseguir alcançar uma verdadeira ascese, entretanto Jonas sai da baleia e vai a Nínive cumprir sua missão.
Assim, a relação com o exterior é uma constante tensão, e não há como fugir dela, não é um filtro para a verdade, mas a busca da clareira, de um espaço onde cultivamos o nosso interior, assim na visão de Sloterdijk que nos ajuda, o sinal de Jonas é sua vida interior quando estava no ventre da baleia, dentro de sua “esfera” na concepção de Sloterdijk.
Assim não é aquele que grita Senhor, Senhor nem aquele que vive de “boas intenções” exteriores apenas, é preciso viver esta tensão interioridade e ser no mundo este Ser que é.
O farisaísmo é viver de aparências exteriores que não correspondem a interioridade, mas também a interioridade “pura” é ficar no ventre da Baleia sem viver a tensão exterior.
*a tradução ao pé da letra seria: estar disponível (no caso de Jonas para a missão).
SLOTERDIJK, P. Esferas I : bolhas. Tradução José Oscar de Almeida Marques. Sáo Paulo : Estação Liberdade, 2016.
O Justo, a ira e a serenidade
Martino Bracarense, autor do século V d.C. pouco conhecido porém é um dos responsáveis pelos dias da semana no galeco-portuguesa segunda feira, terça, etc., afirmou que “A ira transforma todas as coisas do melhor e mais justo em seu contrário”, não são poucas as reflexões filosóficas, psicológicas e até poéticas sobre a ira, William Shakespeare afirmou que: “a raiva é um veneno que tomamos esperando que o outro morra” (a foto ao lado é de Andre Hunder no unsplash).
Em tempos tempestuosos para guardar a justiça e a serenidade é necessário um grande esforço de caráter e temperança pois o normal é reagir a dor do ódio com alguma forma, mesmo que dissimulada de ódio, Aristóteles afirmava: “um desejo, acompanhado de dor, de vingança percebida, em razão de uma desconsideração percebida em relação a um indivíduo ou seu próximo, vinda de pessoas das quais não se espera uma desconsideração” (Retórica de Aristóteles).
O que significa acompanhada (a ira) pela dor? Isto exige a definição de pathê que Aristóteles: “que as emoções sejam todas aquelas coisas em razão das quais as pessoas mudam seus pensamentos e discordam em relação aos seus julgamentos, sendo acompanhadas de dor e prazer, por exemplo raiva, piedade, medo e todas as outras coisas semelhantes a seus contrários”, claro não é uma definição exaustiva da ira, pois ela precisaria de elementos psicológicos, patológicos e uma análise mais aprofundada do tema.
O importante é saber que ela: escapa da justiça, produz uma intemperança e colocada em uma sequencia de ódios estruturais acaba por criando uma total ausência de serenidade, de capacidade de reflexão e no final das contas é produtora de uma grande fonte de injustiças e até mesmo psicopatologias.
Outro ponto é pensar no antídoto deste estado de ânimo, muitas vezes cultural, estrutural e produzido por aqueles que julgam defender a paz, claro que em essência estes mesmo indivíduos são eles próprios casos patológicas, porque a ira dissimulada, ou como diz o dito popular “o veneno destilado” ao contrário da medicina não é antídoto, ele é o veneno em doses continuas e progressivas.
Onde encontrar então a serenidade? A resposta é simples na esperança, aquela mesmo que espera, que respira e que medita e contempla, tema exaustivamente elaborado em Byung-Chul Han em quase todos seus ensaios, No enxame onde exorta “o respeito” como única forma de simetria, o silêncio e a contemplação em “Vita Contemplativa” e o conceito de tonalidade afetiva em sua obra “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva”, embora nunca site o termo diretamente, penso que é o que no fundo ele pretende contribuir para o pensamento contemporâneo para recuperar sua capacidade de pensar, contemplar e Ser.
Também o pensamento religioso de nosso tempo precisa recuperar mais que a serenidade, a sobriedade, porque parecem envoltos de certas embriaguez de nosso tempo, como afirma o pensamento judaico-cristão veio o vento e Deus não estava lá: “depois do terremoto houve um fogo, mas o Senhor não estava nele. E depois do fogo houve o murmúrio de uma brisa suave” (livros dos 1Reis 12) e também é famosa a tempestade de Jesus entre os apóstolo dormindo e uma tempestade acontecendo, Ele acordou e manda o mar se acalmar para espanto dos apóstolos (Marcos 4,39).
