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Vida interior e felicidade
Vivemos a pura exterioridade, o homem moderno não conhece a vida interior, está projetado sobre as coisas e as ações, acredita que pode arrancar dela aquilo que falta interiormente.
Byung-Chul Han em seu ensaio “Vita Contemplativa” cita um conto de Walter Benjamin “Não esqueça o melhor” no qual lembra um rapazinho pastor, “a quem é permitido, em “um domingo”, entrar na montanha de seus tesouros, mas com a instrução enigmática: “não esqueça o melhor”. O melhor significa o não fazer.” (Han, 2023, pg 33).
Fazendo uma leitura do Ser na modernidade, Han escreve: “A crise do presente consiste em tudo aquilo que poderia dar sentido e orientação à vida e está se partindo. A vida nãos e apoia em nada resistente que a sustente.” (pg. 87), lembra citando Hanna Arendt que afirma “encontrar incerto abrigo na escuridão do coração humano” que ainda tem a capacidade de dizer: “de recordar e dizer: para sempre” (idem) e lembra neste aspecto a imortalidade.
Ao contemplar o ser que tem uma dimensão temporal: “Ele cresce longa e lentamente. O curto prazo atual o desmonta.” (pg. 89) e cita Niklas Luhmann sobre a informação (atual): “Sua cosmologia é uma cosmologia não do ser, mas da contingência” (pg. 89 citando Luhmann).
Mas lembra a imortalidade traduzida nesta crise como: “A busca pela imortalidade, pela glória imortal, é, segundo Arendt, “a fonte e o centro da vita activa.” O ser humano conquista sua imortalidade no palco do político” (pg. 145), mas a verdadeira imortalidade é o eterno.
Então escreve Han: “Em contrapartida a vita contemplativa não é, segundo Arendt, o persistir e durar no tempo, mas a experiência do eterno, que transcende tanto o tempo como também o mundo circundante.” (idem pag. 145).
Arendt admira Sócrates, escreve Han, “que renuncia voluntariamente à imortalidade” (pg. 146) e assim lembra que mesmo o escrever torna-se vita activa, e cria uma imortalidade passageira, a qual Han lembra que também Arendt buscou ao escrever.
Mas não se trata de abandonar o complemento da vita contemplativa que é a vita activa, o que acontece é que o “animal laborans” (como Arendt chama o moderno): “está arruinando todas as capacidades humanas, sobretudo a ação” (Han, 2023, pg. 149).
Lembra que a capacidade de ação brota do pensamento “que não é irrelevante para o futuro humano, pois se considerássemos as diferentes atividades da Vita activa em relação à questão sobre qual delas seria a mais ativa e em qual delas a experiência do ser ativo se expressaria de maneira mais pura, então o resultado seria que o pensamento todas as atividades no que diz respeito ao puro ser ativo” (Han, 2023, pgs. 149-150).
Assim não é de nosso exterior que brota nossas más ações, mas antes estão no nosso interior.
Han, B.C. Vita contemplativa. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Ed. Vozes, 2023
Justo, a ideia e o pensamento
As três palavras são importantes num momento de grande crise do pensamento (o que é), o que é ideia, e a ideia de justiça ou do justo, explorada por pensadores atuais como Jürgen Habermas (citado em post anteriores sobre a inclusão do Outro) e citamos de passagem os dois volumes de Paul Ricoeur o Justo (o volume dois publicado pela Martins Fontes) embora o próprio autor diga que é um ensaio, ele penetra num aspecto mais profundo, a questão da verdade e da moral.
A leitura do texto a Inclusão do Outro de Habermas, esclarece que em termos filosóficos, que a moral em John Rawls, em termos kantianos tem diferenças entre o liberalismo político original de Kant e o republicano kantiano que é como Rawls o defende, isto bastaria, mas há uma longa análise no Volume 1 de Paul Ricouer sobre a justiça em Rawls.