O Justo e a reconciliação
A justiça praticada apenas de modo legalista e sem nenhuma misericórdia ela é apenas humana e não pressupõe a paz social, ela incita o ódio entre adversários.
O contrato social estabelecido na modernidade, vem na verdade da ideia de absoluto do primeiro contratualista John Hobbes (1588-1679) e também da ideia de O Príncipe de Maquiável, na verdade transfere todo o direito e a justiça ao Estado e isto não significa que ele não pratique injustiças, na modernidade sabemos que sim.
Também no ápice do idealismo Hegel (1770-1831) desenvolveu uma ideia teleológica do Absoluto, que é uma figura abstrata ainda que a caracterize como “potência substancial”, que no momento de sua subjetividade e singularidade deste conceito se manifesta como uma substância universal, que através de sua abstração se efetiva como uma espécie de consciência de si singular, substituindo a ideia de essência da Ontologia, é algo abstrato mesmo.
A ideia de justiça traduzida no Justo de Paul Ricoeur, Habermas e outros autores é a ideia que ela não é a singularidade de uma substância, mas sim deve estar concretiza em algo concreto que é o Justo, este sim em potência pode e deve se desenvolver dentro do que é moral e ético, na antiguidade clássica os filósofos, em particular Platão que procurava a educação para os cidadãos, ele deveria ter as virtudes, o aretê, que na sua significação mais precisa significa excelência, e Aristóteles a desenvolve como phronesis, que é o político.
Parece muita teoria abstrata, a nosso ver o idealismo hegeliano realmente o é, mas as virtudes e a excelência política de cada pessoa não é abstrata, ela significa a capacidade de cada um de exercer a política considerando os direitos do outro e a responsabilidade ética com os bens sociais, em especial, com o bem-comum.
A reconciliação é sempre aquela situação de conflito onde é possível rever as responsabilidades sociais de cada um e os diversos éticos de posicionamento social, se alguém cometa uma falta grave ou leve, sempre é possível encontrar o Justo, aquele ponto em que as partes envolvidas podem estabelecer uma espécie de contrato social particular, minimizando o dano ou a perda das partes envolvidas.
Diz a leitura bíblica se você não se reconciliar com teu irmão, ele te levará ao juiz, o juiz ao tribunal e dali irá para a prisão, é então melhor se reconciliar antes.
O Justo vê o Outro e é delicado
Paul Ricoeur em seus dois volumes de O Justo irá se dedicar a desvelar esta relação, que envolve relações de poder, iniciando pelo grito que considerado justo: “Isto é injusto!” diz no prefácio de seu livro em referência ao primeiro capítulo do livro de R.J. Lucas “On the Justice” (1955) e reconhece nela uma proclamação de um protesto.
Como em boa parte da obra de Paul Ricoeur é no reconhecimento da face do Outro que devemos entender o príncipio da Justiça, mas faz uma longa análise da obra de John Rawls “Teoria da Justiça” porque não ignora relações de poder e sua influência na visão de justiça atual, até mesmo Habermas o analisou.
A experiência de injustiça é feita por nós próprios como por outros indivíduos e ainda mais por grupos humanos, em especial aqueles que estão em guerra por que consideram graves: o roubo de seus direitos, mas a experiência de injustiça requer uma reflexão profunda, em especial naqueles casos que há violência contra vítimas e a injustiça social.
Ricoeur retoma Aristóteles para analisar a “vida boa”, mas é preciso esclarecer que não é o sentido pejorativo de boa vida de malandros e oportunistas usado no senso comum, na linguagem aristotélica e da Grécia antiga o bom tem um sentido eminentemente ético, ou seja, o bem que se busca é inseparável do bem do outro, assim busca a paz e não o conflito ou a usurpação de bens como Eduardo Galeano classifica todas as guerras, é além de qualquer egoísmo repreensível, que rebaixa o sujeito o impedindo de atingir e ser respeitado no plano moral.
No ensaio verdade é justiça, do Justo 2, Ricoeur se refere à expressão mesma que serve de título ao seu livro O outro como um si-mesmo, onde comenta: “A fórmula de « Si-mesmo como um outro » é neste sentido uma fórmula primitivamente ética, que subordina a reflexividade do si à mediação da alteridade do outro.”
Há uma dimensão deontológica que não é distante da teológica no seu pensamento sobre o Justo, a ética de Ricoeur não se limita ao monologismo inerente ao formalismo kantiano, presente em John Rawls, ao mesmo tempo que se recusa a um apelo ao sentimento, digamos ao “coração” tem uma dimensão de “delicadeza” no respeito ao Outro.
Byung-Chul Han lembra em seu livro “No exame” que apenas uma relação é simétrica (diríamos horizontal, sem a relação de poder): “o respeito” e é esse respeito que nos leva a compreensão do Justo com relação ao Outro.
Assim aquele que pratica a justiça raramente busca holofotes ou brilho próprio, sabe que em essência o que faz é uma relação de respeito ao Outro, diferente e diverso.
Ricœur, P. Le Juste 1. Paris : Éditions Esprit, 1995.
Narrações de uma vida futura
Muitas são as visões e até profecias sobre a policrise contemporânea, ela extrapola o pensamento e chega até a vida social, a política e as guerras em escalada preocupante, mas a pergunta é quais a razões para ter esperança, e ao mesmo tempo aquilo que Edgar Morin chamou de “resistência do espírito” , nos trechos finais de A crise da narração de Byung-Chul, ele critica a política atual: “as narrativas políticas oferecem a perspectiva de uma nova ordem das coisas, pintam mundos possíveis … nós nos arrastamos de uma crise para a outra. A política é reduzida à solução de problemas. Hoje falta-nos justamente narrativas futuras que nos dão esperanças.” (Han, 2023, p. 132).
A solução de problemas pontuais e emergenciais são são a solução da crise, as “obras” podem ser visíveis e trazer popularidade aos governantes, mas deveriam ter tanto a perspectiva de longo prazo quanto noção que são as soluções de curto prazo implantadas com parcimônia que encaminham para respostas duradoras, sustentáveis e eficazes e conclui Byung-Chul: “toda ação que transforma o mundo pressupõe uma narração” (idem) e assim poucos são os casos de respostas imediatas que sejam de fato duradouras e eficientes.
Há uma narração bastante conhecida que uma jovem pergunta ao senhor que plantava tâmaras “por que o senhor perde tempo plantando o que não vai colher “, o senhor virou e respondeu: se todos pensassem como você, ninguém colheria tâmaras.
A ideia que as coisas podem ser rápidas e simples está no storytelling atual: como emagrecer sem esforço, como aprender este ou aquele trabalho complexo em poucas lições, como falar de maneira clara e simples de um problema com solução complexa e muitas outras formulas “mágicas” que pouco tem de imaginação e encantamento, são narrativas que visam venda e consumo de facilidades e de produtos cuja eficácia é questionável.
A primeira ideia então entender soluções a médio e longo prazo, segundo é desconfiar de soluções fáceis que não sejam duradouras e terceiro admitir que um problema complexo
necessita de uma narração mais demorada e de escuta silenciosa de diversas vozes e diversos ouvintes capazes de ouvir com paciência.
A um ditado bíblico que diz que o Reino de Deus é como um grão de mostarda (uma das menores sementes), você a planta, em anos ela cresce e vira uma árvore frondosa e só depende de sua própria natureza e de um tempo de espera.
Diz Byung-Chul Han em seu parágrafo final: “no mundo do storytelling, tudo é reduzido ao consumo. Isso nos cega para narrações, outros modos de vida, outras percepções e realidades” (p. 132-133).
Han, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: ed. Vozes, 2023.
A justiça, o justo e a moral
As três palavras são importantes num momento de grande crise do pensamento (o que é), o que é ideia, e a ideia de justiça ou do justo, explorada por pensadores atuais como Jurgen Habermas (citamos em post anterior sobre a questão da inclusão do Outro) e citamos de passagem os dois volumes de Paul Ricoeur o Justo (o volume dois publicado pela Martins Fontes) embora o próprio autor diga que é um ensaio, ele penetra num aspecto mais profundo, a questão da verdade e da moral.
A leitura do texto a Inclusão do Outro de Habermas, esclarece que em termos filosóficos, que a moral em John Rawls, em termos kantianos tem diferenças entre o liberalismo político original de Kant e o republicano kantiano que é como Rawls o defende, isto bastaria, mas há uma longa análise no Volume 1 de Paul Ricouer sobre a justiça em Rawls.