Para entender o livro 2 de Ricoeur é preciso entender que para os gregos a filosofia primeira é aquela que para eles, e a retomada ontológica tem a ver com isto, a metafísica como questões sobre o Ser, a existência, a causa e o sentido da realidade e a physis (natureza) devem ser colocados de modo precedente à segunda os aspectos ligados à lógica e a ética.
O livro 2 aborda aquilo que parece mais essencial em Ricoeur, embora confesse que se trata de um ensaio, sua meta é “justificar a tese de que a filosofia teorética e a filosofia prática são de níveis iguais; como nenhuma dela é filosofia primeira em relação àquilo que Stanislas Breton caracterizou como função meta- (eu mesmo .. defendia essa reformulação da metafísica nos termos da função meta-, na qual seriam unidos “os gêneros máximos” da dialética dos últimos diálogos de Platão e a especulação aristotélica sobre a pluralidade dos sentido de ser ou do ente) “ (Ricoeur, 2008, p. 63) … mas não falou (inicialmente era escrito de uma conferência) disto e sim das duas filosofia segundas.
Sua análise está fundada “num primeiro momento, pensar a justiça e a verdade uma sem a outra; num segundo momento, pensá-las de modo da pressuposição recíproca ou cruzada” (Ricoeur, 2008, p. 64) e esta empreitada “nada tem de revolucionária, situa-se na linha das especulações sobre os transcendentais …” (idem).
Ao abordar o primeiro estágio da análise: “Pensei na declaração de Rawls no início de Théorie de la justice: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, assim como a verdade é a primeira virtude das teorias” (pg. 65) e ali o autor retoma a parte ética de outro texto seu: Soi-même comme um autre, para “garantir o estatuto eminente da justiça”.
A ideia desenvolvida ali é que está tríade leva a “eqüidade”, não é o dualismo entre o Eu e o Outro (o próximo usa também Ricoeur), “a tríade pertence ao eixo horizontal não consiste absolutamente na simples justaposição entre o si, o próximo e o distante; é a mesma dialética do si. O querer viver bem enraíza o projeto moral da vida, no desejo e na carência, como marca a estrutura gramatical do querer … mas sem a mediação dos outros dois termos da tríade, o quer vida boa se perderia na nebulosa das figuras variáveis da felicidade … eu diria que o curto-circuito entre o querer vida boa e a felicidade resultado do desconhecimento da constituição dialética do si” (pg. 66).
O autor formula a ideia da distante nestes termos: “justa distância, meio-termo entre a pouquíssima distância própria a muitos sonhos de fusão emocional e o excesso da distância alimentado pela arrogância, pelo desprezo, pelo ódio ao estranho, desconhecido. Eu veria na virtude da hospitalidade a impressão emblemática mais próxima desta cultura da justa distância” (pg. 66).
A justiça no eixo vertical, aquele do poder e da norma é vista pelo autor assim: “no eixo vertical que leva à preeminência da sabedoria prática e, com ela, da justiça como equidade, pode-se fazer uma primeira observação referente à relação entre bondade e justiça. A relação não é nem de identidade, nem de diferença; a bondade caracteriza a meta do desejo mais profundo e, assim, pertence à gramática do querer. A justiça como justa distância entre o si e o outro, encontrado como distante, é a figura inteiramente desenvolvida da bondade. Sob o signo de justiça, o bem torna-se bem comum” (pg. 67).
Considero a tríade o si, o outro e o distante, se visto também como uma alteridade transcendente, há um outro “desconhecido” e que pode ser divino e portador de mensagens, na teoria das redes por exemplo o “elo fraco” é considerado fundamental, o ensaio de Ricoeur é rico, porém ao retomar a questão do imperativo categórico kantiano, que justifica o idealismo político, creio que Habermas está correto em afirmar que este é o deslise na consistente “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls atual e muito influente.
Uma parte da leitura bíblica pode ampliar o conceito deste distante como alteridade transcendente (Mt 5,20): “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”, que no sentido deontológico poder-se-ia dizer “não entrareis na verdade da justiça”.
Uma parte da leitura bíblica pode ampliar o conceito deste distante como alteridade transcendente (Mt 5,20): “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”, que no sentido deontológico poder-se-ia dizer “não entrareis na verdade da justiça”.
RICOEUR, P. Justo 2: justiça e verdade e outros estudos. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Os pobres e a demagogia
O discurso fácil, especialmente em época de política, é o apelo aos pobres, os esquecidos, os descriminados, etc. durante algum tempo os populistas até oferecem alguma coisa a população, políticas de distribuição de renda e crédito barato, porém o problema é que não esquecem de abastecer aliados e o próprio bolso, além das contas públicas que explodem.
Isto aconteceu em vários países da américa latina e o resultado é que a conta chega e aí vemos os fantasmas do autoritarismo e da revolta popular saltar para fora, agora se dão conta que também isto pode ocorrer em países da África, o Congresso Nacional Africano (ANC) , partido de Nelson Mandela que libertou a África do Sul do apartheid, perdeu as eleições para prefeito em Nelson Mandela Bay e também na capital Pretória.
O presidente sul-africano Jacob Zuma está envolvido em processos de corrupção e a miséria e a economia não funcionam bem lá, assim a população perde as ilusões com promessas futuras.
O populismo ilude com discursos, mas em muitas partes do planeta aos poucos uma maior divulgação dos fatos vai tornando mais necessárias ações concretas, posturas honestas e ainda mais políticas claras de retirar a população da pobreza, a Argentina foi um exemplo disto.
Em muitos países a população de rua e desempregados aumenta, até mesmo na Europa esta é uma das fontes de xenofobia, como pessoas de países pobres não recusam trabalhos pesados e salários menores, tem-se a impressão que estão “tomando” os empregos dos trabalhadores locais, a análise demagógica de algo está melhorando vai caindo por terra.
A ameaça de guerra pode tornar isto mais grave ainda, porque governos “duros” podem ser pensados como “necessários” neste momento, enfim é preciso um turning point, e não há como fazer isto sem políticas claras, sustentáveis e menos populistas para mudar o cenário.
É preciso eliminar a pobreza de modo radical e sem fronteiras, não bastam políticas públicas assistencialistas e imediatistas, é preciso ter um horizonte claro onde a dignidade de toda pessoa seja garantida, além do socorro imediato da fome, das guerras e de doenças endêmicas.
A eleição de prefeituras e estados regionais é claro, tem um viés mais provinciano, porém não deve deixar de contemplar um cenário global em mudança e uma mentalidade mais ampla, o mundo já é uma aldeia global a algum tempo.
Uma guerra in-evitável
A escalada da guerra prossegue sem uma luz no fim do túnel, apesar de esforços para que tanto as duas guerras mais perigosas não ultrapassem limites que torne a 3G inevitável, no lado do conflito Irã e Israel houveram conferencias em Doha sem sucesso, do lado Ucrânia x Rússia, o primeiro ministro da Índia, Narendra Modi visitou Zelensky em Kiev.
Simbolicamente ambos acontecimentos são importantes para a Paz, a Índia de Mahatma Gandhi tem uma tradição pacifista, Narendra Modi 14º. Primeiro ministro da Índia, é o primeiro a ter nascido depois da independência da Inglaterra, conquistada em uma guerra pacífica do lado Indiano, já que a Inglaterra agia com repressão e violência.
Também a conferencia em Doha tem seu significado, além de diversas conferências de países ocidentais, ali também foi sede da 5ª. conferência para Países Menos Avançados (PMA) que procura responde aos desafios de alcançar os Objetivos de Desenvolvimento sustentável através de um programa de Ação (Doha Program of Action – DpoA).