Para entender o livro 2 de Ricoeur é preciso entender que para os gregos a filosofia primeira é aquela que para eles, e a retomada ontológica tem a ver com isto, a metafísica como questões sobre o Ser, a existência, a causa e o sentido da realidade e a physis (natureza) devem ser colocados de modo precedente à segunda os aspectos ligados à lógica e a ética.
O livro 2 aborda aquilo que parece mais essencial em Ricoeur, embora confesse que se trata de um ensaio, sua meta é “justificar a tese de que a filosofia teorética e a filosofia prática são de níveis iguais; como nenhuma dela é filosofia primeira em relação àquilo que Stanislas Breton caracterizou como função meta- (eu mesmo .. defendia essa reformulação da metafísica nos termos da função meta-, na qual seriam unidos “os gêneros máximos” da dialética dos últimos diálogos de Platão e a especulação aristotélica sobre a pluralidade dos sentido de ser ou do ente) “ (Ricoeur, 2008, p. 63) … mas não falou (inicialmente era escrito de uma conferência) disto e sim das duas filosofia segundas.
Sua análise está fundada “num primeiro momento, pensar a justiça e a verdade uma sem a outra; num segundo momento, pensa-las de modo da pressuposição recíproca ou cruzada” (Ricoeur, 2008, p. 64) e esta empreitada “nada tem de revolucionária, situa-se na linha das especulações sobre os transcendentais …” (idem).
Ao abordar o primeiro estágio da análise: “Pensei na declaração de Rawls no início de Théorie de la justice: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, assim cmo a verdade é a primeira virtude das teorias” (pg. 65) e ali o autor retoma a parte ética de outro texto seu: Soi-même comme um autre, para “garantir o estatuto eminente da justiça”.
A ideia desenvolvida ali é que está tríade leva a “eqüidade”, não é o dualismo entre o Eu e o Outro (o próximo usa também Ricoeur), “a tríade pertence ao eixo horizontal não consiste absolutamente na simples justaposição entre o si, o próximo e o distante; é a mesma dialética do si. O querer viver bem enraíza o projeto moral da vida, no desejo e na carência, como marca a estrutura gramatical do querer … mas sem a mediação dos outros dois termos da tríade, o quer vida boa se perderia na nebulosa das figuras variáveis da felicidade … eu diria que o curto-circuito entre o querer vida boa e a felicidade resultado do desconhecimento da constituição dialética do si” (pg. 66).
O autor formula a ideia da distante nestes termos: “justa distância, meio-termo entre a pouquíssima distância própria a muitos sonhos de fusão emocional e o excesso da distância alimentado pela arrogância, pelo desprezo, pelo ódio ao estranho, desconhecido. Eu veria na virtude da hospitalidade a impressão emblemática mais próxima desta cultura da justa distância” (pg. 66).
A justiça no eixo vertical, aquele do poder e da norma é vista pelo autor assim: “no eixo vertical que leva à preeminência da sabedoria prática e, com ela, da justiça como equidade, pode-se fazer uma primeira observação referente à relação entre bondade e justiça. A relação não é nem de identidade, nem de diferença; a bondade caracteriza a meta do desejo mais profundo e, assim, pertence à gramática do querer. A justiça como justa distância entre o si e o outro, encontrado como distante, é a figura inteiramente desenvolvida da bondade. Sob o signo de justiça, o bem torna-se bem comum” (pg. 67).
Considero a tríade o si, o outro e o distante, se visto também como uma alteridade transcendente, há um outro “desconhecido” e que pode ser divino e portador de mensagens, na teoria das redes por exemplo o “elo fraco” é considerado fundamental, o ensaio de Ricoeur é rico, porém ao retomar a questão do imperativo categórico kantiano, que justifica o idealismo político, creio que Habermas está correto em afirmar que este é o deslise na consistente “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls atual e muito influente.
Uma parte da leitura bíblica pode ampliar o conceito deste distante como alteridade transcendente (Mt 5,20): “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”, que no sentido deontológico poder-se-ia dizer “não entrareis na verdade da justiça”.