A incursão bélica dentro da Rússia prosseguiu numa significativa área de 1.200 km e também houveram ataques de drones, o objetivo é atingir postos militares e reservatórios de petróleo em solo russo, porém a Rússia avança sobre o leste da Ucrânia em áreas próximas a Kharkiv, e a Bielorrusia também concentra tropas do outro lado a oeste, acusa a Ucrânia.
A escalada de ambas guerras, há um vídeo mostrando tuneis dentro do Líbano do grupo pró-Irã Hezbollah. com enorme mobilidade onde passam motos e caminhões, onde estariam grandes parte do armamento para ataques, que na madrugada do dia de ontem (domingo 25/08) já teriam iniciado, Israel está em alerta máximo e retira moradores da fronteira.
A Lituânia divulgou que já tem áreas de colaboração com o exercito alemão para exercícios em caso da guerra com a Rússia escalar, a previsão inicial é de colocar 5 mil soldados nas áreas já reservadas para o exército alemão.
Biden anunciou nova ajuda militar a Ucrânia, a conversa entre o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin com o colega ucraniano Rustem Umerov na sexta-feira (23/08) fala em um pacote de US$ 125 milhões, em reais cerca de R$ 685 milhões.
O envolvimento da Índia e os países que se reuniram em Doha (entre eles Estados Unidos e Egito) são esforços importantes para a paz, ela é evitável, mas é preciso desarmar os espíritos.
A guerra e a ilusão do poder
Seja qual a forma que definimos com poder, e isto não exclui o empoderamento dos fracos, é sempre uma forma de dominação de um ser sobre o outro, haveria então alguma forma de equilíbrio, ou no dizer da filosofia, alguma forma de simetria ou horizontalidade ?
A resposta de Byung-Chul Han no livro No enxame parece direta e simples: o respeito, toda as outras formas supõem alguma hierarquia ou assimetria de poder.
É triste observar que muitas filosofias e espiritualidades contemporâneas também apontem para formas de poder: seja mais, seja o primeiro, como conquistar coisas a frente dos outros e milhares de formas “mágicas” para iludir e enganar gente inocente que embarca nestas falsas promessas.
Somos seres finitos e limitados, o equilíbrio e a vida social dependem de todos, e os ódios e as guerras são a manifestação mais cruel de formas de desequilíbrios e de assimetrias.
O igualitarismo é também uma ilusão, somos diferentes e com diferentes aptidões e isto não nos prejudica, a complementaridade humana nos ajuda a realizar diferentes tarefas e em diferentes contextos, alguns com mais talento e outros com mais dificuldades, porém não é preciso descartar ninguém, a vida social é composta pelo conjunto de ações individuais.
Porém o conjunto de valores e estímulos que temos interiormente dependem de uma ascese humana e espiritual, não um altruísmo idealista, mas um bom sendo de respeito e dignidade da qual todos somos portadores.
A sociedade moderna, desde o iluminismo e o idealismo resolveu que estes fatores “subjetivos” (na verdade é a interioridade humana, real e imaginária) deveriam ser descartados, e o resultado é uma sociedade violenta, sem equilíbrio e que depende da força bruta para equilibrar-se, nisto o Estado e a força policial acabam tendo um papel preponderante.
É rato optar-se pela não violência, pelo respeito ao diferente e aos valores morais, tudo isto parece duro e parece cerceador da liberdade, mas é a garantia de equilíbrio e serenidade.
Na bíblia, os discípulos diziam ao mestre Jesus: “suas palavras são duras” (João 6,60) e Ele respondia: “isto vos escandaliza”, “o Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada” e alguns decidiram não caminhar mais com Ele, o que pomos na mente é que encaminha nossa vida.
A lógica do produtivismo e seu inverso
Diversos autores argumentam sobre a lógica da sociedade moderna sobre o produtivismo, esta lógica não é específica de um modo de produção, mas caracteriza uma sociedade onde os valores são todos colocados em torno da potência e da produtividade de cada indivíduo, assim excluem, por exemplo, velhos, crianças, empregados domésticos e portadores de necessidade especial.