Uma parte da leitura bíblica pode ampliar o conceito deste distante como alteridade transcendente (Mt 5,20): “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”, que no sentido deontológico poder-se-ia dizer “não entrareis na verdade da justiça”.
RICOEUR, P. Justo 2: justiça e verdade e outros estudos. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Narração, cultura digital e oralidade
Ainda no trecho sobre a Pobreza e experiência, citando Walter Benjamin escreveu Byung-Chul: “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ´atual’. A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra a próxima guerra” (Han, 2023, pg. 37-38, citando Pobreza e Experiência de Benjamin), era o limiar da 2ª. guerra mundial.
Em que a modernidade resume a felicidade, esclarece o autor “a felicidade não é um acontecimento pontual (pg. 43), hoje “quando tudo nos lança em um frenesi da atualidade, quando estamos no meio da tempestade de contingências, somos infelizes” (pg. 44), relembra Marcel Proust “Em busca do tempo perdido” que entendeu o “resgate do passado como tarefa do narrador” (pg. 45) e a vida moderna como “uma atrofia muscular”.
Discordando de Heidegger para reafirmar sua importância contextual (também para hoje): “Ser e tempo não é uma análise atemporal da existência humana, mas um reflexo da crise temporal da modernidade” (pg. 45), “o ser-si-mesmo de Heidegger é anterior ao contexto narrativo da vida produzido posteriormente. O ser-a-i se assegura de si mesmo antes de narrar a si mesmo uma história coerente referente ao mundo da interioridade” (pg. 47) e isto explica o livro que postamos anteriormente aqui O coração de Heidegger.
Após um discurso de algumas páginas sobre as novas mídias: Phono sapiens, os selfies, o Facebook, é uma fixação do autor ainda que reconheça Benjamin anterior a isto, ainda que diga de modo correto: “eles são alinhados de forma sindética, sem nenhum nexo narrativo” (pg. 51), reconhece que sempre “A memória humana faz escolhas. Nesse aspecto, ela se diferencia de um banco de dados”, uma precisão técnica fundamental, por há quem confunda e as vezes ele também, com dados sem informação e informação sem conhecimento.
É anterior até mesmo ao surgimento da prensa de Gutenberg e pertence à cultura oral: “a narração autobiográfica pressupõe uma reflexão posterior sobre o que foi vivido, um trabalho de recordação consciente” (pg. 53) enquanto “a qualidade dos dados é melhor quanto menos consciência eles contêm” (idem), porém é preciso lembrar a busca semântica, a ligação dos dados (linked data) e o uso da Inteligência Artificial para a narração (é possivel com ética e supervisão humana) que tornem possível uma consciência além do “consciente libidinal” (idem) sem ética nem moral, sem o esquecimento do ser.
Sem citar a cultura oral, mas o trecho lembra ela: “se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação reaparece” (pg. 56) e acrescenta: “uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro” (ibidem) e lembra que quem quiser narrar ou recordar “precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa” (pg. 57) e não pode estar falando de outra coisa que não seja a cultura escrita, pois a oral é capaz de esquecer detalhes porém vai sempre recordar o que é vivido e através dela lembrar o essencial e lembrar a tradição.
Lembrar os mestres das culturas, seus ensinamentos e vivencias não é outra coisa senão a cultura oral, a cultura escrita é um “banco de dados”, uma memória sem reflexão.
Sem citar a cultura oral, mas o trecho lembra ela: “se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação reaparece” (pg. 56) e acrescenta: “uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro” (ibidem) e lembra que quem quiser narrar ou recordar “precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa” (pg. 57) e não pode estar falando de outra coisa que não seja a cultura escrita, pois a oral é capaz de esquecer detalhes porém vai sempre recordar o que é vivido e através dela lembrar o essencial e lembrar a tradição.
Lembrar os mestres das culturas, seus ensinamentos e vivencias não é outra coisa senão a cultura oral, a cultura escrita é um “banco de dados”, uma memória sem reflexão.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023.
Narrativas, guerras e perigos
Em um dos recentes ensaios de Byung-Chul Han, ao mesmo tempo que o autor lembra Hyppolyte de Villemessant, fundador do jornal francês Fígaro e de Walter Benjamin ensaísta e filósofo que faleceu na década de 40, o autor não deixa de associar a narrativa moderna associada as novas mídias, ao storytelling chamando de storyselling (produto para venda).
Assim ao invés de provocar uma reflexão sobre os grandes problemas da atualidade, entre eles a escalada das guerras, mas o problema é antigo: “o leitor do jornal moderno pula de uma notícia para à outra, em vezes de deixar seu olhar vaguear à distância, e demorar-se ali. O olhar longo, lento e demorado se perdeu” (Han, 2023, p. 17), ou seja, não há reflexão.
Assim trata-se de criar uma narrativa favorável a esta ou aquela visão ideológica, pouco importa a lógica e a humanidade, mesmo diante de tragédias estamos mais ocupados (não todos felizmente) em criar uma narrativa para justificar determinada posição do que para defender um princípio humanitário, há esta ou aquela guerra, mas todas matam inocentes, todas como disse Eduardo Galeano escondem desejos de poder e de exploração sobre a nação a ser dominada, mas grandes impérios sucumbiram apesar de toda a prepotência e genocídios.
O recrudescimento da guerra da Ucrânia, as ameaças ao último reduto de refugiados palestinos, as constantes ameaças a Taiwan, além de incursões na África e agora até a América do Sul, a Venezuela volta a ameaçar a Guiana com intenso movimento de tropas e as provocações entre os EUA e o Irã incendiam espíritos bélicos e até pessoas boas, mas inocentes, embarcam nestas narrativas, não há outro interesse nas guerras: saques, mortes de inocentes e desumanidades.
Os encontros entre nações no Brasil, na Europa e as tentativas de sensibilizar governos para os perigos desta escalada bélica não faltam no mundo todo, porém esbarram em narrativas parciais e partidárias, poucos são as mentes que se sensibilizam para o perigo grave e civilizatório desta escalada, em todo mundo o armamento é a única resposta que parece tocar os governantes, e assim crescem as narrativas de “atos heroicos” de fatos bélicos em todo mundo que deviam envergonham aqueles que invocam princípios humanitários, sendo a ONU as guerras e problemas ambientais levaram a fome mais de 700 milhões de pessoas.
Até mesmo para uma narração bíblica ou histórica, onde pretende-se construir um “todo” narrativo, há uma chamada para o humanitarismo, ao Caim matar o irmão Abel, a pergunta divina é “onde está teu irmão?” (Genesis 4,9) e a narração sugerida por Byung-Chul Han é a do rei egípcio Psammenit que foi capturado pelo rei persa Cambises, e após a derrota faz o rei se humilhar ao ver sua filha transformada em escrava e o filho sendo levado para ser executado (Han, pg. 21), porém o rei egípcio só sentirá ao ver um servo idoso e frágil entre os prisioneiros e “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22), assim a narração, diz Han, “dispensa qualquer explicação” (Han, pg. 22).
Se formos capazes de reflexões longas, lentas e demoradas não é difícil entender o perigo da escalada das guerras, das pessoas simples como o serviço de Psammenit que sofrem e morrem por questões que mal compreendem direito, e que as narrativas não explicam, apenas tentam justificar o injustificável: a morte, a pilhéria e a mentira.
Como afirmar o filósofo Morin, é preciso uma resistência do espírito, estamos aos poucos perdendo o sentido de amor, esperança e solidariedade e se lermos e investigarmos as notícias e fatos das guerras veremos que não houve nada nelas que não fossem grandes genocídios, roubos e situações de fome e miséria, é preciso resistir ao ódio e a violência.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
O tudo, o todo e o divino
Após desenvolver assuntos delicados e polêmicos como a dor, a espera no sentido próprio de esperança mesmo, que Byung-Chul usa o termo filosófico da “contenção” , termina seu livro, que pode-se dizer seu primeiro escrito filosófico, ainda que tenha feito sua tese de doutorado em Heidegger, com aquilo que deve ser o mais polêmico para a filosofia de hoje: o todo.
Ao final do século XIX e início do XX, a física, a ciência e a filosofia que pareciam plenas de seus “saberes” tomam uma invertida, a viragem linguística, mas há outra em curso que é mais profunda ainda: a revanche do sagrado, depois de levarem a humanidade a duas guerras, ao trabalho exaustivo da “sociedade do Cansaço” (em inglês ficou traduzido como Sociedade do Burnout), a arrogância idealista quer proclamar a morte de Deus, o tudo ou o todo é o que, as ultimas pesquisas do James Webb parecem estar sem respostas.