Segundo a literatura (A. Giddens e outros): o produtivismo é a lógica que orienta a vida de um grupo de indivíduos (os chamados “consumidores adequados”) enquanto outro grupo (chamados de “consumidores falhos”) ficam à deriva da vida econômica, política e social.
Por isto analistas sociais mais críticos colocam como um fator de crise na sociedade contemporânea a destinação de trabalho a grupos dirigidos, também no mundo acadêmico, político e até espiritual, determinado perfil de pessoa com alguma “performance” é requerido.
Dizer que estas pessoas tomam atitudes de acordo com suas aptidões ou escolhas é uma farsa, ainda que encontremos alguma rebeldia de jovens que optam por trabalhos como cozinha, setores esportivos ou de lazer, a maioria vive sobre projetos manipulados pela sociedade da performance e do consumo.
Como inverter esta lógica, olhando para os setores excluídos da sociedade, é cada vez mais comum portadores com necessidades especiais, pessoas com determinados tipos de doenças ou síndromes se encaixarem num mercado restrito e cheio de exigência de produtividade.
A parábola bíblica dos trabalhadores de última hora é uma metáfora bem colocada, onde trabalhadores que estão sentados na praça (descartados de espaços produtivos) são chamados para o trabalho e embora cheguem na hora final receberão o mesmo valor que outros trabalhadores, não confundir com os projetos equivocados que encaixam jovens em trabalho sem ter a remuneração corresponde a mesma função feita por trabalhadores “experientes”.
A parábola chamada também de “trabalhadores da vinha” ou “empregador generoso” (Mt 20:1-16), poderia ser o inverso da visão produtivista do mercado de trabalho da modernidade.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker, São Paulo: Ed. UNESP, 1991.
A justificativa de poder dos sofistas
Os sofistas eram homens inteligentes que educavam e influenciavam os jovens da Antiguidade Clássica, com uso da oratória e da retórica, a fazerem uso do discurso para justificar o poder, independentemente de aspectos morais.
Foram combatidos primeiro por Sócrates, só sabemos dele através de Platão, e depois por Platão (428 a.C. – 347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) que defendiam a educação para uma verdadeira cidadania, considerando os sofistas apenas mercenários dos poderosos.
Conforme lemos em Platão, Protágoras foi um destes sofistas, nasceu em 490 a.C. e assim pode ser considerado como primeiro sofista, outro famoso foi Hípias que teria debatido com Sócrates sobre as leis naturais e as convencionais, era versado em astronomia, matemática, pintura e poesia o que lhe dava grande “autoridade”.
Eles tem origem nos pré-socráticos: Protágoras seria discípulo de Demócrito (a frase famosa “o homem é a medida de todas as coisas”), Trasímaco principal figura no início da República de Platão, argumentava que “a justiça seria apenas a vantagem do mais forte”, e Górgias que não é considerado sofista por Sócrates, cria uma polêmica com Parmênides (o ser é e o não ser não é), segundo este “sofista” não se pode comunicar o que não é conhecido.
Duas críticas podem ser consideradas fundamentais aos sofistas, criar verdades relativas e isto tem forte relação com as narrativas modernas, e o fato que consideravam que as virtudes não eram coisas que poderiam ser ensinadas, assim dispensavam os valores morais.
Eles, entretanto, não ignoravam as questões da “alma” (o que o idealismo chama de subjetividade) no discurso de Górgias pode-se ler:
“[E]xiste uma mesma relação entre poder do discurso e disposição da alma, dispositivo das drogas e natureza dos corpos: assim como tal droga faz sair do corpo um tal humor, e que umas fazem cessar a doença, outras a vida, assim também, dentre os discursos, alguns afligem, outros encantam, fazem medo, inflamam os ouvintes, e alguns, por efeito de alguma má persuasão, drogam a alma e a enfeitiçam.”
Os sofistas modernos vão além de desconsiderar a alma, pois fazem elogio as drogas, a embriaguez e aos prazeres temporais, a educação para a cidadania e substituída por um puros ideologismos, hoje pouco pensado e organizado, são promessas vagas de um futuro melhor.
Assim a lógica do poder é invertida, o discurso do “mais forte” de Trasímaco volta a fazer sentido, a inexistência de valores morais razoáveis foi extinta em troca da felicidade momentânea e passageira, e recorre-se a retórica e a oratória para o convencimento de muitos, porém diz o verdadeiro discurso moral: “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (Mt 19,30) porque esta lógica leva só a destruição e a promessas vazias.
Platão. A república. Trad. E notas Maria da Rocha Pereira, 9ª. ed. Fundação Colouste Gulbenkian, Lisboa, s/d.
Os limites do pensamento lógico
O pleno desenvolvimento da ciência moderna e da técnica foi a realização de um programa sonhado por Francis Bacon, René Descartes e Immanuel Kant como um domínio total do homem sobre a natureza num perigoso limiar ético, fabricar aquilo que é natural, porém isto esbarra em dois dilemas: o natural foi e (ao meu ver) sempre será o “não fabricado” e ao torna-la substancia manipulável continuar a ser de fato o que era naturalmente.
Em trechos de apontamentos de Heidegger entre 1936 e 1946 (portanto na etapa final da 2ª. guerra mundial), o autor escreveu um ensaio chamado Superação da Metafísica, e com toda a sua genialidade descreve o que resultaria na produção técnica e industrial da vida, escreveu: “Uma vez que o homem é a mais importante matéria prima, pode-se contar com que, com base nas pesquisas químicas atuais [da época claro], serão instaladas algum dia fábrica de produção artificial de material humano. As pesquisas do químico Kuhn, distinguindo de dirigir planificadamente a produção de seres vivos machos e fêmeas, de acordo com as respectivas demandas” (Heidegger, Uberwindung der Metaphysik, parágrafo 26).
Também Adono e Horkheimer expressaram na célebre Dialética do Esclarecimento, que esta “desde sempre, no mais abrangente sentido do pensamento em progresso, perseguiu a meta de retirar do homem o medo e instituí-lo como senhor. Porém, a terra completamente esclarecida cintila sob o signo do infortúnio triunfal.” (Adorno, Horkheimer, 1987, p. 25).
Também Habermas falava desta extravagância da má ficção científica, produção experimental de embriões, mesmo ateu convicto, em sua obra Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik? reclama desta visão de “parceiros da evolução” ou até “brincar de Deus” como metáforas para auto-transformação da espécie.
Não se trata de opor ao avanço da ciência, pensamento retrógrado presente em todos os meios sociais, mas de se opor a má ciência, ao mau progresso que resultam em flagelos para a própria humanidade.
O sentido de recuperar plenamente a vida, de se opor ao crescente autoritarismo e belicismo, de proclamar a paz, o desenvolvimento sustentável e a origem divina da vida humana não é só uma proclamação de fé ou de humanismo sério e sincero, é uma resistência do espírito, da esperança e de uma racionalidade acima da lógica instrumental e agnóstica.
O poder temporal e o perdão
O poder temporal raramente encontra espaço para o perdão, porém isto não significa que nunca passe pelo pensamento humano e pela filosofia, ainda que em sua essência perdoar seja divino, e isto significa ir além do que humanamente é pensável.
Para o filósofo Jacques Derrida: “quando o perdão está a serviço de uma finalidade, seja ela nobre ou espiritual, como a redenção ou a reconciliação, ou seja, cada vez que ele tenciona restabelecer uma normalidade, social, nacional, política ou psicológica, por um trabalho de luto ou terapia, não é puro […] O perdão deveria permanecer excepcional e extraordinário, colocando à prova o impossível, como se ele interrompesse o curso ordinário da temporalidade humana”, assim permaneceu dentro de limites humanos.