Até mesmo a teoria do Big Bang está em causa, a flecha do tempo pode não estar correta, ou seja o tempo pode ser uma abstração humana, galáxias vistas nos confins do universo não coincidem com a física do Modelo Padrão (neste caso da Cosmologia) e mostram que o conceito precisa ser revisto, mas deixemos isto para os físicos e cosmólogos, o nosso maior dilema ainda é: “o que somos e de onde viemos”, traduzido em linguagem filosófico: o que é o ser, e que é o Ser do ente (ou proveniente das partículas e poeira cósmica).
Isto está expresso na Teoria do tudo, nome do filme, baseado no livro da esposa de Stephen Hawking, Jane Hawking, intitulado: “Travelling to Infinity: My Life with Stephen”.
Por um tempo esquecemos este dilema, tratado desde o início desta série de posts sobre a leitura do “coração de Heidegger” por Byung-Chul Han, não apenas o sono antropológico preconizado por Foucault, mas o sono idealista da razão de nosso tempo, aquele que provocou um esquecimento do ser.
O início do capítulo é uma provocação, acredito, ao citar Hegel na epígrafe: “A verdade é o todo”, já que Heidegger e sua releitura de Han eles retornam aquela “virada” em que “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 337), onde a própria consciência já é em si “a inquietação de distinguir-se entre o conhecimento natural e conhecimento real” (pg. 340), ela na experiência dialética da dor: “o trabalhador dialético é um sofredor. Ele percorre um calvário, estafa-se no poder do Absoluto, e o faz precisamente para viver” (pg. 346), o destaque em viver é do autor.
“Quem ainda hoje fala do todo levanta suspeitas” (pg. 455) é a frase inicial do capítulo final, mas o idealismo jamais abandonou a noção abstrata do Absoluto, porque é um imperativo de qualquer teoria traçar contornos onde a verdade seja válida, por isto a frase da epígrafe do capítulo final, penso, mas “no coração de Heidegger bate pela totalidade desde o início” (pg. 455), ela a expressa em seu pathos pelo tudo: “O que foi dito talvez indique que o presente trabalho pretender ser filosófico, na medida em que foi empreendido a serviço da totalidade última” (pg. 456), mas em contraste como o hegeliano, “o todo heideggeriano não capitaliza a morte do particular” (pg. 457), se quisermos retornar a física vale a pena reler de Werner Heisenberg: “A parte e o todo”, onde vemos os limiares da física quântica moderna, onde há vários traços de filosofia bem delineada.
Compreendendo a dor, a contenção e a angústia e na identidade na diferença (já postamos que não é a differance idealista), o todo heideggeriano não é um lugar de nascimento, não é um lugar de origem, mas um lugar de nascimento” (pg. 459), uma “casa não metafísica como espaço de morada” (pg. 459), diríamos morada o Ser, pleno e divinizado.
E também sua totalidade mundana, não é contaminada pelo clima do pensamento pós-moderno, nele pode-se notar a total falta: “de odor, paisagem ou natureza” (pg. 460), “com a história do ser Heidegger escreve certa metanarrativa”, mas não se pode negar que “o pensamento de Heidegger também possui traços metafísicos” (pg. 461), sua filosofia “não são jogos de linguagem [como Derridá], nem discursos”. (pg. 463), para ele existe o ser da linguagem, “os jogos de linguagem seria um fenômeno óntico” (pg. 463).
Desenvolvemos a questão da voz (post), mas Han pergunta: em que tonalidade afetiva o pensamento de hoje coloca essa voz”, pergunto não é ela uma resposta para a verdade que habita no interior de todo homem?, segui-la não é aceitar a dor (não a resignação), a diferença (não a differance), a angústia e a disputa fora do conflito político e de guerra (ver pag. 465).
Existe aquela voz interior, aos que sabem fazer o vazio, o silêncio e o epoché, existe o Ser que é o Todo e que habita em nós, mas é preciso passar pela dor, pela angústia, pela renúncia e aceitar a diferença.
HAN, Byung-Chul. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Renuncia, economia e alegria
Byung-Chul teoriza que apesar da diferença entre Derridá e Heidegger (veja nosso post anterior) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renuncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renuncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.
Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar mata-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).
Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.
Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.
Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.
Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.
A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.