Não há dúvida que crimes contra a humanidade, atrocidades e barbáries são além do limite da “temporalidade humana” e assim o poder terreno também o é, uma vez que é temporal, mesmo ditadores que permaneceram toda vida no poder tiveram um fim trágico ou de morte temporal, e alguns foram esquecidos, outros até banidos da memória popular.
Assim é de se considerar como algo fundamental o perdão além do poder temporal, e ele poderia ser um regulador para períodos de crises e de guerras, em quase todas não se pode medir o grau de atrocidades cometidas, tanto da parte dos “vencedores” como “perdedores” e o racional (e divino) seria considerar que se enfiaram numa contenda que jamais deveriam entrar.
Assim também nossas mágoas e desavenças pessoais e sociais, o quão seria útil e saudável um momento de serenidade e sentar-se a mesa de diálogo e poder tratar de soluções impensáveis, ou no dizer de Derrida “colocando à prova o impossível”, o momento parece este.
Se tivermos a coragem de ouvir aquele “inimigo” que jamais ouviríamos, de dar a mão a alguém cuja mágoa ou desavença é muito grande, poderíamos retornar um caminho destrutivo que parece sem volta, e cuja superação depende apenas de uma atitude: perdoar.
Até mesmo aqueles que nunca nos pedirão perdão, perderam a serenidade e humanidade de ver o outro além de julgamentos e discórdias, há sempre um outro ser ali, ontologicamente só negamos o Ser, se negamos a ouvi-lo e dar-lhe algum crédito, talvez precise disto.
Perdoar é divino, quem dá este passo entende que há outra realidade além do que imaginamos ser real e possível, o impossível também está ao alcance de quem perdoa.
O amor além da dor
A dor não é a resignação da interioridade absoluta: “o sujeito que trabalha na identidade, retornando a si mesmo na sua interioridade, assimilando o mundo, é incapaz da dor” (pg. 329), enquanto outros pensadores pararam na angústia ou na busca pela diferença ou ainda pelo sujeito destinado a um “espírito absoluto”, Heidegger vê na dor uma “tonalidade afetiva fundamental da melancolia” (Han, 2023, pg. 329), é a tonalidade do ser … da finitude … do pensamento finito, “é o traço idêntico que, como base certa maneira formal, sustenta toda tonalidade fundamental ocupada por algum conteúdo, o traço principal que, enquanto o mesmo, está na base do modo como respectiva afinação” (Han, 2023, pg. 330).
Não há um porque da dor senão uma separação de algo que a transcende, diz uma canção brasileira “quem não sofreu por amor, não amou”, mas pode-se inverter esta relação se conseguimos ver o divino como Puro Amor, Ele também através da dor nos ama por amor, talvez seja sua máxima essência, assim o símbolo cristão da cruz.
Toda a filosofia nos fala de estar separado de algo, de uma busca de algo, do desejo de infinito e de felicidade ágape (aquelas que não são duradouras são apenas paliativas), assim o nome do livro de Han “A sociedade paliativa”, fala da dor hoje.
Há uma atração neste tipo de essência, a relação entre dor e amor, não por causa de um espírito sofredor ou masoquista, mas justamente pela separação do infinito, da plenitude e do puro Ser, e somente a existência do Puro Ser pode nos atrair para este tipo de amor.
Uma frase de Han que é marcante é: “A perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas à própria realidade, torna a vida humana radicalmente transitória.”, o filósofo coreano-alemão está muito mais próximo do budismo do que do cristianismo, mas entende uma relação essencial que existe neste Amor/Dor, neste Ser/Não Ser, não de forma dualista, mas em relação intima como o verdadeiro Amor.
Assim se há uma precedência na relação é Dor e Amor, mas não como negação da vida e sim como sua afirmação máxima.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.